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À frente das cortinas: O ensino da dança técnica e virtuosa

A DANÇA E SEU ENSINO: OLHARES OPOSTOS SE ENTRECRUZAM

I.1. À frente das cortinas: O ensino da dança técnica e virtuosa

Memória é o meio. O meio entre o tempo e o espaço que testemunhou a experiência vivida. (BENJAMIM) Memórias vivas são aquelas que continuam presentes no corpo. Uma vez lembradas, o corpo ri, chora, comove-se, dança (...). (ALVES, Rubem)

Pude observar, a partir dos relatos que colhi durante esta pesquisa, que a maior parte dos entrevistados passou por processos de formação e início da atividade docente semelhantes aos meus. A maioria (14 dos 18 entrevistados) passaram pelo ensino tradicional de dança, comumente em academias de bairro e/ou do interior de São Paulo experimentando principalmente o balé e o jazz como estilos de dança que eram propostos a partir da reprodução de movimentos. Tiveram contato com aulas de dança que propunham uma natureza mais livre, criativa e expressiva somente depois da adolescência. Uxa Xavier e Virginia Costabile tiveram o

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Teoria desenvolvida pelo estudioso do movimento que sistematizou os fatores do movimento propondo qualidades aos movimentos (referentes ao tempo, espaço, peso e fluência) e disposição espacial (para onde e como o movimento se realiza). Esta sistematização permite que o educando tenha um referencial de estímulos possibilitando que seus movimentos sejam criados por ele mesmo, inclusive a partir de seus referenciais cotidianos. Neste sentido a Dança Educativa Moderna, apresentada por este estudioso em 1948, oferece um grande oferece um leque de alternativas para promover a integridade do ser humano.

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Émile Henri Jaques-Dalcroze (1865 – 1950) suas propostas de educação musical e artística ocupam lugar de destaque na área. Dedicou parte de seu trabalho à à elaboração da Rítmica, inicialmente conhecida como Ginástica Rítmica, por tratar-se de um sistema de educação musical inteiramente fundamentado nos exercícios corporais. (MADUREIRA, J.R.. Jaques-Dalcroze: música e educação. Proposições, vol.21, 2010.

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privilégio de frequentar a escola de dança de Klauss Vianna e Rayner Vianna e as aulas de Dona Maria Duscheness em São Paulo. Gisele Pennella pode ter essa experiência ao participar como arte-educadora no Centro Educacional Unificado (CEU), a partir da troca de conhecimentos que obteve com seus colegas de equipe. Aos outros entrevistados, essa perspectiva lhes foi apresentada ao frequentar os Cursos de Ensino Superior em Dança da região paulista (Unicamp e Anhembi-Morumbi), e de Educação Física (Faculdade Metodista). Carlinhos Batá está cursando (2013) a faculdade de Pedagogia da Dança na Alemanha. Firmino Pitanga, também fez curso superior em Dança na Bahia, mas trilhou outra vertente, qual seja, a da dança negra contemporânea e a capoeira, inseridas no contexto da ebulição cultural que se vivia na Bahia nos anos 1960 e 1970 e que teve suas reverberações em São Paulo a partir do final da década de 1980.

Penso que minha experiência na Escola Municipal de Bailados pode dar pistas do que ocorria (e ainda ocorre) no mundo da dança, porém, localizando as transformações em um único espaço físico.

Meus fragmentos de memória me levam à Escola Municipal de Bailados de São Paulo, entre 1987 e 1993. Esse espaço ressurge hoje em minhas lembranças de modo emblemático, talvez, porque representou o modus operandi do ensino da dança no Brasil daquele período e ao mesmo tempo abriu brechas, no contexto de um período de redemocratização do país18, para que as contradições - tanto relacionadas ao ensino de dança e ao fazer artístico da dança quanto à vida social, política, econômica e cultural - modificassem meu percurso de formação e de profissionalização.

