• Nenhum resultado encontrado

M ẽbengôkre kaben: língua Mẽbengôkre e alguns de seus modos de fala

de seus modos de fala.

[...] as sociedades indígenas não reconhecem ao chefe o direito à palavra porque ele é o chefe: elas exigem do homem destinado a ser chefe que ele prove seu domínio sobre as palavras. Falar é para chefe uma obrigação imperativa, a tribo quer ouvi-lo: um chefe silencioso não é mais um chefe. Pierre Clastres (2011 [1973], p. 170)

O dia era 02 de janeiro de 2015. Após a cerimônia de confirmação dos nomes na aldeia Bacajá, todos se juntaram na casa do meio: mulheres e homens na lateral. O sol começava a se pôr e um vento úmido anunciava o começo de mais um período de chuvas. Algumas crianças cochilavam nos colos de suas mães e avós. Os Xikrin estavam satisfeitos. Jabotis assados foram trazidos por meninas mẽkukerere [sem filhos] das casas das crianças que haviam sido homenageadas. Katendjore, o primeiro cacique levantou-se e pegou o microfone: “Amejx nỳ õmbikwá” [Feliz ano novo, parentes]. As falas cerimoniais masculinas sequenciaram-se. O chefe antigo [benadjwyry tum] Bep Djàti foi o segundo a falar após seu filho Katendjore. 82

Venho falar junto com todos. Com todos os que já estão crescidos. Juntos, somos felizes. As avós transmitem a cultura para as netas/sobrinhas. Os amigos formais respeitam as relações de evitação. Meus netos hoje querem comer biscoito. Os carros dos brancos precisam trazê-los para nós. Nossas festas são bonitas e não vamos parar de fazê-las. Hoje estamos juntos novamente, felizes. Antigamente, nossos avós eram mais bravos, mas ainda hoje nós seguimos os passos deles. Os nossos parentes das outras aldeias vieram aqui nos visitar e fazer a festa conosco, por isso estamos felizes, comendo junto, assim é como fazemos. Somos fortes, não somos fracos.

Entre os Mẽbengôkre, as falas formais são um tipo de fala utilizadas em algumas ocasiões específicas como nos enunciados locutórios feitos por homens velhos da categoria ngêt [avô, tio materno] nos rituais de confirmação dos nomes e de iniciação masculina, nos chamamentos vespertinos ou matutinos para convocação dos homens à casa do meio [ngàb] e nas narrativas de história dos antigos [moja arem tum], que incluem mitos e acontecimentos de guerra ou caça.

96 Esse tipo de fala é uma prerrogativa masculina. Como nota Cohn (2000) para os Xikrin do Bacajá, os meninos ainda bebês têm a parte inferior do lábio perfurado e adornado com linhas de miçangas para estimular a capacidade oratória, e as orelhas furadas com pequenas estacas de madeira para desenvolvimento da capacidade de audição e entendimento. As meninas têm apenas as orelhas perfuradas, de modo que a manipulação corporal para desenvolvimento da boa fala é uma característica exclusiva dos homens.

As falas formais são geralmente compostas por certas fórmulas específicas de enunciação, conhecidas como ben. Esses enunciados respeitam uma formulação que se repete e são utilizadas na abertura e no fechamento das falas formais expressas em certas atividades como nos rituais, na pesca com timbó, nas expedições de caça, nos chamamentos para aglutinação na casa do meio.

A origem da fala cerimonial ben é narrada no mito do jabuti que sabia falar (Vidal, 1977, p. 231).

Os índios foram caçar e matar anta.

Voltando à aldeia com a caça, viram o rastro do jabuti. Um índio foi atrás e achou o jabuti que estava falando naquele lugar.

Havia índios que queriam matar o índio que tinha pego o jabuti.

Ele chegou com o jabuti na aldeia e disse para mulher que ele tinha pego o jabuti que falava.

No dia seguinte ele saiu para matar os índios que o perseguiam. Mas os índios mataram-no.

Depois a mulher dele casou com um jovem mẽnõrõnu e lhe ensinou a fala do

jabuti (kaprã-kaben) e ele ficou kaben djuoy.

Depois ele transmitiu este ingêt kukro-djo ao seu tabdjuo.

