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Durante o Longo Período Dinástico entre os Han e os Qing ( 清朝, Qīngcháo)

2. O Caso da Mitologia Chinesa

2.1. O Desenvolvimento do Estudo da Mitologia Chinesa

2.1.3. Durante o Longo Período Dinástico entre os Han e os Qing ( 清朝, Qīngcháo)

As sucessões dinásticas que ocorreram na China desde os Han até aos Qing promoveram as constantes mudanças e integrações dos povos numa só estrutura. Estes processos cíclicos de renovação dinástica, caracterizados não só pelo aparecimento de um herói que consegue instaurar uma nova ordem, com também por períodos subsequentes de grande prosperidade e seguintes processos de queda, revolta e rebelião que instauram uma outra nova estrutura, foram importantes para a mitologia, ainda que não tenham sido tão profícuos em termos de organização e análise do texto mítico.

Yang e An apontam a redução da esfera de influência do Confucionismo ortodoxo e o aumento do interesse pelo Taoísmo, sua filosofia e textos, para além de um papel crescentemente preponderante do Budismo na sociedade, como as principais mutações sociais que se processaram no final da Dinastia Han e nos inícios das linhagens seguintes, em períodos de grande instabilidade política, social e económica. Na procura constante de uma cosmogonia e cosmovisão, os eruditos da época atribuíam um valor crescente aos fenómenos misteriosos e miraculosos que ocorriam à sua volta, escrevendo ensaios sobre os grandes mistérios do mundo, apontando Yang e An como exemplos o “Tratado sobre a Investigação da Natureza” (博物志, Bówùzhì) de Zhang Hua (张华,

Zhāng Huá), as “Biografias dos Imortais” (神仙传, Shénxiānzhuàn) de Ge Hong (葛洪, Gě Hóng)

ou o “À Procura do Sobrenatural” (搜神记, Sōushénjì) de Gan Bao (⼲干宝, Gàn Bǎo), o mais representativo de todos. 92

A Dinastia Qing, instaurada pelos Manchu, provenientes do Nordeste (东北, dōngběi), acabou por cair em 1912, marcando o fim do longo período dinástico chinês. As crises que afetaram esta última dinastia, como a corrupção, a opressão de grupos étnicos diferentes ou a invasão imperialista pelos países ocidentais, provocaram a proliferação de autores nacionalistas que, através do uso da produção escrita, defendiam a ideia de que o povo Han, a etnia predominante, se deveria opor à dominação Manchu. Sun Yatsen , por exemplo, indicam Yang e An, instou muitas vezes a 93

Cf. Yang e An, 2005:40. 92

Sun Yat-sen (孙中⼭山, Sūn Zhōngshān) (1866 - 1925) desempenhou um dos mais importantes papéis na queda da Dinastia Qing. Fundador do 93

população a negar o domínio dos bárbaros e a restaurar as convenções dos Han. 94 95

Estes apelos à resistência eram feitos através do uso do mito. Muitos autores fizeram uso de mitos de origem para justificar um governo orientado pelos Han. O povo Manchu tinha a sua origem mitológica numa rapariga que, quando estava a tomar banho num lago com outras mulheres, reparou que um pássaro tinha deixado cair fruta de um ramo de pirliteiro que trazia consigo. Depois de comer a fruta, a rapariga em questão engravidou, dando à luz um rapaz. Este, de nome Aisin Gioro (爱新觉罗, Àixīn Juéluó), tornou-se o progenitor dos Machu. Este mito foi utilizado para ridicularizar esta etnia, dado que implicava uma ascendência animal.

2.1.4. A Mitologia nos Períodos Moderno e Contemporâneo

Tendo sido influenciado por círculos intelectuais estrangeiros que promoveram o seu desenvolvimento, o estudo da mitologia chinesa a nível mundial teve início no ano de 1892 com a publicação, em São Petersburgo, da primeira análise do tema que introduziu criativamente o conceito de “mitologia chinesa”. Este documento procurava debater temas como a criação do sistema mitológico, com os seus deuses, heróis e semi-heróis muito sui generis, e subsequente desenvolvimento. Buscava igualmente fomentar uma saudável discussão sobre o mito chinês e as suas relações com os cinco elementos e as crenças veiculadas por confucionistas e taoístas, sobre os quais falaremos mais tarde.

