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As dificuldades vividas pelos trabalhadores entrevistados, o desemprego, a precariedade das jornadas de trabalho temporárias e incertas configuram um quadro de vulnerabilidade, retratando a dinâmica do mercado de trabalho e da pobreza em Natal (RN). Já indicamos alguns índices no capítulo “‘Vai trabalhar, vagabundo’: elementos para pensar a afirmação do trabalho”, quando demonstramos que uma das principais características do mercado de trabalho na cidade é a precarização dos postos de ocupação. Além disso, os trabalhadores urbanos inserem-se num contexto socioeconômico de concentração de renda que se agravou nos últimos anos. De acordo com Freire (2005), em 1991 a cidade possuía cerca de 200.115 mil pessoas na condição de pobres, sendo 72.576 mil indigentes. Em 2000, o número de pobres passou para 204.720; e de indigentes, para 78.853. Contudo, apesar de a renda per capita ter aumentado nos últimos anos, a concentração de renda também aumentou. Os 20% considerados mais pobres, que detinham em 1991 cerca de 2,6% da renda, passaram a deter, em 2000, em torno de 1,9%. Para termos uma idéia da distribuição da renda média dos chefes de família na cidade, por bairro, vejamos o mapa abaixo, produzido pela Secretaria Municipal de Planejamento, vinculada à Prefeitura de Natal:

Mapa 01 – Distribuição espacial por bairro do rendimento mensal dos chefes de família em Natal (RN).

Fonte: Prefeitura Municipal de Natal (RN)/Secretaria Municipal de Planejamento (SEMPLA, 2006).

O posto matriz do SINE, como foi dito noutro momento, está localizado em Candelária, um bairro que, segundo a legenda, apresenta renda média entre dois e três mil reais, a segunda maior da cidade, junto com outros bairros. Apesar de o SINE também receber trabalhadores com nível de escolaridade alto e renda acima da média geral, as nossas observações no local indicam muito mais a presença de trabalhadores desempregados ou empregados temporariamente, quase sempre em condições vulneráveis e precárias. Esses usuários provêm de bairros como Felipe Camarão, Planalto, Alecrim, Cidade da Esperança, entre outros, que possuem renda bem menor, às vezes até mais baixa que a faixa mostrada no gráfico, e carregam

ainda o estigma de serem moradores de bairros considerados violentos, redutos de marginais e de pobres47.

Para esses trabalhadores, sendo alguns deles freqüentadores diários do posto, como D. Patativa, D. Mandarim e Sr. Caboclinho, o êxito ou o fracasso na busca por um trabalho interfere, diretamente, na vida cotidiana, dada a necessidade, que “é grande”, como comentou um dos entrevistados. Todos os entrevistados, que vão ao SINE à procura de uma ocupação, dependem do trabalho que conseguem para sobreviver. E, por isso, definem-no como sendo tudo; relacionam-no à manutenção do grupo familiar; concebem-no como sinônimo de sobrevivência.

A esfera do trabalho torna-se central em função de definir a forma como esses trabalhadores vivem cotidianamente: quando há inserção no mercado formal, o emprego com registro em carteira configura uma situação de maior estabilidade. Diferentemente, se sobrevivem da renda obtida com trabalhos temporários e incertos, são vítimas da vulnerabilidade. A construção dos valores da moral e do respeito vem na esteira dessa realidade. Homens, mulheres, sejam adultos sejam jovens, têm no esforço próprio do trabalho a possibilidade de garantir a valorização social através da comunhão de códigos morais difundidos na sociedade que o definem como digno. Essa dignidade também é sinônima de responsabilidade, pelo cumprimento das obrigações e da disciplina do trabalho. Por meio do próprio esforço despendido com uma vida de labuta, constrói-se o sentimento de inserção na sociedade, o que configura, por sua vez, o “fazer parte”. Nesse processo, em que os trabalhadores devem apresentar-se como honestos, em vez de entregues à vida fácil, o trabalho dignifica a dor da pobreza. Mediante o abraço à vida de trabalho, é

47 Há dois estudos locais interessantes, resultados de pesquisas de mestrado, a respeito da

experiência da pobreza e dos estigmas que carregam os moradores de bairros caracterizados como lugares de pobres e delinqüentes: Bezerra (2004) e Gonçalves (2003).

possível consumir o mínimo para manter-se não só física, mas também simbolicamente.

