• Nenhum resultado encontrado

3 PERSONAGENS

3.1 Âmbito teórico-metodológico para pensar os personagens

Dentre a ampla variedade de propostas da crítica literária vinculadas ao estudo do problema do personagem, farei aqui um recorte que partirá de alguns dos princípios estabelecidos pela narratologia francesa desde começos do século XX. Recuperarei, em primeira instância, a consideração de que o personagem é um “ser de papel”, isto é, da ideia de que o problema do personagem é um problema linguístico, e que o personagem não existe fora das palavras. (DUCROR, 1976). Esta perspectiva, aliada ao trabalho de Fhilippe Hamon (1972), guiaram os primeiros passos da análise. Também colaboram com a discussão as contribuições de Antonio Candido em “A personagem de Romance” (1964) e de Beth Brait em A personagem (1985).

Por outro lado, me servirei de alguns estudos contemporâneos de ordem mais ensaística. Tomarei como ponto de partida para pensar o problema do personagem na atualidade

52 Recupero a noção de escrituras/ literaturas de Ludmer (2010).

53 Para um aprofundamento na concepção do problema do realismo e como esta pesquisa aborda as formas dos

o sistema hipotético proposto por Sergio Delgadono seu ensaio “El personaje y su sombra” (DELGADO, 2005).

Nesse artigo, o crítico argentino defende a pertinência duma análise do modo como os escritores da narrativa argentina destes últimos anos constroem seus personagens. Assinala que tais escritores estão atravessados por uma situação de orfandade em relação à tradição literária e que isto outorga-lhes uma maior liberdade para a experimentação. Delgado afirma que é pertinente analisar, hoje em dia, não uma única forma de realismo nas literaturas senão “realismos”: sistemas e formas do realismo que variam segundo a poética específica de quem as desenvolve e que tendem a ser, antes, pessoais, querendo expressar com isso que são construções duma sorte de sistema próprio por parte de cada escritor. Isto se revela importantíssimo para minha análise em tanto a leitura comparada dos contos mostra que, ainda quando certos tratamentos do tema da pobreza e das relações dos mendigos com os outros personagens mantém relações de semelhança, há também diferenças fundamentais que tem a ver justamente com uma “forma de exploração do real”54 e também, de “fabricação de

realidade” (LUDMER,2010) singular em cada caso.

Considerei assim, que ainda quando a noção de personagem tenha passado, como afirma Brait (1985), por revisões como as feitas pelo Nouveau Roman, sua permanência e importância na literatura é indiscutível. Delgado dirá: “Quer dizer que são os personagens, ainda reduzidos a sua mínima expressão, ainda despojados de nome e corpo, e também de linguagem, ainda na sua modalidade mais ´potencial´, os elementos básicos de todo relato, os que fundam o espaço e o tempo” (DELGADO, 2005, p.3, tradução minha)55. Também Antonio

Candido, em “O personagem de ficção” assinala que: “a personagem realmente constitui a ficção” (CANDIDO,1964, p.19).

54 A ideia de “formas de exploração do real” foi elaborada pela crítica argentina Garciela Speranza (2001, 2005),

que propõe pensar, em relação ao atual problema do realismo, o tipo de relação que as obras constroem com o real, e observar em qual variável de realismo se colocam. Se abordam o real “como numa procura por um estado de graça, vidência e em um contato único e singular” ou se se mostram dentro dum “realismo não informado da dificuldade, valendo-se do reflexo e os duplos processados com argucias utilitárias. ” (SPERANZA, 2005, p.11) No original: “Hay quien busca un estado de gracia, una videncia, un contacto único y singular de lo real [...], y hay también un realismo no anoticiado de la dificultad,[...], que se vale una vez más del reflejo y los dobles procesados con argucias utilitarias”.

A autora focaliza, desta maneira, nas múltiplas formas de “exploração do real” que as diversas literaturas desenvolvem, pondo no centro o problema da definição própria do real e pensando o problema do realismo na literatura e na arte vinculando-o a particular experiência sobre o real posta em cena em cada obra. Para aprofundamento sobre a construção desta ideia, ver oApêndice.

