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Jurisdição, com visto, em sentido atual, tem relação com a função estatal atribuída precipuamente aos entes do Poder Judiciário — ao juiz — para a realização de julgamento de casos concretos, aplicando a fatos o direito preexistente no ordenamento ou, na falta de uma regra precisa, criando o direito especificamente para que se dirima aquele determinado conflito de interesses, seguindo sempre os padrões já estabelecidos pela Constituição.

Há mais: existindo um direito preexistente regente do caso concreto sob julgamento, o juiz somente pode deixar de aplicá-lo em caso de o declarar inconstitucional, sendo vedado a ele fazer outro julgamento político em relação à norma — se justo ou não, por exemplo.

Diante dessas balizas e de tudo o que se viu a respeito das funções estatais despenhadas no exercício do controle de constitucionalidade, o modelo misto brasileiro de jurisdição constitucional ora é ora não é verdadeira jurisdição. Explica-se:

Quando a expressão jurisdição constitucional referir-se à verificação, pela via judicial ordinária, da compatibilidade da norma jurídica em face da Constituição para a resolução de um caso concreto — jurisdição constitucional incidental —, haverá verdadeira prestação jurisdicional, função estatal conferida ao Poder Judiciário, uma vez que, interposto entre o fato e a norma que se pretende ver aplicada, o juiz examinará a constitucionalidade dela, primeiramente, para conhecer se pode ou não a aplicar ao caso sub judice. Nas palavras de Mirkine-Guetzévitch, a atuação “é extremamente simples e clara, pois que o juiz encarregado de aplicar as leis constitucionais e as leis ordinárias, dá, no caso de conflito entre as duas legislações, a preferência às primeiras”.273

Mesmo quando a discussão chega ao Supremo Tribunal Federal pela sistemática da repercussão geral, por mais que se pretenda dar valor ao precedente e fazer com que os demais

273 MIRKINE-GUETZÉVITCH, op. cit., pp. 72/73

casos idênticos sejam julgados de igual maneira, está-se diante da aplicação do direito constitucional ao caso concreto.

Com efeito, o fato de se resolver um determinado caso paradigma e de se reproduzir o resultado a uma miríade de outras lides idênticas, o Supremo Tribunal Federal não opera no plano da abstração, por mais que se esforce para que o julgado produza efeitos sobre os demais.

Não há, por assim dizer, a alteração do ordenamento jurídico, mas a resolução em massa dos conflitos de interesses submetidos ao Poder Judiciário, e, nesse caso, a função judicialmente desempenhada configura verdadeiramente jurisdição.274

O mesmo não ocorre quando o juiz do Supremo Tribunal Federal brasileiro examina, em uma ação direta de inconstitucionalidade, por exemplo, a compatibilidade da lei em face da Constituição Federal, análise essa que, totalmente descolada de um conflito de interesse interpessoal, tem por objetivo único decidir se a lei confrontada é ou não válida e se pode ou não continuar a produzir os seus efeitos, abstratamente e para o futuro, no ordenamento jurídico.

Por qualquer prisma que se observe a função desempenhada por uma Corte de Constitucionalidade no exercício do controle concentrado de constitucionalidade, em nenhum deles será visto algum elemento essencial que possa ser confundido com os da função jurisdicional275. Podem haver externalidades — como a estrutura em forma de tribunal, a (equivocada)276 utilização de institutos da teoria geral do processo subjetivo para o feito objetivo conduzido pela Corte —, mas nada de substancial que possa ser colocado como liame entre as duas funções.

Nessa linha, o próprio pai do modelo, como já referenciado, aduziu, na origem, que o Tribunal Constitucional “não exerce uma função verdadeiramente jurisdicional, mesmo se, com a independência de seus membros, é organizado em forma de tribunal”. Sendo mais direto,

274 Nesse sentido, Pablo Pérez Tremps (Sistema de Justicia Constitucional. Cizur Menor (Navarra): Editorial Aranzadi, 2010,

p. 153) aponta que “[e]n efecto, la jurisdicción ordinaria, desde una perspectiva sustantiva, está plenamente vinculada a la Constitución, lo que significa que está limitada (en negativo) por la norma fundamental y que debe aplicarla (en positivo) en todas y cada una de sus actuaciones, sin poder, pues, ni vulnerarla ni desconocerla. ”.

