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V ÍNCULOS DE UNIÃO COM O TRANSCENDENTE : NOMES MÍSTICOS OU TEOLÓGICOS

MEMORIAL NA TEMPORALIDADE*

4. V ÍNCULOS DE UNIÃO COM O TRANSCENDENTE : NOMES MÍSTICOS OU TEOLÓGICOS

1. FORMASDAPERSONALIDADE: NOMESSUBSTITUTOSOUFUNCIONAIS

A polinomia e a mirionomia são o verdadeiro índice do carácter inexaurível do Ser9. Contudo, mais não são do que a ênfase posta em determinada(s)

característica(s) da natureza ou conduta do sujeito. Não atingem o âmago da personalidade: são, apenas, formas dessa personalidade. Por isso, são nomes

substitutos, manifestam o carácter exterior, a personalidade extrínseca do Ser.

São nomes que permitem mais diferenciar os seus detentores que dá-los a co- nhecer na sua interioridade e natureza íntima.

Regra geral, os nomes substitutos descrevem uma característica da sua ac- ção ou da sua função10. Dão-nos a personalidade fictícia ou aparente, se bem

que actuante. A invocação de um destes nomes não invoca integralmente o Ser, nem o seu conhecimento implica a tomada de poder sobre ele. Há uma separa- ção clara entre o nome e a coisa e/ou atributo. Não constituem uma unidade de nomeação.

Esta é, grosso modo, a situação que identificámos no mito do poderosos nome secreto de Ré, quando, sob a pressão indirecta e disfarçada de Ísis para que o pai dos deuses revelasse o seu verdadeiro nome, este lhe revela os vários nomes pelos quais é designado, como sejam, Khepri de manhã, Ré ao meio-dia, Atum à tarde11. Revelar o verdadeiro nome era libertar todo o potencial mágico que

lhe estava adstrito. Tal facto era do conhecimento de Ré – que procurou, até ao limite das suas capacidades físicas, furtar-se ao desejo de Ísis –, quer de Ísis – que não abandonou o seu projecto se não aquando de um desfecho manifesta- mente positivo para o seu lado. Restou a Ré, na tentativa de evitar perder o seu último talismã, enunciar toda a gama dos seus atributos e nomes substitutos e funcionais. O conhecimento destes nomes por Ísis não a conduziria ao domínio sobre Ré. Eles eram, até certo ponto, ineficazes.

Similarmente, podemos constatar a multiplicidade de nomes do deus Hó- rus: tais nomes simbolizam várias qualidades, acções, identificações, formas ou modalidades que o deus pode praticar ou assumir, ora como deus solar (fa- zendo parte da família de Ré, sendo mesmo considerado seu filho), ora como deus osiriano (filho e vingador de Osíris, rei da eternidade, soberano da perpe- tuidade).

Dentre as várias formas e nomes do deus Hórus, podem citar-se: como deus solar, Horakhti, nome que significava «Hórus no Horizonte» e que também foi chamado «Hórus dos dois horizontes». Tratava-se da forma que Hórus tomou quando começaram a notar-se as suas primeiras características como deus da luz. Ao ser identificado com Ré passou a chamar-se Ré-Horakhti, controlando todo o Egipto. Neste caso, era representado como um falcão ou um homem com cabeça de falcão usando o disco solar a que se enrolava a serpente uraeus ou com a coroa atef. Como deus osiriano, Horpakhered (em grego Harpócrates), cujo nome significava «Hórus, a criança». Considerado filho de Osíris e de sua irmã-esposa Ísis, Hórus surge representado como uma criança coroada com a

dos jovens, com o dedo indicador na boca. Este gesto levou os Gregos a identificarem-no como deus do silêncio e símbolo de prudência e discernimen- to. Muitas vezes, o Hórus criança é representado ao colo de sua mãe que, para o nutrir, lhe oferece o seio esquerdo12.

Sob as suas diversas formas e nomes substitutos, Hórus era a divindade pa- trona dos 2.º, 3.º, 12.º, 17.º, 18.º e 21.º nomoi do Alto Egipto e dos 2.º, 10.º, 11.º, 14.º, 17.º, 19.º e 20.º nomoi do Baixo Egipto13. Personalidade actuante, sem dú-

vida, mas cujo fulcro do comportamento e do Ser escapa sob cada um e sob todos os nomes substitutos.

