• Nenhum resultado encontrado

Conforme Ensler (2000, p. 112), assim é vista a boceta: caverna sexual, boca engolidora e atemorrizadora de homens, consequentemente, símbolo da devassidão feminina que deve ser controlada em nome do moralismo religioso; ou “vaso sagrado”, receptáculo de homens, út(eros), isto é, lugar de “dever vindo, herdado de nossas mães e avós” – nas palavras de Barreno, Horta e Costa (1975, p. 130), de gerar descentes sãos para prover uma linhagem familiar patriarcal.

Nesse sentido, a sexualidade da mulher esteve restrita, por eras, ao útero, tendo por fim a procriação.Partia-se do princípio que a natureza, a “aptidão inata” para a

maternidade, anulava o instinto sexual e, consequentemente, aquela mulher que sentisse desejo, prazer sexual seria fatalmente considerada anormal, pecadora.

Esse parece ser um discurso anacrônico, haja vista existirem, atualmente, discursos que pregam a liberação sexual de homens e mulheres. Entretanto, a mulher é ainda um ser visto como subalternizado – seja por algumas sociedades ou por camadas da população dita civilizada, igualitária –, e cujo viés de subserviência é conseguido através da violência doméstica, da exploração e do tráfico.

Bidarra diz, em Erotismo: múltiplas faces(2006), que a necessidade do cristianismo medieval em transformar o pecado original em pecado sexual tem como resultado o horror ao corpo e aos atos sexuais, e cujo cúmulo da abominação será atingido no corpo feminino. “De Eva à feiticeira medieval, o corpo da mulher é o lugar de eleição do diabo”. (BIDARRA, 2006, p. 33) Talvez, por isso, a prostituta seja tão estigmatizada, pois (re)torna a sexualidade à genitália para um fim de desejo, de gozo.

Quando Freud (1978, vol. V) ressalta a associação que a humanidade faz entre organização social e organização sexual e deixa claro que essa necessidade de unificação leva o indivíduo à dessexualização, pois o corpo é usado como fonte de trabalho e não de prazer. Daí a prostituta fugir a convencionalismos pungentes e ser a representante maior da concupiscência: seu corpo expõe o desejo:

[...] Sayonara não podia entender que não a amassem loucamente. Não aceitava que pudesse existir alguém que não se apaixonasse por ela, acostumada como estava a sempre despertar o amor á primeira vista e a atiçar o desejo com o simples roçar de sua saia. Se aparecia um homem disposto a um jogo que não fosse o das paixões, só por isso ela fixava seu interesse nele, observava-o sem poder acreditar, examinava-o dos pés à cabeça tentando decifrar os mecanismos que o tornavam imune e então roia sua indiferença e a cavava com unhas de rato para miná-la e derrubá-la. Para arrematar, abria toda sua esplêndida plumagem de fêmea sedutora, porque não havia nada que não a inquietasse tanto quanto não inquietar. (ANE, 2003, p. 186-7).

Sayonara é como os ratos, uma criatura terrível, infernal, que corrói a indiferença dos homens, tornando-os submissos, sequiosos de seus amores de puta. Por trás dessa sua necessidade de seduzir, está o desejo de ser desejada. Calligaris (2006, p. 69) aponta que isso acontece, primeiro, porque colocar o próprio corpo em anuência do desejo dos outros é um traço característico do feminino. Nesse sentido, a interrogação e o horizonte do desejo dos outros parece ser o que move a menina-puta, mas, como disse, esse é um traço

constitutivo de subjetividade de todas as mulheres. Sem contar que a prostituição não tem, aparentemente – pelo menos para as mulheres de La Catunga –, valor erótico.

Leite, em Eu, mulher da vida (1992, p. 172), enfatiza que a prostituição é o lugar de sonho, bem como da fantasia, então, é através da entrega real do corpo – entregue a muitos sem pertencer a nenhum, portanto, privada, favorita a todos os homens – que Sayonara se individualiza, tem acesso ao feminino que há em si.

Ensler, em Os monólogos da vagina (2000, p. 8), pronuncia que: [...] “a mulher possui o único órgão do corpo humano sem outra função senão a de proporcionar prazer”, então porque ainda hoje as mulheres continuam “posse de homens?”, ou porque as prostitutas continuam – hoje muito mais que antes – segregadas, pintadas como escória? Creio que isso se deva ao medo, à inquietude que a mulher – ou melhor, a sexualidade feminina – desperta no sexo oposto. O mito da “vagina dentata” ou vagina com dentes é exemplar ao mostrar a oscilação entre a repulsa e a atração, o fascínio e a hostilidade que as “agentes de satã” promovem.

