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3. FILOSOFIAS MORAIS E RELAÇÕES COM O CAMPO ECONÔMICO

3.3 A ÉTICA DAS VIRTUDES

A Ética das Virtudes não é direcionada a questões sobre o que é certo fazer, mas focada em questões sobre “a boa vida” a ser conduzida por um indivíduo, definição ligada ao conceito de Eudaimonia – ou Florescimento Humano –, originalmente desenvolvido nos textos de Aristóteles (STAVEREN, 2009a). De acordo com o autor, o conhecimento sobre a verdade é obtido através da experiência e seria difícil, ou até impossível, alcançá-la por meios diferentes que a compreensão de hábitos sociais. Neste contexto, bem-estar está associado a uma noção de completude, ou seja, “paz de espírito” e satisfação com as escolhas tomadas (WIGHT, 2015, p. 48). A partir de questionamentos sobre qual tipo de pessoa e vida deseja-se ser e alcançar, a definição de virtude – benevolência, civilidade, justiça, honestidade, prudência, autodisciplina;

em síntese, um meio entre dois extremos (STAVEREN, 2009a, p. 570) – está associada a comportamentos que tenham como fim a busca por engrandecimento, ao passo que os tipos de ações que tomam caminho contrário são chamados de vícios (WIGHT, 2015, p. 48).26

Apesar desta vinculação aos trabalhos de Aristóteles, no leste europeu, e de outros como Confúcio (551-479 a.C.), no oeste europeu, e Buddah (por volta dos séculos VI e IV a.C.), no contexto indiano, este ramo da filosofia moral tem obtido nova atenção no debate sobre filosofia moral atual, principalmente a partir do trabalho de Anscombe (1958), que retoma os escritos de Aristóteles. A autora discute o aspecto demandante das concepções deontológicas e utilitaristas, a partir do que propõem ser deveres e obrigações morais, por tratar como inconsistente a exigência de um comportamento moral sem a existência de um legislador universal. Além disso, aponta tópicos da Ética das Virtudes que são relevantes para compreensão da estrutura da sociedade atual, como motivação e caráter moral, o papel da educação nestes quesitos, relações familiares e sociais de maneira geral, dentre outros (STAVEREN, 2009a; HURSTHOUSE, 2014; WIGHT, 2015; BELL, 2016). Em uma passagem destacada em Staveren (2009a, p. 571), por exemplo, Anscombe defende que seria mais adequado julgar determinada ação não como moralmente incorreta, mas sim, dentro de uma conotação de “comportamento injusto”, uma vez que essa noção está relacionada com um contexto e objetivos de vida específicos.

26 Hursthouse (2014) distingue três aspectos gerais da ética das virtudes. O primeiro seria a busca pelo equilíbrio de comportamento, ou seja, encontrar o meio termo entre situações extremas como, por exemplo, agir de maneira temperada, em vez de inerte ou exagerada. A segunda diz respeito a agir de modo que tais ações tornem seu executor uma pessoa boa, pois agir de maneira virtuosa é demandante e exige que as pessoas tenham autodisciplina suficiente para superar vícios e tentações. A terceira, apesar de possuir variações, pode ser sintetizada em torno do conceito de eudaimonia. Agir de maneira virtuosa será necessário para alcançar uma concepção de plenitude e/ou felicidade.

A “boa vida” apresenta uma abordagem pluralista de “bem” – ou “bom” – e não é redutível a uma simples dimensão, tal como o prazer, da abordagem utilitarista, ou direitos e conjunto de regras, da abordagem deontológica. Em consequência, não existe uma definição universal de bem e a avaliação comportamento humano é dependente de contextos sociais (STAVEREN, 2009a). Conforme Hursthouse (2014), ao passo que a ética consequencialista define virtude de acordo com uma concepção de boas consequências e a deontológica de acordo com a capacidade de cumprimento de deveres, os seguidores da Ética das Virtudes são cautelosos ao definir virtude em torno de algum conceito basilar. A condução de uma vida moralmente correta parte do princípio que o humano é naturalmente falho e está relacionada com uma noção de adequabilidade das ações tomadas, a partir de um conjunto de valores específicos, frente a uma série de obstáculos e tentações. Como pontuado por Wight (2015, p.

