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Água: o mobilismo heraclitiano

TRANSFIGURAÇÕES TELÚRICAS

Manoel de Barros

3.1 SOLOS ANCESTRAIS: O CENÁRIO PANTANEIRO

3.2.1 Água: o mobilismo heraclitiano

Manoel perscruta o universo misterioso que é o chão líquido do Pantanal. A água é o elemento primordial para o poeta. A poesia barreana flui de um imenso mundo aquático onde as águas pantaneiras obedecem a imposições telúricas. Indissociável do pantanal, é elemento que flui, destrói, fertiliza, renova, vivifica e purifica:

Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau, folhas secas, penas de urubu

E demais trombolhos.

Seria como o percurso de uma palavra antes de Chegar ao poema.

As palavras, na viagem para o poema, recebem nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades. E demais escorralhas.

Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas.

E livres das tripas do nosso espírito.

(BARROS, Ensaios fotográficos, p. 21)

A água que corre ou escorre é jorro de vida. Embebido de experiências colhidas do direto e apaixonado convívio com a natureza, nosso poeta navega em águas pantaneiras proporcionando, em versos curtos, uma visão cosmogônica do universo hídrico do Pantanal onde é possível encontrar os elementos de um tempo detido - sua infância. A água, mais

especificamente na forma ―rio‖, aparece nos poemas de Manoel de Barros como exemplo de metaforização poética; metáforas do conceito de vida e de tempo:

XIII O riacho

que corre por detrás de casa

cria uma espécie de madrugada rasteira de viçar meninos...

XIV

O boi de pau?

Eram meninos ramificados nos rios que lhe brincavam

[...] O boi de pau é um rio

é meu cavalo de pau ... [...]

(BARROS, Compêndio para uso de pássaros, p. 27)

O rio é a ludicidade dos meninos, o mundo mágico, o solo da liberdade, fonte de criação e habitat do poeta. Ocupando o espaço geográfico e emocional traduz lembranças alegres da infância onde tudo é possível e realizável.

Misturada às sílabas, vocábulos e frases serve de matéria de poesia: A água passa por uma frase e por mim.

Macerações de sílabas, inflexões, elipses, refegos. A boca desarruma os vocábulos na hora de falar E os deixa em lanhos na beira da voz.

(BARROS, O guardador de águas, p. 44)

Em seu ―Glossário de Transnominações em que se explicam algumas delas (nenhumas) – ou menos‖, o poeta define o elemento água da seguinte forma:

Água, s.f.

Da água é uma espécie de remanescente quem já incorreu ou incorre em concha

Pessoas que ouvem com a boca no chão seus rumores dormidos pertencem das águas Se diz que no início eram somente elas

Depois é que veio o murmúrio dos corgos para dar testemunho do nome de Deus.

O título desse glossário, longo e auto-explicativo, enuncia um processo irônico de significação às avessas, pois, ao mesmo tempo, que a palavra ―glossário‖ aponta para uma possibilidade de elucidação, ―transnominações‖ inviabiliza a sua finalidade e obrigatoriedade de fazer explicar. Os pronomes indefinidos algumas e nenhumas são a marca do incerto e da indefinição, afirmando o esvaziamento e a negatividade de uma poesia de menos. Manoel prefere ―escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los‖.387

O poeta quer explicar desexplicando, resgatando assim o uso poético das palavras.

A poética barreana aponta para algumas referências quanto às imagens da água voltadas para o fluxo, mais afeitas à própria expressão do tempo; é movimento que não cessa de fluir como o aforismo heraclitiano: ―Tudo flui. Nada persiste, nem permanece o mesmo... não se pode entrar duas vezes na mesma corrente; o rio corre e toca-se outra água‖.388 A água tem sua intimidade e seus objetivos expressos pela fugacidade e transitoriedade das imagens. Quando flui, traduz o mobilismo heraclitiano.

