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5 OS ACONTECIMENTOS

5.2 TENSIONANDO O PANÓPTICO: A VIA NADA

5.2.2 Ópticas

Os três acontecimentos narrados neste capítulo revelam de diferentes maneiras dispositivos de captura das sociedades de controle,

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que substituíram as sociedades disciplinares e que, segundo Deleuze (1992), têm o modo de funcionamento similar a uma empresa.

Nas sociedades geridas através da disciplina, o funcionamento remetia às fábricas. A manutenção da ordem nas instituições - fábricas, escolas, famílias, exército (instituições que estavam em alta nas sociedades disciplinares) - era efetuada quase exclusivamente por vigilâncias reais, disciplina e punição. Em cada instituição operavam regras e penas específicas (FOUCAULT, 1987). A disciplinarização dava conta de normatizar, de fazer funcionar a máquina.

Porém, nas sociedades de controle encontrou-se uma forma mais econômica e imediata de manter a produção e a ordem; a vigilância, independente do contexto, passou a ser exercida permanentemente; agora é capaz de invadir qualquer espaço, pois está instalada na carne. Em cada corpo, uma cela. Em cada cela, um juiz. As próprias pessoas que sofrem com o desgaste provocado pela engrenagem e que pagam caro pelo sofrimento reproduzem o pânico, o utilitarismo, a vigilância, a punição, as normas. Está tudo sob controle.

Segundo Deleuze,

As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e, o ativo, a pirataria e a introdução de vírus. (DELEUZE, 1992, p. 223) O panóptico, analisado por Foucault, era mais difundido (estruturalmente) nas sociedades disciplinares, apesar de sua arquitetura sobreviver ainda hoje, como por exemplo, na base da Marinha ou ao pé da ponte Colombo Salles na entrada da ilha de Florianópolis. Porém, o que permanece operando como mecanismos na sociedade de controle, resquício da sociedade disciplinar, é o panóptico alimentado em nós. Hoje são as próprias pessoas que propagam a moral vigente, que se ocupam com a manutenção da higiene.

No dever cumprir da ordem nas sociedades de controle, as pessoas se mantêm desarticuladas, afastadas por barreiras cujas matérias prima são os valores morais e as demandas das normas. Temos que “a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã

emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo.” (DELEUZE, 1992, p. 221).

Agora, quem pratica o senso de vigilância e punição é qualquer um que seja alimentado pelo sonho de tornar-se herói, famoso; a ilusão de chegar ao topo, ao lugar mais alto do pódio. É o medo de não ser alguém. E de não ter uma medalha em nome próprio. Temos que,

Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de prêmios, mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação da empresa. (DELEUZE, 1992, p. 221) O olhar que vê, identifica e aponta o desvio, está a serviço de um estatuto enrijecido e formatado para as demandas da empresa.

Ficaram evidentes nos acontecimentos narrados essas duas formas de controle operando no grupo: o controle exercido por pessoas que não tinham por função a vigilância; e o controle praticado pelo grupo em censura ao próprio grupo.

Nos casos que em que a interferência das pessoas que passavam tinha o intuito de reprimir as intervenções do grafite na cidade, coube ao grupo a tentativa de escutar e tentar perceber de que forma operava esse tipo de censura, sobretudo, perceber que uma conversa às claras e uma postura ética de responsabilização podem, às vezes, amenizar o conflito, desmanchar a moral que sustenta os discursos disciplinares e, eventualmente, até desdobrar a situação em uma relação ética entre pessoas até então desconhecidas.

No caso da Marinha, coube ao grupo verificar, no exercício estético e político do próprio corpo, os limites da autocensura. A imersão na cidade apresentou pistas a serem seguidas. Através delas, conforme sugere a prática da cartografia, buscou-se intervir na realidade para conhecê-la ao invés de tentar conhecê-la para intervir. É a inversão sugerida por Passos e Barros (2012) em que,

O desafio é o de realizar uma reversão no sentido do sentido tradicional de método – não mais um

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caminhar para alcançar metas prefixadas (metá- hodos), mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas. A reversão, então, afirma um hodos-metá. A diretriz cartográfica se faz por pistas que orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados. (PASSOS e BARROS, 2012, p. 17) O próprio caminhar na cidade e as situações que se apresentaram propícias foram perscrutadas para que a intervenção ganhasse corpo e relações de poder pudessem ser desmontadas.

Ao mundo, que às vezes amargo parece (e muitas vezes o é), um pequeno sopro de alívio. Ao corpo de cada participante das cenas narradas, que parece marcado pelos micros e macros fascismos de cada dia (e muitas vezes o é), um pequeno suspiro. O sopro e o suspiro são sutis, com certeza, mas são vias. Vias para o “além homem” proposto por Nietzsche (2009). Vias para alimentar a credibilidade no mundo proposta por Deleuze:

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos (...) É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. (DELEUZE, 1992, p. 218)

Não são vias grandes, nem pequenas. Apenas vias terceiras, quartas ou quintas, não importa. São outras vias. Desabrochando em outras cidades.

No documento Jovens, arte e cidade: a via de mão tripla (páginas 93-96)

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