Apesar de nem sempre ter havido um termo específico para o mito, vocábulos ou expressões como “contos imaginários” (虚妄之⾔言, xūwàng zhī yán) ou “narrativas sobrenaturais” (神鬼之说,

shénguǐ zhī shuō) revelaram desde cedo o interesse profundo por fenómenos mitológicos por parte

povo . Esse fascínio, seguindo a crescente paixão pelo ocidente, permitiu um estudo mais conciso 96

sobre a cultura de tempos remotos, o que, na realidade, se traduziu na descoberta da mitologia ocidental pelos intelectuais chineses e no despertar do interesse pela busca de uma possível cronologia do percurso evolutivo da humanidade, pelas origens étnicas dos povos e pela interpretação dos primeiros fenómenos considerados estranhos. Com efeito, numa época na qual

A civilização chinesa, sendo das mais antigas do mundo, desde cedo acalentou a ideia de que se localizava no centro do mundo. Os grandes 94

progressos que conseguiu, como por exemplo o desenvolvimento de um sistema de escrita, justificam essa crença. Como tal, sendo a China o país do centro, os estados vizinhos, em condição de meros bárbaros, deveriam prestar-lhe vassalagem. (NdA)

Cf. Yang e An, 2005:42. 95

Na realidade, a palavra chinesa para mito (神话, shénhuà) surgiu de uma importação da palavra japonesa para esta realidade 神話 (しんわ, 96

ainda se sentiam os efeitos da Guerra do Ópio , o chocar entre realidade e tradição fez com que os 97

intelectuais, também estes já informados sobre as teorias e/ou perspetivas ocidentais sobre o tema e com conhecimentos sobre a descoberta de inscrições em carapaças de tartarugas e em vasilhas de bronze, tivessem a oportunidade de ponderar sobre a sua própria história mais longínqua, revendo o que tinha já sido conseguido.

“O estudo da mitologia chinesa, como uma área científica, é o resultado do intercâmbio cultural que se estabeleceu nos inícios do presente século entre a China e o estrangeiro. O seu aparecimento e desenvolvimento apresenta uma ligação muito íntima não apenas com as vicissitudes que se verificaram no pensamento académico ocidental e nipónico e nas escolas de teorias mitológicas, como também com as novas gerações envolvidas nos estudos antropológicos, arqueológicos e etnológicos, sendo diretamente influenciados pelos movimentos de auto-reflexão promovidos pela intelligentsia e pela abertura a outras culturas.” 98

Deste modo, o estudo da mitologia na China foi evoluindo ao longo dos tempos, tendo experienciado diversos patamares de desenvolvimento:

• A primeira década do século XX constitui a fase embrionária destes estudos. A introdução da mitologia ocidental e dos seus avanços permitiu um preparar das estruturas, teóricas e ideológicas, necessárias para a reconstrução mitológica nativa. “Mito” e “mitologia comparativa” foram, assim, termos introduzidos em 1903 pela tradução de versões japonesas de alguns exemplares da área. Novas ferramentas de trabalho para os estudiosos da época, aqueles acabaram por ser incorporados nas esferas da literatura e da história. Conquanto não se pudesse ainda falar de um estudo especializado, surgiram perguntas como “o que é o mito?” ou “qual é a relação entre a crença religiosa e mito?”, trazidas, nos anos seguintes, por consistentes publicações de autores chineses. Essas obras despertaram a atenção de uma geração de académicos e tornaram-se no suporte teórico para estudos futuros.