A terminologia kaben djuoy tem por tradução literal “dono da fala” e está diretamente associada à palavra Mẽbêngôkre para se referir a chefes: benadjwàrỳ, que significa dono da fala cerimonial ben. Para Lea (2012, p. 190) o termo benjadjwárỳ é utilizado porque apenas os chefes sabem ou possuem legitimidade para emitir as cantigas conhecidas como ben, cuja mensagem é sempre destinada à coletividade da aldeia. Interessante notar que ben aparece como composição para o termo kaben cuja tradução mais corriqueira é falar.

Por “ingêt kukro-djo”, Vidal (1977, p. 131) define como sendo um privilégio herdado de um ingêt (avô ou tio materno) e transmitido para um ou mais tabdjuo (filhos da irmã ou netos). A transmissão marca o caráter de exclusividade masculina da prerrogativa, porém o mito mostra que foi uma mulher, a esposa do homem morto,

97 quem primeiramente transmitiu essa prerrogativa ao seu segundo marido, após o assassinato do primeiro, que tinha encontrado e capturado o jabuti falante. Uma mulher ter sido a responsável pela transmissão da fala formal kaben djouy a um homem é importante para este capítulo e será retomada adiante quando eu tratar da participação e modo de fala das mulheres na assembleia para o fechamento de um projeto organizado pela FUNAI destinado a elas. Por enquanto, o importante a destacar é a transmissão masculina dessa capacidade de oratória.

As falas formais são realizadas de acordo com alguns procedimentos de entonações de voz, como tom de falsete, usos de paralelismos, onomatopeias e gestualidade corporal específica. Essas falas possuem ainda um ritmo definido que é sempre realizado pelo narrador. Expressões como ãne [dessa maneira, desse jeito] e taynauá [foi assim, isso mesmo] são recorrentes nesses tipos de narrativas. Replicar com perfeição esse ritmo e usar adequadamente as expressões devidas são atitudes que levam tempo, de modo que apenas os homens mais velhos, chefes ou guerreiros com muitos filhos e netos, são considerados aptos a realizar esse tipo de locução. Assim, os homens jovens, com poucos filhos e netos, e as mulheres, mesmo sabendo o conteúdo das narrativas não se arriscam a pronunciar publicamente uma fala formal, porque esse tipo de performance narrativa é prerrogativa homens mais velhos [mebenghet nhõ kukràdjà] 83.

A complexidade dessas formas de locuções narrativas das falas formais é destacada por Coelho de Souza (2014, p. 199) acerca das formulações dos Kῖsêdjê. Segundo a autora, esse gênero performatizado da fala cerimonial, chamado sarën, é traduzido como “contar, relatar, instruir” e difere das histórias dos antigos [methumjiê jarêni] por possuir um padrão relativamente fixo, sonoramente distinto, necessariamente memorizado pelos narradores e composto de metáforas convencionais que, podem ser opacas para a maioria dos ouvintes. Como aponta a autora, os próprios Kῖsêdjê consideram essas formas de fala altamente complexas e difíceis, constituindo o que ela chama de “língua profunda”. Entre os Xikrin, como me explicou Bep Nho durante nossas atividades de tradução da fala dos velhos [metumbre iarem], essas falas são bastante complexas e difíceis de entender devido ao uso de muitas expressões que não são usadas cotidianamente.

83

Esse argumento sobre a relação entre categorias de idade e expressões de certas partes de kukràdjà foi desenvolvida por Cohn (2000, 2005) enfatizando que saber mostrar adequadamente esses conhecimentos, tanto em relação ao gênero quanto às definições etárias é uma importante condição do próprio modo de operação do mẽkukradja, cultura Mẽbengôkre.

98 Entre os autores da etnologia indígena, análises e descrições de falas formais são recorrentes, sendo tratadas a partir de várias abordagens distintas: através de análises linguísticas que envolvem uma reflexão sobre repetições, aliterações e onomatopeias 84; relações entre enunciação xamânica de fala e processos de cura como benzimentos 85; disputas entre grupos clãnicos distintos sobre versões de mitos de origem 86; etnoautobiografias, quando pessoas de grupos indígenas falam sobre si mesmas 87; modos de expressão formal como poéticas xamânicas 88. Minha intenção é apresentar as falas formais de chefes e de guerreiros segundo algumas de suas principais características como as cadências rítmicas, sem adentrar nas questões linguísticas dos paralelismos o que necessitaria de muito mais tempo de pesquisa e de um trabalho intenso de tradução. A ênfase, que proponho, é apresentar a sequência das falas formais segundo posição de chefia e categoria de idade, entoamento da voz, repetição de expressões, gesticulação corporal, uso de bordunas e de maracás [ngô kon]. A descrição das falas formais que realizarei aqui tem como objetivo dar visibilidade à crítica dos Xikrin ao tipo de fala dos brancos, caracterizada como descompassada, tortuosa, desconexa e mentirosa.