Nesta acepção a água metaforiza a passagem do tempo em Manoel de Barros: ―[...] Eu sou quando e depois / Entro em águas...‖389

Também o sonhador de Bachelard ―despe-se e entra na lagoa. Só então as imagens vêm, saem da matéria, nascem, como de um germe, de uma realidade sensual primitiva.‖ O sonhador bachelardiano oniriza as experiências com as imagens fornecidas diretamente pela natureza. O ser da água, portador de uma substância que desmorona constantemente, morre a cada minuto. Para ele, ―contemplar a água é escoar-se, é dissolver-se, é morrer‖,390

idéia que sugere metamorfose ontológica.

Ao fluir heraclitiano sucede o realismo de um fluido essencial que passa à categoria de elemento nutritivo e fertilizador: agora a água alimenta a terra fazendo surgir todas as formas de vida pois, ―a água alimenta tudo que impregna‖.391

Este elemento torna-se então a encarnação da grande mãe, símbolo universal de vida, de fecundidade e de fertilidade sendo caracterizada por Bachelard como um líquido que tem uma função nutriente, realçando a sua dimensão maternal, feminina. Como elemento seminal, fertilizador, dá à vida um impulso inesgotável. A água assim dinamizada é um embrião; torna a natureza enxertada.

Em Manoel de Barros, tanto o rio quanto os pântanos sonorizam as paisagens mudas numa poética das águas paradas ou mobilizantes proporcionando uma variedade de

387 BARROS, O Guardador de águas, p. 63.

388 SOUZA, Os pré-socráticos: fragmentos – doxografia e comentários, p. 92. 389

BARROS, Matéria de poesia, p. 32.

390 BACHELARD, A água e os sonhos, p. 131 e p. 49. 391 BACHELARD, A água e os sonhos, p. 80.

espetáculos. É matéria vertente, viva que, quando misturada ao elemento terra produz uma massa informe, o limo, que na poética barreana é tida como princípio de fecundidade. O poeta, em seus versos, vai mesclando a vida ao devir das águas retratando um caráter cíclico sempre esperado, pois a água traz vida e florescimento: ―O mundo foi renovado, durante a noite [...] As chuvas encharcaram tudo‖.392

No limo depositado, a fecundidade. A água que enxerta brejos e pântanos desencadeia ―a pura inauguração de um outro universo‖.393

Esse elemento, pelo que tem de fecundante e renovador, proporciona um estrago que compõe. Em compasso de espera, a água é o verdadeiro suporte material da vida, princípio da fecundidade lenta. Compondo uma geografia aparentemente imóvel, esse modelo de silêncio, se mantém em estado latente. Progressivamente o silêncio evolui para o murmúrio onde uma nova dinâmica está prestes a se instaurar.

Lúcia Castello Branco, ao apresentar O guardador de águas, esclarece que:

Não nos enganemos: as águas que o poeta guarda não são límpidas, não são cristalinas como o que, a princípio, pode ser evocado pelo nome [...] Aqui, nessa poesia de líquida matéria, o que se tem é menos o movimento das corredeiras e dos riachos que a mudez das águas retidas. As coisas que acontecem aqui acontecem paradas. 394

Nessa ―poesia de líquida matéria‖, a água, após acolher as imagens do tempo, da fertilidade, da renovação e da purificação materializa os devaneios e encarna o próprio universo em emanação. Esse elemento de linguagem fluida é uma realidade que regula a vida e o comportamento das pessoas: ―Os homens deste lugar são mais relativos a águas do que a terras [...] Os homens deste lugar são uma continuação das águas‖.395

Ser relativo à água ou continuação dela, estar mais afeito à água do que à terra. São essas as águas possíveis de um diálogo entre Manoel de Barros e Gaston Bachelard que habitam uma paisagem geográfica e humana confundindo-se, às vezes, uma vez que ―o espaço físico passa a ser tomado como espaço humano, no espaço natural se concebe uma outra natureza: a humana‖.396

No Pantanal, vida e água comungam com o mesmo devir, pois esse elemento é matéria de formação e de deformação, uma vez que a vida renasce pela morte nas águas. O mundo deveniente das águas pantaneiras simboliza o devir do ser em todas as manifestações vitais.

392 BARROS, Livro de Pré-Coisas, p. 29. 393 BARROS, Livro de Pré-Coisas, p. 23. 394

BRANCO, In: BARROS, O Guardador de águas, orelha.

395 BARROS, Livro de Pré-Coisas, p. 12.