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O jogador Corre, ofegando, pela lateral. De um lado o esperam os céus da glória; do outro, os abismos da ruína. O bairro tem inveja dele: o jogador pr

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Academic year: 2021

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O futebol

Ahistória do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Ao mesmo tempo em que o esporte se tornou indústria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar. Neste mundo do fim de século, o futebol profissional condena o que é inútil, e é inútil o que não é rentável. Ninguém ganha nada com essa loucura que faz com que o homem seja menino por um momento, jogando como o menino que brinca com o balão de gás e como o gato brinca com o novelo de lã: bailarino que dança com uma bola leve como o balão que sobe ao ar e o novelo que roda, jogando sem saber que joga, sem motivo, sem relógio e sem juiz.

O jogo se transformou em espetáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores, futebol para olhar, e o espetáculo se transformou num dos negócios mais lucrativos do mundo, que não é organizado para ser jogado, mas para impedir que se jogue. A tecnocracia do esporte profissional foi impondo um futebol de pura velocidade e muita força, que renuncia à alegria, atrofia a fantasia e proíbe a ousadia.

Por sorte ainda aparece nos campos, embora muito de vez em quando, algum atrevido que sai do roteiro e comete o disparate de driblar o time adversário inteirinho, além do juiz e do público das arquibancadas, pelo puro prazer do corpo que se lança na proibida aventura da liberdade.

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O jogador

Corre, ofegando, pela lateral. De um lado o esperam os céus da glória; do outro, os abismos da ruína.

O bairro tem inveja dele: o jogador profissional salvou-se da fábrica ou do escritório, tem quem pague para que ele se divirta, ganhou na loteria. Embora tenha que suar como um regador, sem direito a se cansar nem a se enganar, aparece nos jornais e na televisão, as rádios falam seu nome, as mulheres suspiram por ele e os meninos querem imitá-lo. Mas ele, que tinha começado jogando pelo prazer de jogar, nas ruas de terra dos subúrbios, agora joga nos estádios pelo dever de trabalhar e tem a obrigação de ganhar ou ganhar.

Os empresários podem comprá-lo, vendê-lo, emprestá-lo; e ele se deixa levar pela promessa de mais fama e mais dinheiro. Quanto mais sucesso faz, e mais dinheiro ganha, mais está preso. Submetido a uma disciplina militar, sofre todo dia o castigo dos treinamentos ferozes e se submete aos bombardeios de analgésicos e às infiltrações de cortisona que esquecem a dor e enganam a saúde. Na véspera das partidas importantes, fica preso num campo de concentração onde faz trabalhos forçados, come comidas sem graça, se embebeda com água e dorme sozinho.

Nas outras profissões humanas, o ocaso chega com a velhice, mas o jogador de futebol pode ser velho aos trinta anos. Os músculos se cansam cedo:

– Esse cara não faz um gol nem ladeira abaixo. – Esse aí? Nem se amarrarem as mãos do goleiro.

Ou antes dos trinta, se uma bolada fizer que desmaie de mau jeito, ou o azar lhe estourar um músculo, ou um pontapé lhe quebrar um desses ossos que não têm

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conserto. E um belo dia o jogador descobre que jogou a vida numa só cartada e que o dinheiro evaporou-se, e a fama também. A fama, senhora fugaz, não costuma deixar nem uma cartinha de consolo.

O goleiro

Também chamado de porteiro, guarda-metas, ar-queiro, guardião, golquíper ou guarda-valas, mas pode-ria muito bem ser chamado de mártir, vítima, saco de pancadas, eterno penitente ou favorito das bofetadas. Dizem que onde ele pisa, nunca mais cresce a grama.

É um só. Está condenado a olhar a partida de longe. Sem se mover da meta aguarda sozinho, entre as três traves, o fuzilamento. Antigamente usava uniforme preto, como o árbitro. Agora o árbitro já não está dis-farçado de urubu e o arqueiro consola sua solidão com fantasias coloridas.

Não faz gols. Está ali para impedir que façam. O gol, festa do futebol: o goleador faz alegrias e o goleiro, o desmancha-prazeres, as desfaz.

Carrega nas costas o número um. Primeiro a receber? Primeiro a pagar. O goleiro sempre tem a culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito. Quando qualquer jogador comete um pênalti, quem acaba sendo castigado é ele: fica ali, abandonado na frente do carrasco, na imensidão da meta vazia. E quando o time tem um dia ruim, quem paga o pato é ele, debaixo de uma chuva de bolas chutadas, expiando os pecados alheios.