O mito da vagina dentada está presente em relatos aborígenes, em lendas egípcias, gregas, indo-europeias e também aparece entre os nativos americanos e africanos. Segundo, Delumeau (1989), esse mito é reencontrado na Índia com uma variante, onde a vagina não tem dentes, mas é criadouro de serpentes. Outra variante desse mito é apresentada por Bidarra (2006), quando ela mostra os decretos elaborados por Buchard, canonista alemão, séc. XII, e tem como objetivo estabelecer punições àqueles que se “entregavam ao pecado da carne”. Burchard assevera que: “[...] as mulheres: elas pegam um peixe vivo, o introduzem em seu sexo e aí o mantém até que ele morra, e, depois, de tê- lo cozido ou grelhado, o dão a seu marido”. 32

Esse religioso fala sobre essa “maquinação feminina”, não só para elaborar um meio de punir os culpados de sua prática, mas também para alertar os homens da feitiçaria feminina, de seu poder de atrair e destruir aqueles que se deixarem arrastar. Esse pensamento imprime no homem, ao longo das eras, o medo, a repulsa e a admiração pelo “segundo sexo” – como diria Beauvoir (1967). Atualmente, na literatura, especialmente após a Revolução Industrial, essa vagina dentada aparece reencarnada na figura da femme fatale, cujo erotismo consome aos homens, subjugando-os. A sexualidade feminina é atemorizante, misteriosa, como mostra Perrot:

32

Citado por Clemara Bidarra, Erotismo: múltiplas faces – (Cf. referência completa ao final do trabalho), – a partir da citação e tradução para o francês de Jacques Berlioz, Lê pécheur et la pénitence au Moyen Age. Ed. Du cerf, 1969.

Avidez: o sexo das mulheres é um poço sem fundo, onde o homem se esgota, perde suas forças e sua vida beira a impotência. É por isso que para o soldado, o atleta, que precisam de todas as suas forças para vencer, há a necessidade de se afastarem das mulheres. Segundo Kierkegaard, “a mulher inspira o homem enquanto ele não a possui”. Essa posse o aniquila. Esse medo da sexualidade da mulher não se pode jamais satisfazer é a origem do fiasco, temor constante de Stendhal. (PERROT, 2013, p. 65)

O mito da vagina dentada representa o medo masculino da fraqueza e da impotência, seu papel é advertir os homens dos perigos advindos das relações com desconhecidas. Isso porque, no inconsciente dos homens, a mulher é insaciável, “cabra e anjo”, filha do diabo, “vampiro do homem”.

Em A noiva escura, Sacramento ama e odeia as putas, aparece impotente diante da vagina dentada e/ou corpo/dentes de Sayonara. Ele a quer santa, mas a ver como esse corpo/dentes capaz de engolir a todos os homens, visto que a simples presença dela o torna débil, menor, porque ele sabe que o corpo dela fala de um desejo. O que chama a atenção é que, nesse momento, ela é Amanda, a bem-amada, que quer a si mesma como esposa/mãe, e Sacramento presume a puta, femme fatale, corpo/língua, vagina dentada, tal qual é Payanés, cuja imagem acredita ser de santa, sendo que ele a quer puta, impossibilitando-lhe o gozo:

[...] putas e mais putas; todas putas. Será que não resta nenhuma mulher decente neste mundo? Sabe o que andam falando de mim? Que casei com Sayonara, a puta do Miramar – gritava Sacramento do fundo da angústia sem fim de seu universo em branco e preto: o céu com Sayonara e o inferno sem ela, ou melhor, o tormento com ela ou sem ela, que só podia ser das duas uma, ou deusa ou escória, ou as duas alternadamente e sem possibilidade intermediária. (ANE, 2003, p. 356)

É evidente, portanto, que há um “furo” entre o saber masculino e o querer feminino. “Os homens sonham, cobiçam, imaginam o sexo das mulheres” (PERROT,2013, p. 65) e o mito da vagina dentada é testemunha disso, além de ser um mito que fala sob o ponto de vista masculino, nada esclarece do porquê mesmo possuidoras dessa “misteriosa porta, que é a porta da vida e da morte” que é a vagina, as mulheres continuarem prezas da virilidade, dobradas às exigências do pai e, posteriormente, do marido que detém o direito sobre o seu corpo.

