• Nenhum resultado encontrado

Recentemente um capoeira, mestre, companheiro de vadiagem, depois de se aposentar do trabalho, seguiu seu rumo para a Bahia. Conheço-o desde que comecei a frequentar o espaço do Mestre Bill na feira. Foi um personagem que esteve presente sempre ao lado do Mestre. Praticou capoeira em outros grupos, mas a Roda da Feira era seu lugar de retorno. Mesmo quando sofreu um sério acidente no trabalho, passando por diversas cirurgias e tendo os movimentos comprometidos, ele estava presente na Roda da Feira. Esse capoeira, reconhecido como mestre pelo Mestre Bill há poucos anos, encontrava na feira justamente o que queria, um momento de vadiação. Simplesmente vadiar, o que não encontrava mais nas academias e nos grupos. No dia de sua partida, perguntei como ele chegou à Roda da Feira e à capoeira. Surpreendentemente descubro que foi o som do berimbau do Mestre Bill, tocado há 29 anos, quando atravessava a Feira Hippie, que o despertou.

Em paralelo a esse processo de despedida, um outro personagem se aproxima da roda. Agora conhecido como Pitoco, apelido cunhado pelo Mestre, um garoto de aproximadamente 6 anos surge sozinho ao lado da Roda da Feira, observando o evento na praça com os olhos vivos, curiosos. Pitoco segue aparecendo nos sábados subsequentes e aos poucos vai se enturmando. Descobrimos que o tio é artesão da feira. Pitoco começa a se jogar na roda estabelecendo os diálogos com os outros capoeiras a partir do que observa. Mestre Bill inicia uma relação de mestre-discípulo. Ensina-o, na própria praça, a tocar os instrumentos, a cantar, a orientar sobre os movimentos que o corpo pode fazer em determinados momentos. Pitoco passa a fazer parte da roda e a Roda da Feira passa a adotá-lo. Isso ocorre não por se tratar de uma criança, parece que a maneira com que Pitoco se posiciona e se deixa levar pela roda, acaba sintetizando o sentimento coletivo de atração e desejo pelo movimento vivo que a roda traz a todos.

Figura 26

Mestre Adilson cantando e Pitoco vadiando ao centro da Roda da Feira Acervo Pessoal

Esses dois personagens parecem seguir o fluxo que é muito anterior à Roda da Feira, mas que ali se faz presente. Seja nas ilustrações de Rugendas e Debret, seja nos encontros proibidos e realizados pelos capoeiras nas ruas, seja nas rodas de rua de capoeira, não mais proibidas, mas coibidas, algo escapa ao cotidiano, algo nessas manifestações provoca as pessoas que logo se veem com uma outra disposição. Por esse contato mágico, furtivo, de mergulho na intensidade, de aproximação ao dionisíaco, que segue a Roda da Feira pela existência transfigurada.

Considerações

Sigo para as linhas finais desse trabalho de dissertação ainda me perguntando como seria possível aproximar a experiência de uma roda de capoeira regada de sutilezas e dobras inconclusas em um trabalho escrito? Mesmo eu tendo sido Roda da Feira por tantas vezes, mesmo tendo no corpo um vasto espectro de sensações energéticas provocadas pelos movimentos com a roda, mesmo observando as diversas dinâmicas encarnada pelos personagens da Roda da Feira, ainda assim, não sinto ter encontrado

palavras, frases, sentenças que pudessem representar essa experiência estética, ética, poética que simplesmente acontece. Toda vez que tento trazer um entendimento a Roda escapa. Como escrever sobre algo que diz sim e diz não para a mesma pergunta?

Sinto como se esse trabalho tivesse sido tentar apanhar água com uma peneira, alguma coisa fica, algumas gotas, mas a água escorre e segue seu fluxo. Exercitado o desapego, não poderia ser diferente, não gostaria que fosse diferente. Que a água siga escorrendo pelas fissuras e que, com essas poucas gotas, algumas reflexões abasteçam o olhar vivo sobre a capoeira.