Acompanhada pelas leituras de Benjamin pude entender melhor que “o passado traz consigo um índice do misterioso” e que a história realiza-se em movimentos que, de acordo com a concepção benjaminiana de tempo, não se encontram no passado, mas no „futuro‟,

[...] isto é, nos sonhos, nos desejos, nas aspirações do não-realizado, daquilo que não

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O período de redemocratização do Brasil diz respeito a meados dos anos 1980 quando se recuperam as instituições democráticas que haviam sido abolidas durante o Regime Militar (que impunha um regime de exceção e de censura às instituições nacionais e à liberdade individual) instituído em 1964. O Regime durou vinte anos, até 1985, quando a redemocratização foi finalmente concluída. Durante a época a ditadura militar, entre outras, a área da cultura foi sensivelmente censurada. Foi somente em 1989, depois de 29 anos, que o país viu uma eleição direta para a presidência. Isto foi o corolário de intensas lutas pela liberdade, entre as quais podem se destacar as passeatas massivas pela Direitas Já.

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chegou a se concretizar, mas que ainda se encontra voltado para o porvir. [...] Para Benjamin, a difícil questão a refletir sobre a memória não reside naquilo que é possível de rememorar, mas em saber como lidar com o silêncio, com o esquecimento [...]. (MEDEIROS, 2006, s/p.)

Lembro-me da primeira vez que fui ao centro da cidade de São Paulo no intuito de realizar uma prova para me tornar aluna da Escola Municipal de Bailados de SP - era 1987. O metrô lotado, as pessoas se empurrando; nas ruas todos correndo, „atrasados‟ - ninguém se olha, ninguém se cumprimentava. Carros de um lado e de outro, cuidado! De repente, uma carroça sendo puxada por um homem. A miséria ao lado da riqueza, aqueles imensos arranhacéus, pessoas de terno e gravata ao lado de mendigos, pedintes, crianças cheirando cola. Uma cena maravilhosamente assustadora para uma menina de 15 anos. A porta da Escola, só era reconhecível porque em frente estavam meninas com seus cabelos bem amarrados, seus collants azuis e suas meias cor de rosa. Achei que ali era um banheiro público, o cheiro insuportável de xixi me invadia. Mas não era. Lá mesmo, debaixo do Viaduto do Chá, onde milhares de pessoas se trombavam todos os dias, onde passavam carros e ônibus (e a carroça), estava (está) instalada a Escola Municipal de Bailados. Atravessar o portão era como entrar em outro mundo. Um mundo mágico? A imagem da rua desaparecia, os sons ensurdecedores e o cheiro insuportável da imensa cidade se esvaiam e davam lugar a um enorme corredor branco com imagens de bailarinos pendurados nas paredes; a crianças e adolescentes impecáveis e a amplos salões com espelhos, barras e, ora vejam! Janelas!! Imensas janelas. Passei na tal prova. Lá fiquei por seis anos (com um ano de fechamento da escola para reformas).

Parece-me interessante voltar ainda mais no tempo, para o momento de criação do Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1927. Reis (2005, p.05) ressalta que sua criação ocorreu em um período em que a cultura visual, a “sociedade do olhar” era exaltada e acompanhava o foco das políticas do Estado Novo no intuito de, quando a capital carioca passa a ser o cartão de visita do país, “[...] vender a imagem de inserção de um Brasil na modernidade” (PEREIRA, 2003 apud REIS, 2005, p. 05).

Somente treze anos depois, em 1940, cria-se a Escola Municipal de Bailados de São Paulo. E na década seguinte, marcada pelo populismo nacionalista do governo Getúlio Vargas e pela crescente industrialização e urbanização, o balé

[...] seria também um dos meios mais “refinados” e interessantes para a burguesia reforçar sua visão de mundo. (...) o balé “clássico” reforçava todo um quadro de

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ideias e práticas de um pensamento burguês que associava a esta dança a “fina educação”, direcionada para um público específico, “arte de elite e para a elite”. (REIS, 2005, p. 10)

Estes valores, instaurados em sua criação mantêm-se, porém, com algumas pequenas mudanças. São rachaduras no cimento duro que abrem espaço para uma pequena folhagem verde. Mas o cerne da educação associada à “fina educação” e ao tecnicismo, para dentro dos portões, ainda era dominante naquela época.

No final da década de 1980, com o incentivo da necessidade da cultura e da arte apresentada pela Constituição Brasileira de 1988, por meio da ideia de “democratização da cultura” e de “bem a ser difundido” há transformações visíveis que inovam e desestabilizam os focos da Escola pública de dança - mas não só nesse espaço: abrem-se novos espaços que possibilitam a descentralização do ensino, como veremos no capítulo III deste trabalho. Como primeiro aspecto pode-se destacar que o lugar da “arte de elite e para a elite”, nos novos tempos passa a ser “arte de elite” para as populações desvaforecidas economicamente as quais, aos olhos dessa mesma elite tem pouco ou nenhum acesso à cultura.