Chevalier e Gheerbrant (1995) observam que o simbolismo da vulva e do sexo feminino assemelha-se “ao da fonte e também da goela: toma e dá, engole a virilidade e rejeita a vida, une os contrários ou, mais exatamente, transmuta-os, donde o mistério de que é carregada a sua atração.” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1995, p. 965, itálico dos autores). Em A noiva escura, a vagina é vista como um coração palpitante:

– Mas o senhor tem certeza, doc, de que todo mundo tem só um coração? – Por que essa pergunta?

– É que outro dia conheci um homem do Campo 26, um que todo mundo chama Payanés, e senti que eu tinha dois corações dentro do meu corpo, um no peito, que nem o seu, e outro aqui embaixo. – Apanhou a mão do médico e a colocou sobre seu próprio sexo. – Sente como está batendo? Este aqui é meu outro coração. (ANE, 2003, p. 199).

É de fundamental importância que Sayonara distinga desejo erótico de amor, já que essa é uma característica do feminino, assim como é curioso que ela defina a vagina como um segundo coração, como cheiro de “Príncipio”, “Floresta de jasmim almiscarado, profunda, profunda Floresta”, “essência de cálice”, como diz Ensler (2000, p. 90).

A boceta tem deveras “essencia de cálice” – tal qual o “cálice” cantado por Chico Buarque – que mesmo cheia de “De vinho tinto de sangue” –, remetendo a música à Paixão de Cristo e à censura do Regime Militar, mas que em uma analogia com o corpo feminino, o cálice é como o útero, foranto de fecundação, de “príncipio” e de morte que escorre em sangue menstrual, carregado de malefícios. “Mesmo calada a boca”/boceta – em nome do moralismo religioso e social que prega o casamento e o coito sexual com fins de procriação e ver a sexualidade como pecado –, resta o desejo de gozo, “palavra de dentro” fluindo em licor doce com gosto de profundidade.

As mulheres da vida de A noiva escura vivem uma “realidade menos morta”, afinal seu mistério está em afirmar/vivenciar a sexualidade, o desejo. Sayonara, reencarnação de Malinche, é tanto “filho da Santa” – da Malinche mitificada, heroína de um povo – quanto da “outra”, da puta que se entrega a cobiça do conquistador. Trata-se de um exemplo clássico que diz da impossibilidade de pensar o feminino como ser uno. Buraco negro, mulher é ser (en)carnado, como adverte Pommier (1991).

Longe de criar o “próprio pecado”, a mulher é culpabilizada de introduzir o pecado na terra e, com ele, provocar a finitude humana. “Pandora grega ou Eva judaica, ela cometeu a falta original ao abrir a urna que continha todos os males ou ao comer o fruto proibido”. (DELUMEAU, 1989, p. 314)

A mulher é acusada de abrir a urna/boceta, por isso “a teta do diabo”, boca cheia de dentes, caverna (de Platão) sexual “tornou-se a fossa viscosa do inferno” (DELUMEAU, 1989, p.314). Punida por ter uma sexualidade tida como exacerbada, seu desejo é cerceado, penitenciado ao silêncio, e sua vagina é trancada – como se fora porão escuro e úmido, primeiro pelo pai que empresta proteção e integridade (principalmente à virgindade da menina) e depois o marido, que recebe a futura esposa no altar, dando-lhe o nome, reabilitando a pertença masculina sobre o corpo feminino.

Vale ressaltar que os altares dos templos patriarcais, além de semiotizarem a submissão do homem a Deus e,da mulher ao homem – pela simbologia da entrega da filha pelo pai ao futuro marido –, o desenho, a forma desses templos, geralmente, imitam o corpo feminino. Nessa perspectiva, Ensler mostra que:

[...] há uma entrada externa e outra interna (grandes e pequenos lábios); um corredor vaginal central que leva em direção ao altar; duas estruturas curvas e ovarianas em ambos os lados: e, então, no centro sagrado, o altar ou útero, onde acontece o milagre — onde homens dão a luz. (ENLER, 2000, p. 14)

Não é de estranhar que os homens sejam os atores desse palco legitimador de uma suposta supremacia masculina, onde clérigos celibatários “dão a luz” aspergindo água – metáfora de sêmem – nos que serão introduzidos na confraria, se refazendo mãe de mulheres.

De acordo com o ideário religioso católico, as mulheres são agentes do satã e a vagina carrega seu “próprio veneno”: o sangue menstrual, “o líquido amniótico”, “as expulsões do parto”, “os odores”, ela é “fonte de tabus, de terrores e ritos”, como diz Delumeau (1989). Assim, foi através da vagina que Eva foi castigada a sentir dor, à finitude. Também Lilith, a primeira mulher de Adão, que foi “excluída do paraíso” (Velho Testamento) e lançada ao abismo para ser impedida de participar das normas e contradizê- las, porque exigia a igualdade na relação sexual. Marcada pela transgressão, Lilith representa a identidade feminina demonizada e recolhida aos desvãos sombrios de uma ordem cultural pautada pela hegemonia do masculino e é símbolo da revolta e da desobediência às estruturas “castradoras” da mulher.