Considerando a produção, a análise, destaco que a habilidade de Nietzsche em perspectivar aguçou o olhar e permitiu que fosse iniciada uma leitura das forças presentes na capoeira e Roda da Feira. Aqui se realizou um pequeno movimento dentro de dois, complexos e extensos universos - a capoeira e a filosofia de Nietzsche. Apesar de manter o foco apenas em uma obra inicial do autor, “O Nascimento da Tragédia”, foi possível tomar contato com uma potente filosofia que, pela suspeita, revigora pensamentos cristalizados. As questões do corpo, da arte, da capoeira, da educação física, encontram em Nietzsche e em Schopenhauer, dois grandes provocadores, que podem nutrir pesquisas ampliando as discussões nessas áreas.

Pensar a capoeira com Nietzsche me pareceu uma parceria muito poderosa. De certa forma, tanto a capoeira quanto a filosofia do martelo trazem, no eixo de seus movimentos, um desejo de liberdade do corpo, da vida. Se Nietzsche pensa em suas investigações sobre a decadência dos valores atribuídos à vida, ao corpo, propondo uma transfiguração por meio da filosofia, a capoeira ainda mostra sinais de uma força transformadora muito grande, que se dá diretamente no corpo em contato com o belo, com o dionisíaco.

A Roda da Feira implicada nos paradoxos sim e não, “hoje tem e amanhã não”, traz consigo elementos comuns ao repertório da capoeira, entretanto, se apresentam com chaveamentos e disposições próprias. O espaço propício à vadiação, os capoeiras movidos pela vontade de poder, a tendência pouco normativa que se estabelece entre o Mestre Bill, os capoeiras e a roda, e, por fim, a praça, como local de passagem provocando constantemente o inconstante. Nesse terreno, sob essas disposições se ergue a Roda da Feira. Sua existência reflete a permanência do Mestre e a capacidade coletiva de dinamização de forças. Todos querem a roda, cada um buscando exercer sua vontade de poder. Esse jogo indivíduo/coletivo vai propiciando experiências apolíneas e dionisíacas

que pode resultar na demasia apolínea ou, quando há uma síntese do coletivo pela música, podemos observar um despertar dionisíaco.

A Roda da Feira, por existir apenas em rito, em acontecimento, permite o exercício do presente. Passado e futuro deixam de compor modelos perseguidos por uma razão, que busca se legitimar na idealização do que foi ou do que será. Destarte, o jogo ganha presença e o passado é vivido como potência de ação, enquanto ao futuro são lançadas as fagulhas do constante movimento de criação.

Espera-se que a experiência da Roda da Feira, apresentada nessa análise estética, possa compor uma base para reflexões sobre a roda de capoeira e seus movimentos energéticos. A Roda da Feira, como uma roda de rua, traz questionamentos que podem contribuir nas construções desses rituais sensíveis e complexos que são as rodas de capoeira, que, para além de qualquer instituição ou indivíduo, se constituem pelos humanos demasiados humanos em busca de uma experiência coletiva intensa, que eleve suas potências de vida.

A Roda da Feira ecoa a história africana no Brasil, em que a capoeira e outras práticas ancestrais carregam uma sabedoria cosmológica, que possibilita o corpo acessar outros estados, despertar outras sensibilidades e sensações sobre a natureza e sobre os homens. Na contramão do mundo que se faz mais tecnológico, especializado, individualizado e esclarecido, a Roda da Feira, na praça, ainda provoca o fascínio pelo coletivo, pela sombra, pela vadiação.

Figura 27 Roda da Feira - 2018

Referências Bibliográficas

ABIB, Pedro Rodolpho Jungers. Conversas de capoeira. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2015.

____. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Salvador: Editora Universidade Federal da Bahia, 2017.

____. Mestres e Capoeiras Famosos da Bahia. Salvador: Editora da Universidade Estadual da Bahia, 2013.

ABREU, Danilo Silva. Repassando o Passado: Produção e Divulgação de Saberes na

Escola de Capoeira angola Resistência. Dissertação de mestrado apresentada ao

Instituto de Estudos da Linguagem e ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Universidade Estadual de Campinas, 2013.

ALMEIDA, Rogério Miranda. Nietzsche e o Paradoxo. São Paulo: Editora Loyola, 2005 ALVAREZ, Johnny Menezes. O Aprendizado da Capoeira Angola como Cultivo na

e da Tradição. Rio de Janeiro: Tese de doutoramento – UFRJ, 2007.

ALVES, Flavio Soares. O corpo em movimento na capoeira. São Paulo: Tese de doutoramento -USP, 2011.

ANDRADE, Mario de. Aspectos da Música Brasileira. São Paulo. Martins Editora, 1975.