48), “imperfect humans with limited rationality must do the best they can […]”.

As éticas utilitarista e deontológica assumem que os indivíduos possuem a opção de escolher a ação dita virtuosa e, em razão disto, controle sobre seus atos e como avalia-los e adaptá-los em um arcabouço moral estabelecido. Diferentemente, a abordagem das virtudes pressupõe que a condução de uma vida íntegra depende de um processo de aprendizagem e incentivo. Em decorrência, isto leva à interpretação de que a construção de uma narrativa de vida, nos termos de McCloskey (1996; 2006) e MacIntyre (2007 [1984]), é passível de desenvolvimento contínuo, a partir de considerações sobre o próprio fim que se busca alcançar e com base no aprimoramento de hábitos sociais (WIGHT, 2015, p. 47; STAVEREN, 2009a).

As pessoas não possuem a autonomia necessária para tomar decisões morais, isto é, de maneira individualista. O fato de nascerem em determinadas famílias, culturas e contextos históricos moldam seus modos de observar e interpretar o mundo. Crespo (2009, p. 19), por exemplo, coloca que na concepção original da ética das virtudes, a existência de uma sociedade é uma “accidental stable reality”, que existe independente das pessoas que a compõem – situação que se verifica em um conjunto de instituições, como o mercado. Estas instituições, portanto, definem tipos de comportamentos morais aceitos em ambientes específicos. Se os seres humanos não são capazes de prever de maneira adequada o resultado de eventos derivados de suas ações, ou se não estão necessariamente presos a determinado regramento obtido pela razão ou outro meio, deveriam se preocupar na construção de princípios que deem os motivos corretos para suas ações e a autodisciplina necessária para cumpri-los (WIGHT, 2015, p. 51).

De acordo com esta filosofia, a chave para o florescimento está na autossuficiência das virtudes. A humanidade procura o bom em função dele mesmo, e possui um conjunto de compromissos que são incomensuráveis e não-instrumentais em relação a quaisquer outros

objetivos. A vida humana está repleta de contingências e é apenas como participantes de algum tipo de associação política que os indivíduos podem compreender sua natureza e realizar-se como seres sociais (SANDEL, 2007 [1988]; CRESPO, 2009).27 Assim, a virtude só pode ser encontrada nas relações com os outros, em um ambiente social em mudança constante, numa espécie de “tentativa e erro”. A ação virtuosa é a combinação de uma motivação moral pautada na qualidade (bondade) intrínseca da virtude e a racionalização sobre os bons meios que precisam ser empregados no processo para alcançar a virtude (STAVEREN, 2009a).

A ética das virtudes possui desdobramentos para o campo político e social.28 Sua concepção pode ser interpretada de modo que a qualidade das instituições, leis e normais dependam da moralidade dos indivíduos que compõem a sociedade que está sujeita àqueles.

Em função disso, virtudes que contribuam para a construção de uma vida em sociedade pautada numa noção de “bem comum” deveriam ser ensinadas e incentivas de maneira ampla (WIGHT, 2015, p. 47-48). Tal avaliação ocorre em razão da concepção de comportamento virtuoso como algo passível de desenvolvimento, sendo, portanto, moldável, e a relação entre virtude e a realização de bons hábitos, os quais resultariam em boas ações. Como pontuado por Crespo (2009, p. 17), para Aristóteles, o instrumento adequado para a criação de um ambiente em que estes bons hábitos prevaleçam seriam a educação e a criação de leis para tanto.

Uma linha de pensamento que sofre influência da ética das virtudes é a Comunitarista.