A boceta congrega, portanto, as polaridades extremadas entre o prazer e a culpa, o gozo e a “permissão sentimental”. Assim, quando Sayonara fala através da pele, da vagina, e diz ter dois corações, é porque através da vagina ela sente as maiores dores, por meio da

vagina o prazer vem coligado à dor, pois o prazer das relações sexuais implica o começo da morte.

Essa aliança morte/vida é representada em diversas culturas como elemento feminino e se instaura, sobretudo, no momento da reprodução. Afinal, é a mulher que gera, que traz à vida, e é também quem leva à morte, pois a condição feminina, a corporeidade impura das figuras das mulheres as tornaram representantes do signo da imperfeição e finitude, sugerindo nossa marca de mortalidade.

Assim, é normal que Sayonara veja a própria boceta como um coração, e que no lugar do coração tenha um tacho vazio, como o diz Renato, o poeta telegrafista mexicano que se apaixona por ela e é desprezado em seu amor.

Claro que Renato assemelha o coração de Sayonara a um “tacho vazio” por crer que ele é desprovido de sentimento – coisa que a puta-menina reconhece ser (em parte) verdadeira –, mas o que esse poeta – empedestando sua amada e pintando-a com tintas de virgem guadalupana – não percebe é que o amor, o sentimento de Sayonara só acontece na vagina.

Interessante lembrar que a boceta/coração de Sayonara foi abençoada pelo Cristo, pois, noite após noite, em decúbito dorsal, “sob uma barba alourada e bem cuidada”, a puta tinha a vagina iluminada, até uma rosa ela diz ter ganho do Cristo. Essa aparente aquiescência de Jesus Cristo com a puta menina está na atitude inovadora do Salvador, que como mostra Demeleau(1989), se cerca de mulheres – sobretudo as pecadoras, como Maria Madalena, a samaritana, etc. –, considerando-as seres inteiros.

Restrepo aproxima ainda santidade e erotismo, nas figuras do Cristo e da puta, através do coração. O Sagrado Coração – que ao invés de estar dentro do organismo do dono, encontra-se ostentado na mão esquerda –, não tem nenhuma semelhança como o “coração abstrato, arredondado, de uma bela cor rosada” (ANE, 2003, p.31), que aparece nas propagandas publicitárias do dia dos namorados:

[...] O que o nosso Cristo ostenta é um órgão contundente, palpitante, de um rubro soberbo, com forma e volume de um realismo horripilante. Uma verdadeira peça de açougue, com dois adereços inquietantes: por cima lança uma labareda, e no centro é cingido por um anel de espinhos que o faz sangrar. (ANE, 2003, p. 32).

O coração, símbolo dos namorados, assemelha-se, tem o formato da vagina, porém, tal qual o órgão do Cristo, o coração/boceta de Sayonara é, também, contundente, soberbo.

Ambos lançam labaredas e sangram. Mas, o fogo lançado do coração divino simboliza o espírito, é fogo purificador. Sayonara incendeia o desejo dos homens. Como as feiticeiras, ela trás o fogo no sexo, suas labaredas são subterrâneas, “fogo que queima sem consumir” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1995, p. 441). A prostituta é domadora do fogo, função diabólica. Se o Salvador anda por cima das águas, Sayonara anda por cima do fogo, como mostra o trecho abaixo:

[...] quando olhou para cima, viu sua menina avançar serenamente, como Cristo sobre as águas, por um estreito caminho aberto entre as chamas, bailarina da vertigem à beira do desastre, e ela jura que viu também como as baforadas de fumaça balançavam seus cabelos com delicadeza e como o fogo se aproximava, manso, para lhe beijar o vestido e lamber-lhe os pés. (ANE, 2003, p. 78)

Segundo Chevalier e Gheerbrant, o fogo distingue-se da água porque ele representa a purificação por meio da compreensão, pela verdade e luz, “ao passo que a água simboliza a purificação do desejo, até a mais sublime de suas formas – a bondade “ (CHEVALIER E GHEERBRANT, 1995, p. 37)”.Nesse sentido, o fogo que lambe os pés e beija as vestes de Sayonara tem uma significação sexual, inclusive associado à técnica de fricção usada para acender o fogo e que imita o movimento sexual.

