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CAPÍTULO 2: A PREPOSIÇÃO ÜBER

2.1 Über como preposição: significados espaciais

Segundo Bellavia (2007), os ícones (I) e (III) da rede semântica da preposição über (representados na FIG. 7) apresentam significados espaciais e prototípicos, dos quais todos os outros significados se derivam. A relação semântica entre TR e LM se dá pelo distanciamento vertical; no esquema (I), temos uma relação estática e no esquema (III), uma relação móvel. Ou seja, em (I) a relação entre TR e LM é constante, representando um estado, enquanto que em (III), essa relação varia com o tempo, representando um processo (ou deslocamento). Sendo über uma Wechselpräposition,17 a natureza da relação entre TR e LM irá determinar qual caso será aplicado a essa preposição (acusativo ou dativo). No esquema (I), temos o caso dativo, pois a distância vertical entre LM e o TR não se altera, caracterizando um estado. Já no esquema (III), essa distância varia conforme o TR se afasta do LM em direção ao plano de fundo no horizonte do falante observador, representando um processo (ou um deslocamento), o que determina a aplicação do caso acusativo.

A partir dessas duas correlações centrais – distanciamento vertical e horizontal entre TR e LM – pode-se expandir os significados da preposição über. A rotação do eixo vertical do TR para a direção horizontal resulta na transferência da interpretação de „estado‟ no esquema (I) para processo (deslocamento) nos esquemas (III) e (IV).

FIGURA 8 - Horizontalização do eixo do TR em relação ao LM, do esquema (I) para o esquema (III)

Fonte: BELLAVIA, 2007, p. 97.

De (I) para (III), o eixo entre LM e TR se horizontaliza e torna o TR, antes estático, como objeto em movimento. Didaticamente falando, resulta na escolha entre dativo e

17 As Wechselpräpositionen na língua alemã são preposições que trocam de caso, dependendo do contexto (em

comparação com outras preposições que são sempre utilizadas com o mesmo caso). As gramáticas tradicionais normalmente usam o verbo como referência para determinar o caso. Se o verbo denota movimento, o caso será o acusativo. Já quando o verbo não é de movimento, a preposição deve ser usada com o caso dativo. Bellavia (2007) afirma, entretanto, que uma análise cognitiva do comportamento dessas preposições revela que o fator determinante do caso não é o verbo, e sim a relação TR e LM expressada através do verbo e da preposição.

acusativo. Já a diferença de (III) para (IV) acontece no processo de aproximação do TR com LM, no sentido vertical, até que essa distância seja nula.

FIGURA 9 - Anulação da distância entre TR e LM, do esquema (III) para o esquema (IV) Fonte: BELLAVIA, 2007, p. 98.

Em termos de significado prototípico, Bellavia (2007) explica que os esquemas (I) e

(III) se assemelham pelo elemento „acima‟ de über, enquanto que os esquemas (III) e (IV) se assemelham pelo elemento „Percurso/Movimento‟. Outra característica marcante no esquema

(IV) é a condição necessária ao TR de ultrapassar os limites do LM, passar de um lado para

outro. Caso não haja esse elemento de „transposição‟, outra preposição será utilizada, por

exemplo, auf (em). Esse tipo de definição pode ser usado, segundo Bellavia (2007), como um recurso didático para que o aprendiz de DaF seja capaz de fazer analogias ou identificar diferenças, evitando possíveis interferências linguísticas.

FIGURA 10 - Esquema imagético para a preposição auf18 Fonte: BELLAVIA, 2007, p. 99.

Para os outros esquemas da rede semântica de über, Bellavia (2007) adota o conceito

de „significado divergente‟, mas que pode ser lido como significado derivado dos esquemas

centrais (I) e (III), ou seja, TR estático e TR em movimento, respectivamente. Por exemplo, o esquema (II) é uma derivação do (I), no qual o TR, antes estático, passa a se movimentar, mas mantém a distância vertical com o LM, não ultrapassando seus limites. Isso determina a

18 Ele anda na rua.

LM

manutenção do caso dativo, pois apesar do verbo denotar movimento, o elemento

„Transposição‟, caracterizado pela horizontalização do eixo de TR, não existe.

FIGURA 11 - Esquema (II): das Flugzeug fliegt über der Stadt Fonte: adaptado de BELLAVIA, 2007, p. 95.