As falas formais Mẽbêngôkre são marcadas por um ritmo de narração que difere das falas cotidianas, que são mais livres na questão da forma de expressão, mas que também denotam princípios formais como saber chamar um parente pela terminologia triádica correta, ou como saber demonstrar verbal e gestualmente as relações de pi’am [vergonha] ou de bitchaere [jocosidade] que devem marcar as relações entre amigos formais e parentes afins.

O modo de expressão elocutória das falas formais é realizado de modo a que não haja participação do ouvinte, seja ela individual ou um coletivo de pessoas. Não se espera que o ouvinte reaja verbalmente à enunciação do narrador. A fala formal não é um diálogo direto, o ouvinte deve permanecer em silêncio até o final da narração. Isso quer dizer que essas falas não são questionáveis ou postas em dúvida no ato de sua enunciação. Dito de outro modo, não há espaço para desacordos verbais como ocorre num debate, discussão ou conversa cotidiana. E esse é o foco da fala formal que quero destacar aqui, tomá-la com modo de uma expressão verbal que não comporta

84 Francheto (1983), Guerreiro Junior (2012). 85 Lolli (2010).

86

Andrello (2006, 2010). 87 Cabalzar (2009). 88 Cesarino (2011).

99 desacordos nem disputas, que pressupõe a ausência de adesão de novos conteúdos por qualquer ouvinte à fala do narrador, durante sua enunciação, e respeita um ritmo encadeado e entonações de voz.

Este capítulo sustenta o argumento de certos modos ou característica da fala formal, praticada pelos Mẽbengôkre Xikrin, aparece na maneira como eles realizam suas falas nas reuniões com representantes da empresa consorciada de Belo Monte, a Norte Energia, com representantes de setores da burocracia governamental e com membros de organizações não governamentais, ocorridas durante o processo de licenciamento e construção do empreendimento hidrelétrico. Suas falas nas reuniões são chamadas por eles de kaben pudjy [fala única, fala reta] e são recorrentemente contrapostas ao modo de fala dos brancos, consideradas mentirosas e confusas. Assim, o argumento defendido aqui é que existe um modo específico de realização das falas pelos Xikrin nas reuniões com os brancos que, por sua vez, envolve uma forma específica de performance como a entonação da voz, a gesticulação corporal e a repetição dos conteúdos expressados. Essa forma de expressão utilizada, chamada por eles de kaben pudjy, marca uma diferença importante em relação ao modo como os brancos articulam e realizam suas falas confusas e traiçoeiras.

Segundo os Xikrin, as falas dos brancos são confusas e descompassadas ao passo que a fala dos Mẽbêngôkre é direta e tem apenas um único sentido [kaben pudyi]. Os Mẽbengôkre falam junto e não brigam entre si (pelo menos não na frente dos brancos de Belo Monte). Essa crítica feita por eles às falas dos kubẽn decorre principalmente de suas reflexões sobre a realização de reuniões com a empresa Norte Energia, durante o processo de licenciamento e construção de Belo Monte.

Mas a reflexão sobre as falas tortuosas e mentirosas dos brancos não tem as reuniões com a empresa Norte Energia como o único exemplo acionado por eles. Os mais velhos indicam essa crítica à fala dos brancos como mentirosas quando contam como aconteceu o contato com os brancos e o acordo feito para que eles parassem de brigar com os outros povos indígenas da região e aceitassem morar na área da Flor do Cauxo (localização atual da aldeia Bacajá). Segundo eles, os brancos disseram-lhes que dariam armas de fogo, enxadas, facões, machados. Os brancos disseram-lhes ainda que se aceitassem morar ali eles teriam remédios, roupas e alimentos, facões e que se eles

100 permanecessem na área as pessoas deixariam de morrer 89. Bekanhê, disse sobre o estabelecimento do contato com os brancos:

No começo até que foi bom mesmo. Os kubẽn viam aqui de vez de quando e

traziam muitas coisas para nós. Eu já era grande. Os kubẽn vinham e traziam

comida, remédios, roupas, chinelos, espingarda, munição. Depois, começaram a trazer lanternas, pilhas, redes. Depois, um kubẽn veio morar

um tempo aqui e fez aquela casa para ele lá. Quando ele vinha da cidade ele trazia o rancho [suprimentos alimentares] e dividia para todas as casas. Foi nessa época que a FUNAI começou aposentar alguns velhos. O pessoal já estava ficando velho já. E depois parou. Parou com tudo. Não veio mais ninguém ficar aqui e agora os kubẽn falam que não tem dinheiro, que não recurso, que o índio não precisa disso nem daquilo. Os brancos mentem muito. Mas foram esses kubẽn que prometeram que nos dariam essas coisas, nos ensinaram a usar e agora dizem que não tem mais dinheiro para mandar nada para as aldeias. Os meninos agora não querem ficar descalço, querem ter sandália, bermuda. As meninas e as mulheres agora usam vestido.

Com o intuito de fortalecer a crítica feita pelos Xikrin aos modos de fala dos brancos, descritas no capítulo cinco, apresento a seguir algumas situações típicas em que as falas formais são realizadas. Essas descrições reforçam o tratamento da fala Mẽbêngôkre, na sua forma de kaben pudjy [fala única] como “forma que persuade”. Para isso, o presente capítulo é divido em três partes subsequentes: um debate sobre posição de chefia e oratória Mẽbêngôkre, expressões de fala formal num ritual de iniciação masculina e as fala das menire [mulheres] numa assembleia de finalização de projeto. Ao final, retomo alguns argumentos para justificar a proposta defendida de tratar a fala Mẽbêngôkre como “forma que persuade” e contrapô-la negativamente ao tipo de fala dos brancos.

Chefia e suas posições: primeiro e segundo cacique A complexidade de se falar em chefia entre os povos indígenas nas terras baixas é bastante conhecida entre os antropólogos. Grande parte dos escritos de Pierre Clastres é dedicada a essa questão sobre como falar de chefia indígena sem preencher o conceito com características da ideologia política ocidental voltada para autoridade,

89 Cohn (2005, p. 130) discute os processos de pacificação e contato com os brancos dos Xikrin do Bacajá, a partir do conceito de krono, que traduz como acordo de paz e que difere dos processos de domesticação [uabô] referidos para o amansamento dos cativos de guerra e animais de estimação. Ainda segundo a autora, ao acionarem o conceito krono, os Xikrin estão lembrando que esses acordos não são permanentes, mas circunstanciais, podendo ser revertidos em relações de inimizade e guerra.

101 representação e poder. Clastres foi um dos autores que mais problematizaram essa questão das traduções e do sobreposicionamento de conceitos ocidentais para explicar certos aspectos da socialidade dos povos indígenas e continua inspirar pesquisas antropológicas. Além de provocar reflexões sobre os nossos modos de descrição desses povos, Clastres realiza outro movimento: desenvolver uma reflexão crítica à ideologia política ocidental a partir da descrição dos grupos indígenas. 90

Quando falamos de chefia imediatamente surge em nossa imaginação política certos conceitos que associamos enquanto vizinhos à noção de chefe como representação, poder, autoridade e hierarquia (para falar dos mais evidentes). Mas, no sentido desenvolvido por Clastres, quando falamos de chefia ou de chefe indígena estamos realmente falando de outras coisas e de outras relações. Os conceitos de vizinhança são outros, como generosidade, boa oratória e gêneros de fala, produção de parentes e coletivos, não concentração de riqueza e poder.

Inspirada nas leituras de Clastres, Tania Stolze Lima (2011) questiona a validade do princípio dumontiano de hierarquia para a descrição de relações assimétricas entre os povos indígenas. Segundo a autora, os coletivos ameríndios, que partilham de uma ontologia perspectivista (ou perspectiva), não investem na possibilidade de existência de um ponto de vista que seja capaz de abarcar todos os demais e, com isso, não acreditam numa noção unificada de totalidade.