AREIAS, Almir. O que é capoeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. BARBOZA, Jair. Schopenhauer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

CAVALCANTI, Anna Hartmann. Nietzsche, a Memória e a História: Reflexões Sobre

a Segunda Consideração Extemporânea. In Revista PHILÓSOPHOS, V. 17, N. 2, p.

CAMPOS, Hélio José Basto Carneiro. Capoeira Regional: a escola de Mestre Bimba. Tese apresentada no programa de pós-graduação em Educação na Universidade Federal da Bahia, 2006.

CASTRO JUNIOR, Luis Vitor. Campos de Visibilidade da Capoeira Baiana: as festas

populares, as escolas de capoeira, o cinema e a arte (1955 – 1985). Tese apresentada

no

programa de pós-graduação em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2008.

CUNHA, Pedro Figueiredo Alves. Capoeiras e valentões na história de São Paulo

(1830 – 1930). São Paulo: Alameda, 2013.

BRASIL. Ministério da Cultura. Dossiê: Inventário para Registro e Salvaguarda da

Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil. Brasília, IPHAN, 2007

DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Belo Horizonte: Livraria Itatiaia Editora Ltda, 1989. DECANIO FILHO, Ângelo Augusto. Transe Capoeirano: um estudo sobre a

estrutura do ser humano e modificações de estado de consciência durante a prática da capoeira. Salvador: Coleção S. Salomão – 5, 2002.

DIAS, Rosa Maria. A influência de Schopenhauer na filosofia da arte de Nietzsche

em O Nascimento da Tragédia. Cadernos de Nietzsche, n 3, p 07-21,1997

____. Nietzsche e a Música. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994.

DUARTE, R.A. Campinas de outrora. São Paulo: Andrade e Mello, 1905.

FALCÃO, José Luiz Cirqueira. O Jogo da capoeira em jogo. In Revista Brasileira de Ciências do Esporte, V 27, n 2, p. 59-74, jan. 2006

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2a edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1995 (1994).

FIGUEIREDO, Franciane Simplício. Saber e Conhecimento da Capoeira de Rua:

realidade, contradições e possibilidades. Dissertação apresentada no programa de pós-

graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia, 2008.

GOMES, Flávio dos Santos. “No meio das águas turvas. Racismo e cidadania no

alvorecer da República: a Guarda Negra na Corte – 1888-1889”. Estudos Afro-

Asiáticos, n. 21, dez. 1991, p. 88.

LAPA, José Roberto do Amaral. A Cidade: Os cantos e os antros, Campinas 1850-

1900. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Saudades do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1994. NOGUEIRA, L.W.M. Música em Campinas nos últimos anos do Império. Campinas: Editora da Unicamp, CMU, 2001

MACIEL, Cleber da Silva. Discriminações Raciais, negros em Campinas (1888-1921). Campinas: Unicamp, 1987.

MACHADO, Roberto. Nietzsche e a polêmica sobre O Nascimento da Tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005.

MAFFESOLI, Michel. A sombra de Dioniso. São Paulo: Editora Zouk, 2005.

MEDRANO, Lilia; GODOY, João. Campinas: visões de sua história. Campinas: Átomo, 2006.

NIETZSCHE, Friedrich. Introdução à Tragédia de Sófocles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2006.

____. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

____. Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e desvantagem da história

para a vida. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, 2003.

REGO, Waldeloir. Capoeira Angola, ensaio sócio etnográfico. Salvador: Editora Itapuã, 1968.

REIS, Letícia Vidor de Sousa. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil. Curitiba: CRV, 2010.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

SESSO JUNIOR, Geraldo. Retalhos da Velha Campinas. Campinas-SP: Palmeiras, 1970.

SILVA, Eusébio Lôbo. O corpo na capoeira. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. SODRÉ, Muniz. Mestre Bimba: corpo de mandinga. Rio de Janeiro: Manati, 2002.

SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava. Campinas: Unicamp, 2004.

TAVARES, Júlio. Educação através do corpo. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 25. Rio de Janeiro: Mauad, 1997.

VIEIRA, L. R. & ASSUNÇÃO, M. R. Mitos, controvérsias e fatos: construindo a

história da capoeira. Estudos Afro-Asiáticos (34):81-121, dez. de 1998

WACQUANT, L. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002