Para dentro dos portões da Escola, Vallim Junior (2008, p. 15)19 explica que, quando ele foi diretor da Escola Municipal de Bailados, entre os anos de 1987 e 1990, os alunos vinham “da periferia da cidade à procura de um momento de beleza em que possam mergulhar num momento de fantasia”. Ao mesmo tempo, intensifica-se um movimento contrário, a partir das secretarias municipais e estaduais de cultura de São Paulo que buscam expansão de equipamentos culturais, como as Casas de Cultura, em direção às periferias da cidade e, sob foco diferenciado, com a Criação da Secretaria do Menor do Estado de São Paulo20. Sobre esta última iniciativa, Alda Marco Antonio21 reforça este aspecto quando explica “estamos planejando formar grandes

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VALLIM JR In COELHO, Maria Cristina Barbosa Lopes e XAVIER, Renata Ferreira (orgs). Memórias de Dança em São Paulo. Cadernos de Pesquisa do Centro Cultural São Paulo. São Paulo, 2008. Disponível em http://www.centrocultural.sp.gov.br. Acesso maio/ 2012.

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Estes temas serão desenvolvidos no capítulo III deste trabalho. 21

Alda Marco Antonio foi secretária da então recém-criada Secretaria do Menor do Estado de São Paulo entre 1987 e 1995.

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centros na periferia [que] deverão propiciar às crianças pobres aquilo que as crianças ricas têm: aulas de ballet, de ginástica, de dança, de violão, trompete, coral, esporte [...]”22

O mundo mágico da bailarina traduzida na „Ciranda da Bailarina‟23

de Chico Buarque e Edu Lobo se faz presente em sua contradição. Essa bailarina de Chico Buarque é quase um ser etéreo, está longe de ser humana. Mas a sensação da inumanidade se fixa na própria bailarina e no imaginário coletivo a partir dos valores que se estabelecem. O automatismo, a corrida contra o tempo, a administração do tempo livre para ser consumido, se presentificam fortemente no ensino da dança tradicional, tecnicista/virtuosístico. A canção de Chico Buarque é real por um lado, mas também mascara outro, que a(o) própria(o) bailarina(o), por vezes, se recusa a reconhecer porque para ela(ele) sempre foi assim.

Aquele outro mundo, de imensas janelas e salas espelhadas, no qual apareciam princesas, com sua postura e roupa impecáveis, em que as salas eram limpas e a cidade se esvaía, também tinha seus monstros. Assim como em um belo conto de fadas, lá estavam eles, convivendo mutuamente. Os monstros encarnavam em algumas professoras e disfarçavam-se de rainhas. Mas de vez em quando davam as caras: gritavam, berravam, davam beliscões e tapas. Não deixavam falar, não deixavam rir, e tudo tinha que ser feito com extrema perfeição. Corríamos o risco eterno, o medo de errar, de engordar, de ser menos e para isso, o mundo de fora não podia existir, era preciso treinar, ensaiar e ... dançar?24 Os monstros também se ocupam do corpo das estudantes, aspirantes a bailarina: surgem nas dores frequentes do corpo, no sangue das pontas dos pés e nas dores morais. E eu acreditei por muito tempo serem dores de prazer. Prazer em sentir dor porque só assim se alcança o “etéreo”, a “perfeição”. Mas como os monstros sempre existiram, aprender com dor e com os gritos, no balé, “sempre foi assim”. Talvez por isso ninguém mais tivesse olhos e ouvidos para tais atitudes.

O fazer dança e seu ensino tornam-se „trabalho‟ mecânico, e como tal, alheio a qualquer

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Entrevista concedida por Alda Marco Antonio para a Revista São Paulo em Perspectiva (1)1:2-4, abr./jun. 1987. Disponível em http://www.seade.gov.br/produtos/spp/v01n01/v01n01Entrevista.pdf. Acesso em dez. 2011.