A Guerra do Ópio (鸦片战争, yāpiàn zhànzhēng), opondo a China à Grã-Bretanha, ocorreu no século XIX e teve dois episódios, ocorridos entre 97

1839 e 1842 e 1856 e 1860. De uma forma muito sucinta, em 1930, tendo obtido a exclusividade das operações comerciais com a China, a Grã- Bretanha tentou contrariar o grande défice comercial que possuía nas relações com esta potência. Assim, começou a traficar ópio indiano para a China, que resolveu proibir o tráfico desta droga, destruindo um carregamento inglês da mesma. A Coroa Britânica, desaprovando tal ato, recorreu ao uso das forças militares para resolver o problema existente. (NdA)

“具有近代科学意义的中国神话学,是本世纪初中外⽂文化交流的产物。它的发⽣生和发展,与近代西⽅方和日本的学术思潮、神话流派的变 98

迁,⼈人类学、考古学、民族学的传⼈人,有着密切的关系,直接受到我国整个⽂文化开放浪潮以及知识界对中国⽂文化的自觉与反省运动的影 响。” (Yǒu jìndài kēxué yìyì de zhōngguó shénhuà xué, shì běn shìjì chūzhōng wài wénhuà jiāoliú de chǎnwù. Tā de fǎ shēng hé fāzhǎn, yǔ jìndài

xīfāng hé rìběn de xuéshù sīcháo, shénhuà liúpài de biànqiān, rénlèi xué, kǎogǔ xué, mínzú xué de chuánrén, yǒuzhe mìqiè de guānxì, zhíjiē shòudào wǒguó zhěnggè wénhuà kāifàng làngcháo yǐjí zhīshì jiè duì zhōngguó wénhuà de zìjué yǔ fǎnxǐng yùndòng de yǐngxiǎng.) (Ma, 1992:7)

• Entre a década de 20 e o ano de 1937, em que eclodiu a Guerra de Resistência contra o Japão , assistiu-se à seguinte fase dos estudos mitológicos: a do estabelecimento de 99

bases de estudo. Esta área do conhecimento era parte constituinte das bases do movimento cultural do início do século, ganhando sólidas raízes nos vinte anos seguintes. A mitologia chinesa obteve o estatuto de estudo independente, passando a ser valorizada pelo mundo académico e, consequentemente, os mitólogos deram início à produção crescente de obras com hermenêuticas cada vez mais autónomas. O corpo de texto produzido permitiu que, de facto, essa área do saber conseguisse estabelecer bases e se tornasse numa ciência autónoma de todas as outras. O esforço destes autores traduziu-se não só numa maior acumulação de visões históricas e etnológicas que relevam do mito, como também principiou análises mais detalhadas sobre os principais temas e personagens presentes nas narrativas míticas. Por outras palavras, assistimos ao aperfeiçoamento e reatualização metodológica do método do trabalho. • Entre 1937 e os finais da década de 40, as estruturas para o estudo do mito mudaram

de centro e passaram a localizar-se no Sudoeste chinês, uma vez que cidades como Pequim, Tianjin (天津, Tiānjīn) e Xangai (上海, Shànghǎi) , centros incontestáveis de pesquisa, estavam sob domínio japonês. Esta mudança geográfica proporcionou a oportunidade de estudo de várias minorias étnicas locais, com a acrescida vantagem em termos de riqueza de mitos. Os trabalhos de campo, sem precedentes históricos, ampliaram o estudo científico do mito, mudando ou criando novos conceitos. O facto desses registos mitológicos não se remeterem somente àqueles produzidos ao longo do período dinástico sediado no Norte abriu as portas aos académicos da área que puderam analisar fontes preservadas e herdadas oralmente entre as já referidas etnias do Sul. Perguntas nunca antes solucionadas foram finalmente decifradas, simbolizando, na história da mitologia chinesa, a chegada de um período efervescente. • Entre as décadas de 50 e 70, procedeu-se à recolha de fontes orais ainda existentes nos dias de hoje, um empreendimento com o qual, até à altura, não havia comparação possível. No entanto, a democratização basista da sociedade e a emergência e imposição de um dogmatismo de esquerda marxista, leninista e maoísta impossibilitaram, em grande escala, o progresso e aprofundamento do estudo dos