Surgem, em linhas genéricas, como uma reação crítica aos desdobramentos da obra de John Rawls (2007 [1971]) e sua defesa de que o principal objetivo do governo seria garantir segurança e proteção a liberdades, além de assegurar a distribuição de recursos econômicos apenas com o fim de garantir que estes exerçam tal liberdade (BELL, 2016). De maneira geral, observam uma oposição da abordagem das virtudes e a ética predominante nas relações de mercado. Os principais temas discutidos são que a atual estrutura de mercado tem ofuscado valores morais tradicionais, típicos de sociedades estruturadas a partir de normas familiares, de

27 Crespo (2009) discute a ética proposta por Aristóteles. No trabalho, apresenta o conceito de economia discutido pelo autor, bem como as tentativas de adaptá-la ao contexto atual. Ademais, pontua que não haveria uma relação, na obra daquele, entre economia – a oikonomiké, isto é, a administração da casa – e sua concepção de virtude, qual seja, a busca da felicidade, relacionada ao alcance do “bem” ao corpo e de outros externos a este. A razão disto seria que a administração do lar teria como fim apenas a satisfação de necessidades básicas, não possuindo relação entre esta atividade e o desenvolvimento de funções políticas na polis: “[...] the house is not the right place for freedom and, consequently, there is no place in the house for moral life” (ibid., p. 15). Os desenvolvimentos mais recentes, por sua vez, argumentam que haveria uma relação maior entre a administração da casa – “como viver bem?” – e a vida política, criando um vínculo entre o modo como a ação econômica é aplicada e o conceito de moralidade. De qualquer forma, em ambas as abordagens, a economia – ou política econômica – apresenta-se como um aspecto submisso a questões concernentes a vida política.

28 Os pontos discutidos no parágrafo anterior, e nos subsequentes, associam o trabalho de Walzer aos preceitos da Ética das Virtudes.

comunidades menores e outros. Trazem à tona a discussão sobre os limites morais do mercado, que busca incorporar sua própria lógica de funcionamento a questões que não necessariamente devem se pautar em princípios utilitaristas, defendendo que determinados aspectos da vida social deveriam se pautar em outros fundamentos (STAVEREN, 2009a). Ainda, a própria noção de que a Ciência Econômica é uma linha de pensamento neutra de concepções morais ou que o uso destes em questões políticas ofuscaria a boa resolução de problemáticas sociais é criticada (SANDEL, 2010, p. 130). Como pontuado em Hausman e McPherson (1993; 2006) e discutido anteriormente, a regra de Pareto, ou mesmo a ferramenta de ACB, e a comparação de resultados sociais em termos das boas consequências associadas a determinado ato, incorpora uma noção moral na Ciência Econômica, uma vez que este conceito está associado a satisfação das preferências individuais e a uma definição do que sejam essas preferências.

Como pontuado por Staveren (2009a, p. 571), os Comunitaristas tratam o desenvolvimento de valores morais como resultado das interações humanas dentro de uma esfera social, na prática do dia-a-dia, em vez de apresentar um conjunto de normas morais que deveriam respaldar o comportamento humano. Dentro de uma abordagem crítica à teoria ligada ao liberalismo econômico, o comunitarismo fará apontamentos sobre a importância da tradição e do contexto social para a avaliação das razões moral e política; apontamentos sobre a natureza social do ser, em divergência de ideias que defendem a existência de princípios universalistas;

e desenvolve suas avaliações normativas a partir de discussões sobre o papel que a comunidade possui na determinação do indivíduo (STAVEREN, 2009a, BELL, 2016).

Enquanto a teoria de justiça utilitarista aborda a questão de maneira universalista, os teóricos comunitaristas argumentam que os padrões de justiça devem ser encontrados em formas de vida e tradições de sociedades particulares. Este aspecto leva-os a defender que a moralidade varia de contexto em contexto e de tempo em tempo. A partir da hipótese de que fatores culturais afetam o que se define como direitos, suas justificativas morais, além do próprio modo que instituições se estabelecem, o julgamento moral e político dependerá de linguagens interpretativas, com as quais os agentes observam seus respectivos mundos. Deste modo, interpretações políticas derivadas de abstrações sobre o comportamento humano são tratadas como não-adequadas para o entendimento de problemáticas atuais (BELL, 2016).