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(...) Só a bailarina que não tem/ Nem unha encardida/ Nem dente com comida/ Nem casca de ferida/ Ela não tem/ (...)/ Não livra ninguém/ Todo mundo tem remela/ Quando acorda às seis da matina/ Teve escarlatina/ Ou tem febre amarela/ Só a bailarina que não tem/ Medo de subir, gente/ Medo de cair, gente/ Medo de vertigem/ Quem não tem/ (...) Confessando bem/ Todo mundo faz pecado/ Logo assim que a missa termina/ Todo mundo tem um primeiro namorado/ Só a bailarina que não tem.

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É importante ressaltar que essas atitudes no ensino da dança para pessoas em formação (crianças e adolescentes) eram (e ainda são) recorrentes nas mais diversas escolas de dança, em espaços públicos e escolas privadas. Este modo de aprender a dançar, considerado tradicional, tecnicista e racionalista, aparece em minha vida em todos os espaços de que pude participar, o clube público, a escola de bailados, as academias particulares.

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experiência, de modo semelhante aos trabalhadores, descritos por Marx, que aprendem a coordenar seu próprio movimento ao movimento uniforme, constante, de um autônomo. Este25 ensino, proposto como profissionalizante e extra-curricular, dificilmente via as crianças como crianças. Tratadas como „pequenos adultos‟, aprendiam a submissão dos „novos tempos‟, a automatização do movimento uniforme, mecanizado que disciplina e silencia os corpos e faz perder a arte como “forma de conhecimento corporal carregada de sentidos e significados simbólicos (...)”, retomando as palavras de Vilela (2010).

Alguns estudos mais atuais sobre o ensino da dança, principalmente do balé clássico, demonstram a permanência desse condicionamento ainda hoje. Carvalho (2005, p. 10) explicita que a imagem do professor de ballet é a de uma figura forte que critica os alunos abertamente e utiliza bastões ou outros utensílios para bater nas pernas. E Andrade (2006) em seu estudo sobre a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil observou a ênfase no trabalho físico, no rigor técnico e com carga horária excessiva que podem causar lesões. Em suas observações comenta, entre outras questões, como muitas crianças falam sobre a falta de tempo para brincar e o cansaço. E finalmente, como foi instaurada no processo coletivo a naturalização desses aspectos: “É curioso que os pais afirmem com tranquilidade que a vida de uma estudante de balé não é normal, que as privações são necessárias e boas para os filhos [...]” (ANDRADE, 2006, p. 76).

É o lugar que deixa marcas, mas nem sempre positivas, o lugar do tempo livre, de lazer, de ócio transformado em tempo de trabalho alienado ou estranhado26. A técnica da reprodução, contagiada pela reprodutibilidade técnica advinda das máquinas, agora transformada em corpo- máquina. O corpo como portador de uma “técnica” que poderá produzir cópias e mais cópias. O ensino da dança, em grande parte, voltado para a cópia de movimentos, da repetição exaustiva e apenas para a forma de uma beleza padronizada.

Dado o modo como se concebia (e em alguns espaços ainda se concebe) o processo de ensino-aprendizagem do balé clássico, mas também de outros estilos de dança quando desenvolvida de modo tradicionalista, faz imaginar-se uma dança sem história, sem memória, sem conteúdo ou

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“Este” sublinhado, porque essa educação em dança ainda persiste, mas já temos relatadas muitas experiências positivas, que contrariam esse sistema. Cf. CARVALHO (2005).

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De acordo com Antunes (2010, p. 145 e 249) O trabalho que “*...+ deveria ser a forma humana de realização do indivíduo reduz-se à única possibilidade de subsitência do despossuído. /[...] O trabalho como atividade vital, verdadeira, desaparece [...]/ O que significa dizer que, sob o capitalismo, o trabalhador repudia o trabalho; não se satisfaz, mas se degrada; não se reconhece, mas se nega”. Mézaros utiliza o conceito de alienação e não de estranhamento, enquanto Antunes utiliza o conceito de estranhamento. CF. ANTUNES (2010, 2011)

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mesmo uma dança em que a história e as memórias individuais e as relações com o mundo não podem fazer parte dessa dança. Sabe-se que a dança carrega em si a história e a memória do homem, de uma época, das relações sociais. O problema é que essa história memorial se passa, por vezes, de modo tão fragmentado que não alcança a experiência do dançar. São práticas como esta que “[...] tornam a experiência cada vez mais imune aos choques, seu comportamento passa a ser reativo, sua memória é liquidada”. (KRAMER, 1998, p. 52)