A Guerra de Resistência contra o Japão (抗日战争, kàngrì zhànzhēng), ou Segunda Guerra Sino-Japonesa, (1937 - 1945), corresponde ao segundo 99

período que opôs o Japão à China, sendo que o primeiro ocorreu entre 1894 e 1895. No enquadramento do imperialismo japonês, a conquista de espaço vital era importantíssima para a sua progressão enquanto potência militar. Este segundo período de guerra arrastou-se durante toda a Segunda Guerra Mundial e só terminou com a derrota do Japão em Agosto de 1945. (NdA)

mitos. O próprio Mao Zedong (100 ⽑毛泽东, Máo Zédōng) tinha uma atitude

contraditória para com esta questão. Por um lado, sendo que os mitos eram produção criativa de trabalhadores comuns e revelavam esforços positivos dos seres humanos no sentido de compreender e explicar fenómenos do mundo, Mao Zedong citava ou rescrevia mitos nos seus artigos ou poemas. Por outro, considerava os mitos como negativos e desfavoráveis, porque eram criações supersticiosas e prejudiciais à ordem por si estabelecida por promoverem, ou, no mínimo, permitirem, alguma obediência à natureza e aos seus deuses. Só nos finais da década de 70, aquando da Abertura Económica da China , puderam os especialistas retomar as rédeas da pesquisa já 101

realizada. Neste contexto, surgiram diferentes escolas, diferentes ensaios sobre o fenómeno “mito”, o que acabou por chamar a atenção do mundo académico além- fronteiras. O ênfase dado pelos novos exploradores desta temática assentou essencialmente no combinar da experiência obtida com os trabalhos de campo e as pesquisas textuais já feitas pelos seus antecessores, não sendo vítimas de constrangimentos de nível ideológico.

• Por fim, nas últimas décadas, mitólogos de Taiwan, Hong Kong e de outras regiões do planeta têm contribuído em muito para o florescimento da área através da publicação de obras de grande qualidade. Estes mitólogos concentraram o seu trabalho na pesquisa, análise e tratamento de informação sobre os mitos registados em clássicos antigos, com destaque maioritário para os nativos de Taiwan, obtendo esplendidos resultados. Com a aproximação das duas margens do Estreito de Taiwan e notória 102

comunicação entre eruditos da área, estes conseguiram igualmente atingir grandes conquistas na análise dos mitos da China propriamente dita, dado que foram capazes de absorver técnicas e métodos ocidentais e nipónicos e de os aplicar aos seus trabalhos.

A verdade é que, ainda hoje, o mito é constantemente formado, reformulado e transmitido com objetivo de o preservar. As suas funções culturais são indiscutíveis e os contextos que os geraram

No presente trabalho, como referido, adotámos o sistema de romanização pinyin para todos os nomes chineses. Mao Zedong, no sistema Wade- 100

Giles, antigamente utilizado, escreve-se Mao Tsé-Tung. (NdA)

A Abertura Económica da China (改⾰革开放, Gǎigé kāifàng) tinha como principal intuito a introdução duma economia de livre mercado na China 101

mediante vigilância rigorosa por parte do Governo. (NdA)

Com a instauração da República Popular da China (中华⼈人民共和国, Zhōnghuá Rénmín Gònghéguó) a 1 de Outubro de 1949, o governo do 102

Partido Nacionalista, que se opunha ao Partido Comunista (共产党, gòngchǎndǎng), fundador da República Popular, e que estava no poder até então, fugiu para a ilha de Taiwan, onde continuou a governar. Desde então, as relações entre as duas margens (a chinesa e a taiwanesa) não se tem revelado fácil, embora tenham havido tentativas de reaproximação. (NdA)

são riquíssimos. A mitologia chinesa é uma ciência interdisciplinar, como em qualquer geografia, mas cuja história é mais recente. Pesquisando, escrevendo e publicando teses ou artigos, os mitólogos que se dedicam especificamente a esta área, sejam eles cidadãos chineses ou não, traçaram uma linha extremamente meritória no definir da silhueta da área.

2.2. Confluência de Religiões - Breves Considerações sobre o Papel do Confucionismo,