Os outros jogadores podem errar feio uma vez, muitas vezes, mas se redimem com um drible espe-tacular, um passe magistral, um tiro certeiro. Ele, não. A multidão não perdoa o goleiro. Saiu em falso? Catando

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borboleta? Deixou a bola escapar? Os dedos de aço se fizeram de seda? Com uma só falha, o goleiro arruína uma partida ou perde um campeonato, e então o público esquece subitamente todas as suas façanhas e o condena à desgraça eterna. Até o fim de seus dias, será per-seguido pela maldição.

O ídolo

E um belo dia a deusa dos ventos beija o pé do homem, o maltratado, desprezado pé, e desse beijo nasce o ídolo do futebol. Nasce em berço de palha e barraco de lata e vem ao mundo abraçado a uma bola. Desde que aprende a andar, sabe jogar. Quando criança alegra os descampados e os baldios, joga e joga e joga nos ermos dos subúrbios até que a noite cai e ninguém mais consegue ver a bola, e quando jovem voa e faz voar nos estádios. Suas artes de malabarista convocam multidões, domingo após domingo, de vitória em vitória, de ovação em ovação.

A bola o procura, o reconhece, precisa dele. No peito de seu pé, ela descansa e se embala. Ele lhe dá brilho e a faz falar, e neste diálogo entre os dois, milhões de mudos conversam. Os Zé Ninguém, os condenados a serem para sempre ninguém, podem sentir-se alguém por um momento, por obra e graça desses passes de-volvidos num toque, essas fintas que desenham zês na grama, esses golaços de calcanhar ou de bicicleta: quan-do ele joga, o time tem quan-doze jogaquan-dores.

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– Doze? Tem quinze! Vinte!

A bola ri, radiante, no ar. Ele a amortece, a adormece, diz galanteios, dança com ela, e vendo essas coisas nunca vistas, seus adoradores sentem piedade por seus netos ainda não nascidos, que não estão vendo o que acontece.

Mas o ídolo é ídolo apenas por um momento, humana eternidade, coisa de nada; e quando chega a hora do azar para o pé de ouro, a estrela conclui sua viagem do resplendor à escuridão. Esse corpo está com mais remendos que roupa de palhaço, o acrobata virou para-lítico, o artista é uma besta:

– Com a ferradura, não!

A fonte da felicidade pública se transforma no pára-raios do rancor público:

– Múmia!

Às vezes, o ídolo não cai inteiro. E às vezes, quando se quebra, a multidão o devora aos pedaços.

O torcedor

Uma vez por semana, o torcedor foge de casa e vai ao estádio.

Ondulam as bandeiras, soam as matracas, os fo-guetes, os tambores, chovem serpentinas e papel pica-do: a cidade desaparece, a rotina se esquece, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus exibe suas divindades. Embora o torce-dor possa contemplar o milagre, mais comodamente, na tela de sua televisão, prefere cumprir a peregrinação até o lugar onde possa ver em carne e osso seus anjos lutando em duelo contra os demônios da rodada.

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veneno, come o boné, sussurra preces e maldições, e de repente arrebenta a garganta numa ovação e salta feito pulga abraçando o desconhecido que grita gol ao seu lado. Enquanto dura a missa pagã, o torcedor é muitos. Compartilha com milhares de devotos a certeza de que somos os melhores, todos os juízes estão vendidos, to-dos os rivais são trapaceiros.

É raro o torcedor que diz: “Meu time joga hoje”. Sempre diz: “Nós jogamos hoje”. Este jogador

núme-ro doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos

de fervor que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música.

Quando termina a partida, o torcedor, que não saiu da arquibancada, celebra sua vitória, que goleada

fi-zemos, que surra a gente deu neles, ou chora sua

derrota, nos roubaram outra vez, juiz ladrão. E en-tão o sol vai embora, e o torcedor se vai. Caem as som-bras sobre o estádio que se esvazia. Nos degraus de cimento ardem, aqui e ali, algumas fogueiras de fogo fugaz, enquando vão se apagando as luzes e as vozes. O estádio fica sozinho e o torcedor também volta à sua solidão, um eu que foi nós; o torcedor se afasta, se dis-persa, se perde, e o domingo é melancólico feito uma quarta-feira de cinzas depois da morte do carnaval.

O fanático

O fanático é o torcedor no manicômio. A mania de negar a evidência acaba fazendo que a razão e tudo que pareça com ela afunde, e navegam à deriva os restos do naufrágio nestas águas ferventes, sempre alvoroçadas pela fúria sem tréguas.

Referências

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