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2 BARULHO PARA A BATALHA

2.1 É Chegado o grande momento

"Sangue, sangue, sangue!!" - as palavras são repetidas por jovens que ocupam a arquibancada do teatro Gregório de Matos, no bairro da Barroquinha, no centro de Salvador. Há por volta de quarenta pessoas, as luzes do teatro iluminam dois jovens, que estão no centro do palco, ambos com microfones na mão. Atrás dos dois jovens, há uma mesa de som, com toca-discos, um DJ e caixas amplificadoras. Semelhante às brincadeiras infantis, os dois jovens disputam no “par ou ímpar” para ver quem irá iniciar. De um lado, temos um jovem negro, em torno de 1,70 m, cabelos curtos, que veste uma camiseta larga, calça jeans, tênis preto, e de outro lado, um outro adolescente, da pele branca, cabelos tingidos de loiro e com um ar meio desengonçado.

Quem começa é o jovem negro. "Hã, hã, hã, aê, aê, aê" - os primeiros sons parecem ser um teste para checar o microfone. "Só que na rima, você está em descontrole/ você é o Nadi, lá da Batalha da Torre/

As rimas se manifestam por todo o corpo, o balancear dos quadris e pernas e visivelmente nos braços – as mãos acompanham a fluidez das rimas e o ritmo das batidas musicais – é quem marca o compasso do improviso. A mão direita que domina o microfone, enquanto que o corpo magro, inquieto, move-se de um lado para o outro, na tentativa de acompanhar as batidas musicais lançados no toca-discos ao comando do DJ. Taaaan-taaan tannnn... Nesse momento, os grandes olhos do jovem negros estão fixos em seu adversário, que também não esconde seu nervosismo, caminha até a mesa de som, volta, abaixa a cabeça, tentando captar as rimas. (Caderno de campo, dia 24/09/2017).

Trata-se de uma descrição de uma batalha de MCs, uma manifestação própria do hip-

hop, transformada em prática cultural sonora, que, como uma “onda”, ocupa muitos espaços

distintos em cidades brasileiras – centros culturais, escolas, praças, arredores de metrô, até mesmo em teatros – espaços bastante inacessíveis para manifestações consideradas como não convencionais, como do hip-hop.

O hip-hop é uma expressão cultural associada à uma cultura de rua que, historicamente, surge à margem das expressões artísticas tradicionais da época, nos diria Leal (2007). À margem, isto é, algo que está circunscrito no limite externo, na periferia.

De acordo com o antropólogo Derek Pardue (2011), o conceito de margem deve ser compreendido para permitir a percepção, a partir dos fenômenos como identidade sociopolíticos. Nesse sentido, a margem aborda muito mais do que a relação entre margens e centro, mas como uma presença que inspira símbolos da atualidade. É na margem que se criam outros movimentos culturais – de resistência, de existência.

Inicialmente, para aprofundarmos sobre as batalhas de MCs, na visão da rapper Mirapotira, uma das primeiras mulheres a participar deste movimento em Salvador, é preciso resgatar sua origem do movimento hip-hop, porque é um movimento ainda muito parecido com as periferias brasileiras,

Eu costumo levar nas oficinas a essência, lá no começo da história de como começou as batalhas de MCs, às vezes se chega em uma batalha a molecada nova nem sabe, né? Porque virou um hype23, virou modinha, mas nada começa do nada. Lá trás, no Brooklin tava tendo muitas mortes entre os jovens negros no mesmo bairro, foi como o hip-hop surgiu. Primeiro veio a dança, breaking, com os movimentos já politizados, depois o grafite, veio o DJ, e o MC, só que não fazia rima ainda, ele era Mestre de Cerimônia, ele apresentava e ficava animando as festas. Logo depois, surgiu a ideia de fazer as batalhas de MC, porque com esta iniciativa, eles iam desafiar a galera do bairro, das gangues, no caso, hoje em dia eu faço essa comparação com as facções nas quebradas. Então, no caso, a galera das gangues desafiava a tirar as diferenças no freestyle, na rima, no improviso, sem matar, sem bater. É um desafio intelectual. Então dessa forma, eles conseguiam reduzir a violência no bairro, porque estava acontecendo muitas mortes entre eles. Isso foi o motivo das batalhas começarem. Eu acredito que isso se mantém até hoje, porque a gente ainda tem jovens pobres, negros, se matando entre si. Então toda essa movimentação cultural nas quebradas é muito importante, porque a molecada vê que não é só crime que tem, que tem uma outra alternativa, que é legal. (Mirapotira, em entrevista concedida à autora, 28/05/2019)

Conforme aponta a rapper, o período de formação do hip-hop, nos Estados Unidos, está associado à um cenário caótico, caracterizado por uma profunda crise financeira, com altos índices de desemprego, tráfico de drogas e disputas de território por gangues. O hip-hop surge como uma forma de a juventude pobre, negra, latina buscar diversão em meio a este caos (MACEDO, 2016).