Além disso, os significados constituídos em torno da “dignificação” da pobreza, atribuem aos trabalhadores pobres um diferencial, que vale como um distintivo meio ao grupo do qual fazem parte: uma população vista como homogênea, através de uma lente que os reduz e os remete ao mundo da delinqüência e, portanto, dos vícios, da vagabundagem. Nesse sentido, ser trabalhador e ainda mais ter um emprego fixo coloca-os num patamar diferente daquele que vive dos “biscates”. São atributos que estabelecem condições diferentes de viver um cotidiano de privações; daí, também as diferenciações estabelecidas entre pobres dignos versus pobres indignos e trabalhadores versus vagabundos.

Essas construções se baseiam em códigos morais de comportamento e reconhecimento social que tem na história nacional suas raízes, como mostramos em capítulo anterior. Dado o compartilhamento de tais valores e códigos de conduta, que se apresentam para os trabalhadores como modelos: a condição do ser trabalhador é, nesse sentido, vivida e interpretada material e simbolicamente.

Enquanto um valor norteador dos comportamentos, enquanto um atributo de qualificação moral positiva, – ser trabalhador equivale a ser honesto, digno e batalhador. Tais construções se inserem no campo das representações, no campo do imaginário social instituído, e ganham relevo, na medida em que resolvem conflitos vividos esses sujeitos. Pairando sob eles as imagens elaboradas pelo imaginário da pobreza – “a pobreza era vista […] como um fenômeno que afetava certos indivíduos que não desejavam ou não estavam em condições de integrar-se ao mercado de trabalho capitalista, sendo, por isso, considerada como uma doença

vergonhosa” (GERMANO, 1998, p.30, grifos do autor) –, o ato de trabalhar passa a designar não apenas uma questão de sobrevivência, mas uma virtude que caracteriza os trabalhadores pobres como sujeitos dignos, úteis.

Os usuários do SINE, em sua grande parte, são trabalhadores expostos às fraturas sociais agravadas nas últimas décadas, como decorrência das transformações socioeconômicas. São trabalhadores que vivem nas franjas de um sistema social, que tecem a sua sobrevivência dia a dia. As jornadas diárias e os trabalhos temporários são ocupações que fornecem o alimento e, portanto, a sobrevivência. Manter-se nessa luta cotidiana, que recomeça diariamente, quando saem de casa em busca de uma ocupação, define-os como trabalhadores que optam pela vida digna, pela vida de trabalho honesto, condição diferente daquela experimentada, social e moralmente, por quem opta pela ociosidade.

Esses elementos configuram a constituição da ética do provedor, que liga duas esferas próximas na vida dos usuários do SINE: o trabalho e a pobreza. Prover a família através do trabalho e afugentar a pobreza são códigos de honra e moral, norteadores das condutas assumidas por aqueles indivíduos. A disciplina, o imperativo de economizar, o dever e a propensão ao trabalho constituem o cotidiano, em função de o trabalho ser uma ferramenta provedora da sobrevivência. Por isso, para ponderar a ética do provedor, destacamos como elemento fundamental a relação moral estabelecida com o trabalho48. Por motivações que se ligam mais com a necessidade – daí, o termo prover – que com o desejo de poupar e da acumulação, a ética do trabalhador tem uma configuração específica, que, no caso dos usuários do SINE, também se relaciona, em última instância, com a pobreza.

48 Algumas reflexões, como, por exemplo, a de Souza (1998), apresenta um debate sobre a Ética

Esse debate não se encerra aqui, pois essa ética erige um conjunto de representações, valores e significados que atribui sentido e referência aos trabalhadores, difundindo-se mesmo entre aqueles pertencentes a grupos não vulneráveis e não precarizados, no que concerne às condições de trabalho, por exemplo. Isso nos obriga a refletir a categoria trabalho em si, nas representações imaginárias sociais dos atores dessa trama (CASTORIADIS, 2000).

7 Ser trabalhador: um ser do