55 No original:“Es decir que son los personajes, aun reducidos a su mínima expresión, aún despojados de nombre

y de cuerpo, y también el lenguaje, aún en su modalidad más ´potencial´, los elementos básicos de todo relato, los que fundan el espacio y el tiempo”.

Desta forma podemos ver que, ainda quando se considerem as mudanças no estatuto da literatura e a pertinência de certas categorias críticas seja reinterpretada, existem algumas permanências que transitam pela contemporaneidade.

No seu ensaio, Delgado (2005) se ocupa em analisar as novas formas dos realismos na literatura de Juan José Saer e César Aira. Desta análise, tomarei algumas observações que me ajudarão na leitura dos contos. O autor propõe revisar a relação descrição-personagem: para ele, é irrecusável que o personagem não se encontra simplesmente no retrato ou representação dum caráter. Observa, sempre tendo em mente certa literatura argentina atual, que o retrato tem sido praticamente abandonado pelas narrativas atuais e que é importante, portanto, estudar a função que cumprem outros elementos tais como o detalhe e, sobretudo, o papel que tem o leitor na hora de compor uma imagem.

Em consonância com esta proposta, seguirei também a Philippe Hamon no seu texto “Por un estatuto semiológico del personaje” (HAMON, 1972), de onde quero retomar a seguinte premissa:

[...] [esta noção de personagem] é tanto uma construção do leitor como uma construção do texto (o efeito-personagem não é talvez mais que um caso particular da leitura). [...] A etiqueta semântica do personagem [...] [é] uma construção que se efetua progressivamente no tempo de leitura, o tempo de uma aventura fictícia,´forma vazia que vem a preencher os diferentes predicados (verbos ou atributos) ´. O personagem é, então, sempre, a colaboração de um “ efeito de contexto” (sublinhado das relações semânticas intertextuais) e uma atividade de memorização e de reconstrução operada pelo leitor. (HAMON, 1972, p. 6, tradução minha) 56

No âmbito dos estudos semiológicos, Hamon propõe uma série de conceitualizações que usarei para integrar nosso âmbito metodológico. Porém, vale lembrar que não é o principal objetivo realizar aqui uma rigorosa análise semiológica dos personagens. Quero retomar como primeiras ferramentas as noções de marcas e distribuição:

Como conceito semiológico, o personagem pode, em uma primeira aproximação, definir-se como uma espécie de morfema duplamente articulado, morfema

manifestado por um significante descontínuo ( uma certa quantidade de marcas)

que remetem a um significado descontínuo ( o “ sentido” ou o “valor” do personagem ); será então definido por um conjunto de relações de semelhança, de oposição,

de hierarquia e de organização (sua distribuição) que contrai , sobre o plano do

56Na tradução ao espanhol: “[…] (esta noción de personaje) es tanto una reconstrucción del lector como una

construcción del texto (el efecto-personaje no es quizás más que un caso particular de actividad de la lectura). […] La etiqueta semántica del personaje […] (es) una construcción que se efectúa progresivamente en el tiempo de una lectura, el tiempo de una aventura ficticia, «forma vacía que vienen a llenar los diferentes predicados (verbos o atributos)». El personaje es, entonces, siempre, la colaboración de un “efecto de contexto” (subrayado de relaciones semánticas intratextuales) y una actividad de memorización y de reconstrucción operada por el lector

significante e do significado, sucessiva e/ou simultaneamente, com os outros personagens e elementos da obra, tanto no contexto próximo (os personagens do

mesmo romance, da mesma obra) como em contexto distante ( in absentia: os outros personagens do mesmo gênero. (HAMON, 1972, p.5, tradução e grifos meus)57.