275 Mauro Cappelletti (O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2ª Edição reimpressa. Traduzido

por Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, pp. 23/24) bem adverte que “o tema do controle jurisdicional da constitucionalidade das leis não pode, certamente, identificar-se com a jurisdição ou justiça constitucional, a Verfassungsgerichtsbarkeit dos alemães. Ele, ou contrário, não representa senão um dos vários possíveis aspectos da assim chamada ‘justiça constitucional’ [...]”.

276 Sobre a errônea utilização de conceitos da teoria geral do processo subjetivo — tais como, tutela cautelar, coisa julgada,

dentre outros — para o processo objetivo, conferir a crítica desenvolvida por Jorge Amaury Maia N unes (op. cit., pp. 141 et seq.).

Kelsen afirmar que “um tribunal que tenha o poder de anular as leis é, por conseguinte, um órgão do poder legislativo”.277

Dessa conclusão não diverge Nuno Piçarra, mas, ao revés, filia-se a ela ao asseverar que “o poder de controlo jurisdicional da constitucionalidade das leis é um poder legislativo extraordinário, que é uma participação negativa na função legislativa”278.

Piero Calamandrei, olhando para a Corte Constitucional italiana, que segue o modelo kelseniano, afirma com poucas, mas precisas palavras que ela, “tal como foi concebida por nós, não é um órgão jurisdicional, mas um órgão supralegislativo”279. Para ele

Na realidade, quando o controle sobre a constitucionalidade das leis se desenvolve como no sistema austríaco, fundamentalmente adotado na Itália, em via principal e geral, o órgão que exerce este controle não é um órgão jurisdicional; [...] por que nenhum dos sintomas que se apontam como típicos da função jurisdicional se encontram neste controle geral de constitucionalidade: [...]280

O Processualista italiano, por fim, para sacramentar a questão, aduz claramente que “[o] controle da Corte Constitucional afeta a lei em seu momento normativo, não em seu momento jurisdicional”281, isto é, ataca a lei abstratamente no ordenamento jurídico, longe dos fatos analisados em um determinado caso concreto, não deixando assim qualquer elemento que possa ser confundido com a função jurisdicional estatal.

No Brasil, como visto, há um sistema misto de controle de constitucionalidade, em que o Supremo Tribunal Federal cumula duas funções estatais: órgão de cúpula do Poder Judiciário, responsável pela prestação jurisdicional; e guardião da Constituição, responsável por conferir a compatibilidade da lei ou do ato legislativo em face da Carta Política e, em não sendo positiva a resposta, por retirar do ordenamento, como legislador negativo, o ato inquinado por inconstitucionalidade.282

277 KELSEN, op. cit., 2013,pp. 151/152. Embora não situe a corte de constitucionalidade no âmbito do Poder Legislativo,

Eduardo J. Couture (Curso sobre el Código de Organización de los Tribunales. Tomo I – Los órganos del Poder Judicial. Montevideo: Jerónimo Sureda Editor, 1936, pp. 292 et seq.) aduz que “[l]a actividad legislativa de la Corte se concreta en la declaración de inconstitucionalidad de lãs leyes”.

278 PIÇARRA, op. cit., pp. 204/205.

279 CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. Vol. 3. 2ª edição. Traduzido por Douglas Dias Ferreira.

Campinas: Bookseller, 2003, p. 25.

280 CALAMANDREI, op. cit., 2003, vol. 3, p. 75. 281 CALAMANDREI, op. cit., 2003, vol. 3, p. 76.

282 Gilmar Ferreira Mendes (op. cit., 2007, p. 21) expõe bem o sistema misto existente no Brasil ao assevera que “[a] combinação

desses dois sistemas outorga ao Supremo Tribunal Federal uma peculiar posição tanto como órgão de revisão de última instância, que concentra suas atividades no controle das questões constitucionais discutidas nos diversos processos, quanto como Tribunal Constitucional, que dispõe de competência para aferir a constitucionalidade direta das leis estaduais e federai s no processo de controle abstrato de normas.”

Ora, diante desse acúmulo de funções em um órgão do Poder Judiciário, sendo uma delas de natureza eminentemente legislativa, não jurisdicional, como compatibilizar essa estrutura com o princípio constitucional da separação de poderes, ou melhor, qual é a releitura necessária da doutrina para que não se alegue invasão do Judiciário no âmbito de atuação exclusiva ou predominante do Legislativo?

Capítulo III