Por sua vez, o sangue simboliza elementos solidários com o fogo – como diz Chevalier e Gheerbrant (1995) –, como o calor e a vida. Porém, o sangue do Cristo é vida, bebida da imortalidade na transubstanciação eucarística, e o da mulher é símbolo de morte, de decrepitude, e que a leva a inúmeras interdições. Ambos simbolizam vida e morte, ambos feridas de amor, como mostra Restrepo:

– É uma ferida que nós mulheres, levamos aberta uma vez por mês e que não sara, porque é ferida de amor [...].

– Com os homens também acontece?

– Não. Deus quis que só acontecesse com as mulheres. Por isso também amamos mais, porque temos as entranhas doentes de dor.

– Que nem o Coração de Jesus?

– Isso mesmo. Igualzinho. (ANE,2003, p. 49)

Nesse sentido, não é o sangue ou o fogo que um e outro emanam que solidariza o Cristo e a puta-menina, o que os faz iguais é a paixão – cuja origem vem do latim, passion e que significa sacrifício – e, consequentemente, a dor. Como mostra Ensler:

O coração é capaz de sacrifícios. A vagina também.

O coração é capaz de perdoar e reparar. Pode mudar de forma para nos deixar entrar Pode se expandir para nos deixar sair. A vagina também.

Pode sentir dor por nós, pode se esticar por nós, pode morrer por nós e sangrando nos colocar dentro desse mundo

difícil e maravilhoso.

A vagina também. (ENSLER, 2000, p. 114-5)

Coração e vagina são receptáculos de afetos. Um guarda segredos, dores e amores; a outra, além disso, é guardiã do mistério da criação humana. Creio, inclusive, que Deus vive na boceta da mulher para melhor guardar o enigma da concepção do universo. Será que devo pedir para que desconfiem do que digo? Entre as prostitutas de A noiva escura a vagina “desliga” o corpo da mente, transformando-as em seres fragmentados, assunto que já abordei neste trabalho. Assim, volteio sobre a questão da vulva, porque pensar sobre prostitutas é falar sobre vaginas em ação, é arrazoar sobre mulheres cujo altar é a cama, a colcha, sobreposta ao corpo, ao gozo. Como disse anteriormente, as mulheres públicas fazem do corpo suporte identitário; da boceta, objeto em “relações de órgãos” – se as relações forem pagas –; e boceta/coração se o coito for com o amado. No comércio venal do corpo o prazer (não muito claro para a mulher) é bandeira de homem, atestado de virilidade, a genitália feminina é pensada como distinta do resto do corpo, na relação com o amado há a integração, nela a mulher torna-se um ser completo. Não é por acaso que Sayonara “descobre” seu segundo coração quando se apaixona.

Em relação à maternidade, as mulheres de La Catunga são mulheres “sem ú(teros)”, a única mulher que se identifica com a maternidade é Mathilde Monteverde, a índia mãe de Amanda/Sayonara, porém sua predileção é pelo filho mais velho, o filho homem. Seu final, porém, é trágico, visto que ela ateia fogo ao próprio corpo ao saber da morte do filho amado, deixando as filhas no completo abandono. Já a prostituta Sayonara busca as irmãs, recolhendo para si o papel de mãe, mas logo as deixa ao encargo de Todos los Santos, para, mais uma vez, após o casamento com Sacramento, incumbir-se de seus cuidados novamente até fracassar uma vez mais as deixando com o agora ex-marido.

O carinho de mãe “generoso e indiscriminado” das putas era dado aos “muitos meninos e meninas que zanzavam pelo bairro, carentes de afeto e incertos de parentesco” (ANE, 2003, p. 27). A maternidade não é pensada, mesmo quando as crianças nascem são

criadas “de casa em casa e de colo em colo, [...] filhos de todas e de nenhuma” (ANE, 2003, p. 26). Outras recorrem ao aborto. Os pais, elas sequer sabem quem são.

Portanto, a maternidade é/foi o ensejo da realização sexual das mulheres “honestas”, essencialmente ligada ao út(Eros), “corpo de mulher com seu sangue e ciclos e que se rasga noutro corpo filho” (BARRENO, HORTA e COSTA, 1975, p. 105), enquanto é um mal para as “mulheres da vida”, ter “as rosas vermelhas de seu dentro” escorrendo é motivo de felicidade, já que anuncia a não-gravidez, não produtoras de filhos, a boceta é bandeira de libertinagem, corpo de perdição.

As mulheres da vida de A noiva escura se colocam, acertada e conscientemente, longes dos mistérios da maternidade, talvez aí residam seus segredos de ser “exercício de