Ao analisar o esquema (VI), Bellavia (2007) nota que este é derivado do esquema (IV). A representação de LM, antes plana em (IV), torna-se tridimensional e vertical em (VI). Isso demandaria, segundo a autora, mais energia do TR para ultrapassar o LM, levando em

conta a preservação do elemento „Transposição‟ nesse ícone, uma vez que em (VI) o TR

precisará se deslocar para cima para ultrapassar o LM. Além disso, no esquema (VI), o TR pode ter ou não contato com o LM, enquanto que em (IV) o contato é constante. Para a autora, esse comportamento do TR em (VI) é muito relevante ao se analisar über como prefixo verbal, como veremos mais a diante.

Esquema (VI) - Das Pferd springt über den Zaun

FIGURA 12 - „pular um obstáculo‟ – sem contato Fonte: BELLAVIA, 2007, p. 102.

Esquema (VI) - Er klettert über die Mauer19

FIGURA 13 –„escalar um muro‟ – com contato Fonte: BELLAVIA, 2007, p. 102.

A partir do esquema (VI), o uso de über transfere-se para o (VII), em que o LM é um contentor e o TR é um líquido que transborda dele. Nesse ícone, o elemento Transposição – TR ultrapassa o limite do LM – é mantido. Dessa forma, o esquema (VIII) guarda semelhanças com o (IV) e o (VI): o deslocamento do TR de um ponto para outro (transposição) e o deslocamento do TR de baixo para cima até ultrapassar o limite do LM. Essa interpretação de über pode ser utilizada para o estudo dessa preposição como regência verbal em caso de verbos que expressam emoções.

Esquema (VII) - Die Milch fließt über den Rand

FIGURA 14 – „líquido que transborda de um contentor‟ Fonte: BELLAVIA, 2007, p. 103.

Outra derivação de über a partir dos esquemas (I) e (III) é o esquema (VIII) que mostra essa preposição com o sentido de „cobertura‟. Essa variante acontece quando há uma extensão do deslocamento de TR em (III) assim como uma expansão do estado/posição de TR em (I), fazendo com que este cubra todo o LM.

19“Ele escala o muro” (comparando com o exemplo anterior, esquema (VI) “o cavalo pula a cerca”, o elemento

“contato” em português está presente no verbo “escalar”, que só é possível se a pessoa fizer contato com a superfície escalada).

Esquema (VIII) - Sie breitet die Decke über den Tisch aus

FIGURA 15 - Derivação do esquema (VIII) a partir de (I) e (III): expansão do estado e do deslocamento do TR até o total cobrimento do LM

Fonte: BELLAVIA, 2007, p. 104.

Por fim, Bellavia (2007) apresenta o esquema (V) no qual über é interpretado como

„do outro lado‟. Nesse esquema, o TR está posicionado do outro lado do LM, pois o elemento „deslocamento‟ que existia em (IV), caracterizando a transposição, desapareceu.

Esquema imagético (V) - Sie wohnen über der Straße

FIGURA 16 - Über como „do outro lado‟ Fonte: BELLAVIA, 2007, p. 105.

Nesse caso, o emprego de über é indicado em dicionários e gramáticas com o uso do dativo (estado). Porém, a maioria dos falantes nativos percebe esse uso do dativo como estranho e, muitas vezes, não aceitável. Para o nativo de língua alemã, o natural é usar o acusativo, pois para ele o TR, que já está do outro lado, atravessou LM em algum momento. Em outras palavras, o falante nativo interpreta o TR no esquema (V) como tendo feito um deslocamento imaginário para o outro lado do LM. Sendo assim, o elemento „transposição‟ não foi totalmente descartado. O uso do dativo será aceito pelos falantes apenas quando o

elemento „estado‟ for claramente expresso por um verbo, como wohnen (morar) nas sentenças Über dem Flusse wohnen, die Stadt liegt über dem Strome, er ist über der Grenze20 (BELLAVIA, 2007, p. 105).

O entendimento do emprego desses esquemas, ou seja, a concepção polissêmica do uso da preposição über deve ser analisada, segundo Bellavia (2007), de modo fenomenológico, uma vez que está baseada na experiência do falante com sua percepção de mundo, relacionando cognição e cultura. Assim, nenhum esquema aqui representado é neutro e/ou absoluto, pois cada cena/imagem é construída a partir da observação/perspectiva do falante perante a situação linguística.