O mesmo se dá no caso de outras personagens divinas cujas funções cósmi- ca e mágica estão na origem da diversidade de nome substitutos ou funcionais que possuem, como se constata nos capítulos 162, 163 e 165 do Livro dos Mor-

tos, em relação a Amon, e no capítulo 164 do mesmo Livro, em relação a

Sekhemet-Ré-Bastet.

Amon, «o oculto», deus de Tebas, foi considerado deus criador, demiurgo, durante o Império Médio, sendo nesse período identificado com o carneiro, seu animal sagrado. Durante o Império Novo viria a ser conhecido como nesu netje-

ru, «rei dos deuses» depois da sua associação a Ré. Surge representado de múl-

tiplas formas e com características idênticas às de muitos outros deuses14.

Sekhemet, deusa da tríade menfita onde surgia como esposa de Ptah e mãe de Nefertum, era a defensora da ordem divina. «A poderosa» era uma feroz deusa da guerra e da luta. Era considerada o Olho de Ré, representando o poder escaldante e destruidor do Sol. Identificada com Ré e com Bastet, era vulgar- mente representada por uma mulher com cabeça de leoa, usando o disco solar e o uraeus, mas também é reproduzida com cabeça formada por um crocodilo ou pelo olho de Ré15. Tornar memorável assim, pelo nome substituto, é produto

de uma estável organização social e política. Subentende todo um mecanismo de poder e de saber subjacente a tal prática.

A temporalidade agrava continuamente a condição cósmica e, implicitamen- te, a condição humana16. Paira constantemente sobre o Homem e o Cosmos a

estrutura dramática, catastrófica e caótica da entropia. A desordem é «todo o fenómeno que, em relação ao sistema considerado, parece obedecer ao acaso e não ao determinismo do sistema, tudo aquilo que não obedece à estrita aplica- ção mecânica das forças segundo os esquemas prefixados da organização»17.

A apreensão da memória depende, deste modo do ambiente social e político e uma das forças centrífugas do sistema é o nome, o nome substituto.

O uso e eficácia do nome substituto ou funcional e a sua ligação com a me- mória podem ser atitudes conscientes ou inconscientes. Mas, seja como for, revelam uma necessidade intrínseca, profunda, original do sujeito. E quanto é o colectivo que está em causa não se recua perante qualquer obstáculo18. Face à

hipótese de conflito, à dualidade Ordem/Desordem, Organização/Caos, o nome substituto surge como um componente essencial na garantia da ordem, verdade e justiça. Nessas circunstâncias, preserva-se e assegura-se a tradição, não por

razões neutras, inocentes, mas pela memória dos que vivem em sociedade e se comportam em consequência. Há uma motivação prática, existencial, memorá- vel na utilização dos nomes substitutos. O sujeito opta pelo colectivo e prefere guardar em segredo aquilo que, vulgarizado, desestruturaria todo o sistema, a saber, o seu verdadeiro e poderoso nome.

2. REFLEXOSDAPERSONALIDADE: NOMESVERDADEIROSOUSECRETOS

Ao designar as prerrogativas e qualidades do Ser, o nome é significativo do carácter, da personalidade do Ser. Torna-se significativo da personalidade ou das tendências dominantes de um indivíduo, não da personalidade fictícia, mas da autêntica. Designar ou nomear algo ou alguém pelo seu nome verdadeiro é invocar a totalidade desse Ser. Nome e personalidade confundem-se. Conhecer o nome é dispor da pessoa; é tomar posse sobre ela. É o aspecto mágico, o elo misterioso do símbolo, que emerge e que é inerente ao verdadeiro nome. Há uma união estreita entre a designação (o nome, a palavra) e o designado (o Ser, a coisa): constituem uma unidade composta de nomeação.

É, precisamente, o valor mágico e o potencial correspondente ao verdadeiro nome que leva muitas personagens a usarem nomes substitutos, conquanto possuam um nome secreto, o verdadeiro nome, o nome real. Temos como exem- plo da potência mágica do nome verdadeiro o já citado caso do nome de Ré e como exemplo da nomeação enquanto expressão de posse/autoridade/poder/ domínio toda a actividade criadora de Ptah, segundo a cosmogonia menfita.