Criticam os desdobramentos resultantes das obras de Kant e Rawls. Em primeiro lugar, questionam o modo como o indivíduo é tratado por ambas as teorias, como agentes que apenas realizam livres trocas, sem levar em consideração aspectos tais como lealdade e obrigações morais que antecederiam o ato da escolha. O segundo aspecto diz respeito à pressuposição de que os princípios de justiça podem sem definidos sem uma concepção prévia de “bem”. De

acordo com a crítica comunitarista, concepções de justiça e direitos não podem ser neutros a definições sobre “boa vida”. Esta, por sua vez, está intrinsicamente ligada ao ambiente em que a discussão está inserida (SANDEL, 2007 [1988]).

Em complemento, MacIntyre (2007 [1984]) e McCloskey (1996; 2006)29 apresentam uma conceituação do indivíduo como perseguidor da construção de uma narrativa de vida. Isto é, apresentam uma abordagem que, ao levar em consideração os aspectos que influenciaram a formação do indivíduo desde o seu nascimento, dão destaque para a relevância que a história e o contexto de formação de determinado ser possuem no modo como este fará julgamentos diversos sobre o modo adequado de condução de sua vida. Pontua que a avaliação sobre a moralidade intrínseca sobre um ato é uma abstração não apropriada. Uma ação se apresenta dentro de um contexto de possibilidades ou dentro de um conjunto de histórias narrativas.

Todos estes aspectos sintetizados contribuem para a compreensão do porquê de alguns deveres serem amplamente aceitos ou algumas obrigações sociais serem voluntariamente assumidas pelos indivíduos. Segundo Sandel (2007 [1988]), a razão disto não é completamente empreendida pelas abordagens deontológica e utilitarista. Ambas falham em compreender as obrigações legais e responsabilidades morais que se desenvolvem em contextos como um ambiente familiar, uma estrutura municipal, estadual ou nacional, ou mesmo, em situações desenvolvidas a partir de laços históricos.

Vale destacar, por fim, algumas críticas elencadas a esta filosofia moral. Em primeiro lugar, aponta-se que sua abordagem pluralista, ou seja, a vinculação entre virtude e contexto, pode tornar difícil a definição de normas morais que possam servir como guia para a tomada de decisões individuais e sociais. Também, que a ênfase em virtudes e vícios, ao invés de normas ou consequências, pode levar a um relativismo cultural, isto é, permitir a defesa de determinados tipos de comportamento que são consensualmente errados, independente da base moral utilizada para avaliação (WIGHT, 2015; HURSTHOUSE, 2014). Por exemplo, defender que instituições como a escravidão são moralmente corretas pois foram construídas dentro de um momento histórico em que os hábitos e tradições vigentes a avaliavam desta forma. Estes pontos podem indicar que a moralidade de determinada sociedade não é composta, pura e exclusivamente, a partir da concepção de virtudes defendida por esta filosofia.

29 Como ressaltado por Staveren (2009a), McCloskey (1996; 2006) traz contribuições relevantes para este campo da filosofia moral e a relacionam com a economia de mercado prevalecente na contemporaneidade. A autora elenca um conjunto de virtudes presentes na economia de mercado – amor, fé, esperança, coragem, dentre outros – e critica a tradição neoclássica de reduzir o conceito de moralidade a uma única dimensão – a prudência – e afirmar, a partir de seu pressuposto de racionalidade, que os indivíduos são puros agentes maximizadores de utilidade.

Ademais, afirma que valores morais são necessários para o bom funcionamento de uma economia de mercado

4. ANÁLISE DE DISCURSO I: LITERATURA, METODOLOGIA E CONTEXTO