Esse debate tem sido recentemente incorporado pelos antropólogos dos chamados povos Jê, principalmente a partir da tese de Coelho de Souza (2002) que questiona a dicotomia modelar entre povos Jê como centrípetos (metafóricos e dialéticos) e os povos Tupi como centrífugos (metonímicos e sacrificiais). Não se trata, obviamente, de dizer que todos os povos indígenas das Terras Baixas sejam perspectivistas, animistas ou etologistas, mas de problematizar os modos como os conceitos antropológicos sobre eles vêm sendo desenvolvidos. Como argumenta a autora, durante bastante tempo, o modo mais corriqueiro de apresentação da chefia Mẽbêngôkre foi pautado justamente pelos escritos dos autores do HPBC, que,

90 A relação entre chefes, prestígio e fala é crucial, argumenta Clastres, entre os povos ameríndios. O chefe indígena não tem poder, afirma. E é essa máquina primitiva que impede o aparecimento de um Estado representativo e transcendental que se desenvolveu na sociedade dos brancos. A imagem lapidada por Clastres de que os índios não são um grupo sem o Estado e suas instituições representacionais, mas que são uma máquina primitiva contra o Estado e seu aparato de divisão de poderes que necessita de práticas de coerção é uma dessas alocuções poderosas que continuam a inspirar algumas análises antropológicas. Um exemplo pode ser encontrado na publicação do dossiê Pensar com Clastres da Revista de Antropologia, volume 54, número 2, de 2011.

102 inspirados no debate sobre dualismo como característica intrínseca dos povos Jê, marcaram a chefia como uma posição de poder político, localizada no centro da aldeia e ocupada por homens, a partir de determinadas relações de parentesco. Segundo esse viés, o chefe Mẽbêngôkre seria o detentor de um ponto de vista totalizador da aldeia ocupando, juntamente com os homens guerreiros, o espaço central do círculo e englobando as casas e a produção feminina das roças. O chefe e seus guerreiros seriam assim a figura central desse modelo analítico acerca da política Mẽbêngôkre intra e extra-aldeã (Turner, 1993). Segundo essa literatura dedicada ao dualismo dos povos Jê como sendo a expressão formal das relações sociais, a posição de chefia é envolta de prestígio e influência. Entretanto, isso não quer dizer, como argumenta Coelho de Souza (2002) que prestígio e influência sejam equivalentes homólogos de autoridade e poder.

A organização da chefia entre os Xikrin implica numa relação hereditária de transmissão patrilinear, favorecendo normalmente o filho mais velho 91. Desde o nascimento, os parentes da casa da criança que provavelmente herdará essa condição irão incentivar o futuro chefe a ir se acostumando a ser tratado como tal e a resolver pequenos problemas. É o caso de um dos filhos, não primogênito, de Katendjore, atual primeiro cacique da aldeia Bacajá. O menino é tratado por Caciquinho [em português] por sua avó paterna que incentiva a todos a chamá-lo pela terminologia que invoca seu futuro posto.

O próprio caso de Katendjore, bem como o de seu filho não primogênito, que segundo os esforços de sua avó paterna será seu sucessor, escapa do padrão estabelecido para transmissão de hierarquia da chefia. Katendjore é um dos filhos mais novos de Bp Djàti, cacique antigo, que por muito tempo ocupou essa posição na aldeia Bacajá. Contaram-me que quando Bep Djàti ficou velho e abandonou a posição de chefia foi o seu filho mais velho quem ocupou a posição durante certo tempo. Entretanto, esse filho foi acusado pelos membros da aldeia de reter indevidamente uma parte do dinheiro dos aposentados que deveria ser distribuído entre as pessoas da aldeia92. A situação ficou insustentável e as pessoas deixaram de reconhecê-lo como chefe e por isso, ele abandonou sua posição, sendo assumida por seu irmão mais novo.

91 Lea (2012) e Fisher (2003) afirmam que os filhos caçulas não conseguem assumir posições de chefia por serem preferencialmente destinadas aos filhos mais velhos, que são chamados krá kumrẽn ou krá kukama, que pode ser traduzido como filho-liderança.

92 Antigamente, dizem os Xikrin, o chefe do posto juntamente com o cacique da aldeia eram responsáveis por receber os salários dos aposentados na cidade de Altamira e comprar com o dinheiro roupas, chinelos e alimentos para os moradores do todas as casas da aldeia.

103 O caso acima mostra que mais do que uma repetição de padrões de sistemas patrilineares de transmissão, a condição de chefe não está garantida nem assegurada e que as ações da pessoa nessa posição conta mais do que sua prévia adequação ao posto.

Documentos relacionados