A estela de Chabaka (rei etíope da XXV dinastia; 716-701 a.C.19), cópia de

um manuscrito do Império Antigo conservado nos arquivos do templo de Mên- fis, descreve o deus Ptah como o criador do Universo, dos deuses e dos homens: os templos, as cidades, os nomoi, a ordem política, as artes. O processo desta acção criadora não é físico, mas puramente intelectual: o deus concebe e insti- tui o mundo no seu coração e materializa-o pela palavra, pela linguagem. Para a mentalidade egípcia, o coração e a língua eram, respectivamente, a sede do pensamento ou inteligência e do comando ou poder20. A língua é o pensamento

consciente que tem o poder de transformar os conceitos em realidade21.

A cosmogonia menfita patenteia claramente a magia subjacente à palavra de Ptah, inerente à força do seu nome. Ela postula, através do poder criador (e destruidor) da palavra, a memória ou o esquecimento. Todo o poder criador de Ptah proclama a unidade do divino, o seu carácter espiritual e a sua imanência na natureza viva, bem como comprova a ideia de um poder superior e avassala- dor. A criação é o reflexo e a prova desse poder inequívoco22.

O mito do poderoso nome secreto de Ré, a que já fizemos alusão e que tratá- mos no capítulo 1 desta II Parte, evidencia a potência do nome verdadeiro que, ao ser revelado a Ísis e depois por ela utilizado nos pronunciamentos mágicos, tornou eficaz o esconjuro do mal, do veneno da serpente23. A revelação libertou

Torna-se, assim, prudente para os humanos não conhecerem o nome verda- deiro, a pronúncia correcta ou a forma de escrita adequada, para que o dinamis- mo do símbolo, a energia dinâmica do Ser, se não liberte. Tentar fazê-lo ou fazê-lo incorrectamente é incorrer em penalização. Equivale a manchar a sua reputação, fama ou honra. É torná-lo impuro. Sendo a pureza um movimento e não um elemento, uma intenção e não uma entidade celular, importa evitar por completo as utilizações vãs dos poderosos, elevados e veneráveis nomes do Universo24.

Todo este sistema que vai do nomear à interdição de pronunciar os nomes secretos torna visível a violência originária da nomeação que pretende, aqui, «pensar o único no sistema», o que não deixa de estar inserido na mesma inten- ção de classificar, diferenciar25.

Como nomes verdadeiros ou secretos, os nomes adquirem um carácter fun- damental na sua ligação com a memória. No campo da consciência, evocam o passado (mítico, glorioso), registam a sua efectiva dimensão, fulgor e alcance no presente e projectam-se, quase independente e autonomamente, no futuro. O nome verdadeiro une todas as dimensões temporais, estreitando-as, aproximando-as, mas sempre ultrapassando-as. É um elo de comunicação entre todas. Só assim se pode atingir a infindável cadeia da história, possuindo o nome verdadeiro uma espécie de domínio mágico sobre a memória. Só o nome verdadeiro e secreto permite sacudir o peso que o Tempo e a História ainda exercem sobre o indivíduo e passar incólume pelo Tempo e pelo Espaço.

Além disso, o nome verdadeiro é também o cordão umbilical que liga o Ser ao Cosmos. Contém todas as características genéricas do Cosmos e exprime simultaneamente todas as particularidades distintivas do Ser. Para decifrar e entender os nomes secretos é preciso pô-los em contacto com uma dimensão maior, extraterrena, supra-humana.

Sendo forma de relacionação com a temporalidade e «facto» vivo e actuante, o nome encontra na memória uma aliada imprescindível: serve a memória servindo-se dela. É, por isso, que a memória é um instrumento e objectivo de poder26.

A proibição do uso e vulgarização dos nomes secretos corresponde a uma necessidade essencial de equilíbrio cósmico-social de ordem ético-política, de que fazem parte noções como diferença, hierarquização, dominação e autorida- de. O nome secreto desloca-se, por isso, para o domínio da consciência, da memória, com um valor e uma acção todo-poderosos e absolutos, enquanto o seu não pronunciamento e a sua ignorância restituem e apresentam, na prática, um aspecto relativo da noção de poder, da magia e da força que lhe estão adja- centes.

O nome é um marca de identificação que confirma e esclarece a pertença do indivíduo a uma classe pré-ordenada, a um sistema primordial de estatutos27.

3. SUPORTESDEMANUTENÇÃOOUDEALTERAÇÃODEESTATUTO: NOMESINSTITUCI-