Neste Capítulo, analisarei o modo como cada um dos relatos configura os personagens, através de marcas. Isto é, darei grande importância às pistas que os textos distribuem de formas diversificadas e que como leitores recuperamos para dar vida aos personagens. Mas,

[…] o significado do personagem, ou seu “ valor”, para retomar um termo saussuriano, não se constitui somente por repetição (recorrência de marcas, de substitutos, de retratos, de leitmotiv) ou por acumulação e transformação (do menos determinado ao mais determinado) mas também por oposição, por relação diante dos outros personagens do enunciado. (HAMON, 1972, Pág.7)58.

E, tal como afirma Candido: “A vida da personagem depende da economia do livro, de sua situação em face dos demais elementos que o constituem: outros personagens, ambiente, duração temporal, ideias”. (CANDIDO, 1964, p.75). Portanto, junto com a análise das marcas que constroem uns e outros personagens, considerarei como se configuram as relações entre todos eles assim como com outros aspectos da narração – dedicarei atenção especial à construção do espaço social e da cidade, como já antecipei – e quais hipóteses de leitura ou especulações isso provoca em nós, os leitores. Isto é importante porque permite vincular este plano de análise mais estrutural a minha hipótese de leitura: na construção dos personagens em cada conto há uma forma de exploração do real específica e formas diferenciadas de construção das relações sociais dentro da cidade.

57 Na tradução ao espanhol: “En cuanto concepto semiológico, el personaje puede, en una primera aproximación,

definirse como una especie de morfema doblemente articulado, morfema migratorio manifestado por un

significante discontinuo (una cierta cantidad de marcas) que remiten a un significado discontinuo (el “sentido”

o el “valor” del personaje); será entonces definido por un haz de relaciones de semejanza, de oposición, de

jerarquía y de ordenamiento (su distribución) que contrae, sobre el plano del significante y del significado, sucesiva y/o simultáneamente, con los otros personajes y elementos de la obra, tanto en el contexto próximo

(los personajes de la misma novela, de la misma obra) como en contexto lejano (in absentia: los otros personajes del mismo género)” Tentei conservar a pontuação da tradução ao espanhol.

58 Na tradução ao espanhol: […] el significado del personaje, o su “valor”, para retomar un término saussuriano,

no se constituye solamente por repetición (recurrencia de marcas, de sustitutos, de retratos, de leitmotiv) o por acumulación y transformación (de lo menos determinado a lo más determinado) sino también por oposición, por relación frente a los otros personajes del enunciado.

Então, já no território dos contos: nos centraremos na descrição das situações de encontros entre personagens que se dão, nos três contos, em termos de “ocorrência”. Com este termo, que tomei do conto “ Os olhos dos pobres” (FUKS, 2016), como explicarei mais adiante, quero ressaltar que os encontros ocorrem como eventos ou acontecimentos que provocam transformações, interrompendo a ordem e lógica cotidiana dos personagens. Veremos que este aspecto deve ser pensado numa tensão, porque os acontecimentos adquirem uma particularidade inaugural mesmo quando são eventos que fazem parte do normal naturalizado na vida urbana. Isto antecipa que os personagens serão núcleos muito importantes para o desenvolvimento dos contos e antecipa que as relações de alguma forma são as que provocaram as transformações, ou seja, que são o motor destas narrações.

Parece-me importante apontar que as contribuições duma análise semiológica podem dialogar com os pensamentos – mais próximos no tempo – de Josefina Ludmer (2010), Sergio Delgado (2005), Graciela Speranza (2001, 2005) e Sandra Contreras (2006, 2013) na medida em que esta é uma análise que amplia o diálogo entre diferentes tipos de discursos. A ideia do apagamento dos limites do real e da ficção que é apresentada por Ludmer (2010), por exemplo, e a hipótese de que a literatura não é mais um campo autônomo, serão respeitadas. Os estudos de Hamon (1972) consideram uma noção bem ampla de contexto: “Se admitimos que o sentido de um signo em um enunciado está regido por todo o contexto precedente que seleciona e atualiza uma significação entre várias teoricamente possíveis, se pode talvez ampliar esta noção de contexto a todo o texto da História e da Cultura”.59 Estas considerações sobre o contexto

podem ser pensadas em diálogo com a “imaginación pública” de Ludmer (2010).