O sul do Bronx, principal subúrbio de Nova York, era tradicionalmente de imigrantes, com presença maciça de porto-riquenhos, dominicanos, jamaicanos e cubanos. Estima-se um número de trezentas gangues com um total de 20 mil membros (D’ALVA, 2014, p.2). Para Roberta Estrela D’Alva, o hip-hop apresenta-se como

(...) uma cultura gerada em ventre inquieto, que nasce furiosa num dia de festa e traz na sua gênese a dança vigorosa, herdada de diversas matrizes, das danças sociais dos anos de 1970, (...) a fala-canto indócil, rápida, metrificada, repleta de gírias e neologismos, de crueza poética, agressiva e ao mesmo tempo inocente, bem-humorada, celebrativa, sofisticada, irônica e diversa. Sua certidão de nascimento é assinada com spray nos muros, nos trens, a céu aberto (D’ALVA, 2014, p.4).

23 Hype é o exagero de algo, para enfatizar alguma coisa, ideia ou um produto. É um substantivo usado para indicar algo que está na moda ou comentado nas redes sociais.

O hip-hop aparece como uma manifestação cultural no sentido de diminuir a violência e promover a diversidade e a diferença (D’ALVA, 2014), converteram-se em “guerras” de dança, grafite, travando “batalhas” com equipes de som nas festas de rua, e nas competições entre rimas, como nas batalhas de MCs. Estas festas eram um momento de resolver as diferenças entre as gangues e reuniam um número cada vez maior de jovens, sendo que os DJs emprestavam os microfones para que os jovens pudessem improvisar discursos acompanhando o ritmo da música (DAYRELL, 2003).

Nesta linha, uma das intenções com o hip-hop, segundo um dos seus idealizadores, seria “em função paz, do amor, da união e diversão, e que as pessoas se afastariam da negatividade que estava contaminando nossas ruas (violência de gangues, tráfico e consumo de drogas, complexos de inferioridade, conflitos entre afrodescendentes e latinos)” (BAMBAATAA, apud LEAL, 2007, p.26).

Vale mencionar que Afrika Bambaataa, um dos fundadores da primeira posse de hip-

hop, a Universal Zulu Nation24, foi o precursor por difundir o conhecimento como um

elemento estruturador do hip-hop (MACEDO, 2016). Nesta linha, o hip-hop atua como uma expressão política social, uma “arma de transformação”25, o qual tem potencial humanizador,

na medida em que estimula jovens e simpatizantes a buscar conhecimento. Assim, promove letramento informal, para além dos muros convencionais das escolas e universidades. Este pensamento difundiu-se no hip-hop como um todo, sendo que alguns autores, inclusive, afirmam que a consciência política lhe é um elemento intrínseco (CAMARGOS, 2015); por isso são tão presentes, por meio das diversas artes (e principalmente pelo gênero rap), as falas sobre as mazelas sociais, as desigualdades sociais vividas de forma cotidiana, a denúncia dos preconceitos, a precariedade das relações de trabalho (SPOSITO, 1993).

Entretanto, não podemos cair no risco de romantizar o movimento hip-hop. É preciso considerar a heterogeneidade das estéticas no rap. Com o crescimento do seu mercado fonológico, muitos artistas buscam se espelhar em uma estética influenciada por vídeos de rap norte-americano, com o rap ostentação, chamado de “blim-blim” de Wiz Khalifa, 50 Cent, Kanye West e Drake (MACEDO, 2016). Contudo, esta tendência já se fazia presente nos anos 1990 nos Estados Unidos, com grupos como Wu-Tang Clan, 2Pac e Notorious B.I.G.

O hip-hop influencia o surgimento do funk ostentação paulista, ritmo que vem dividindo o gosto dos jovens e simpatizantes do hip-hop. O “funk ostentação” surge nos

24 Movimento estruturado do hip-hop.

bairros periféricos, ao longo dos anos 2000, com letras que ressaltam um estilo de vida que idolatra a riqueza, sucesso e consumo de luxo, com a exibição de carros importados, motos, joias, roupas de grife, bebidas e mulheres sensuais nos videoclipes. Dessa maneira, o discurso de denúncia, tão forte no hip-hop, transforma-se, para estes artistas, em espaço para a celebração do consumo e hedonismo sexual, como por exemplo o funk do MC Guimê26. Além do “rap e funk ostentação”, há grupos mais atrelados a uma cena “gangsta” (como o grupo Facção Central e Vandal, em Salvador), vertente “gospel”, de temática religiosa (representada pelo grupo Apocalipse 16) e um crescimento do rap acústico, com letras de amor.