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A “Ação Especial de Reconhecimento do Contrato de Trabalho”: a lei como instrumento

“RECEBO VERDI” A CULTURA DOS RECIBOS VERDES NA CULTURA

5) A “Ação Especial de Reconhecimento do Contrato de Trabalho”: a lei como instrumento

de luta

Nascida na sequência das mobilizações da Gera- ção à Rasca, em 2012, a Lei 63/2013 desempenhou um papel fundamental neste processo. Em que consiste, afinal, este objeto jurídico singular que nasceu da mobilização dos movimentos de pre- cários? Na prática, esta lei estabeleceu um meca- nismo expedito através do qual a própria Autori- dade para as Condições do Trabalho, utilizando o método indiciário, pode dar origem ao reconheci- mento de relações de trabalho subordinado dis- simuladas e no qual o Ministério Público assume o interesse público desta causa. Ou seja, trata-se de uma lei de combate aos “falsos recibos verdes” que, ao invés de fazer recair sobre o trabalhador precário o ónus de pôr a sua entidade patronal em tribunal para que esta lhe reconheça o con- trato, coloca essa responsabilidade na alçada do próprio Estado.

A chamada “presunção de laboralidade” está definida no art. 12.º do Código de Trabalho. Desde 2009 que, pela lei, se presume existir um contrato de trabalho sempre que se verifiquem algumas (ou seja, pelo menos duas) destas características: uma atividade realizada “em local pertencente

ao seu beneficiário ou por ele determinado”; “os equipamentos e instrumentos de trabalho utiliza- dos pertençam ao beneficiário da atividade”; “o prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo bene- ficiário da mesma”; “seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma”; “o prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura”. Se alguns destes indícios forem observados, presume-se a existên- cia de uma relação laboral, por definição, depen- dente, subordinada.

A Lei 63/2013, de 27 de agosto, veio definir este mecanismo de regularização do falso traba- lho independente que deu um papel acrescido à ACT e uma nova responsabilidade ao Ministé- rio Público. Apesar do alcance desta “ação espe- cial de reconhecimento do contrato de trabalho” estar muito dependente dos meios inspetivos (e, por isso, limitado pela falta de recursos da ACT), o facto é que ela já deu origem a muitas cente- nas de regularizações e tem sido, ao longo destes anos, um instrumento central em várias lutas de trabalhadores a recibo verde, que alcançaram por esta via o reconhecimento da sua relação laboral. Tabela 1: A aplicação da Lei 63/2013 em números

Ano Visitas inspetiv

as T rabalhador es det etados

Situações regularizadas voluntariament

e

pelas entidades empr

egador as na sequência da int erv enção da AC T P articipações ao Minis tério Públic o 2014 1.364 1.510 507 425 2015 1.124 478 291 64 2016 903 559 84 37 2017 587 592 288 317 2018 992 484 158 182 2019 1.698 185 118 92 Fonte: MTSS, 2020 O princípio de um fim?

No momento em que é escrito este texto, alguns dos trabalhadores precários da Casa da Música tiveram já o seu “falso recibo verde” convertido em contrato de trabalho. A maioria, no entanto, quer na Casa da Música quer em Serralves, aguarda o desfecho do seu processo em tribunal, nomeada- mente perante a recusa, por parte dos administra- dores, em cumprir as notificações da ACT, o que não deixa de ser revelador do quanto os próprios Conselhos de Administração destas e de outras instituições se sentem acima dos organismos do Estado que têm como missão garantir o cumpri- mento das leis do trabalho.

Em Portugal, é facto, a precarização dissemi- nou-se, grandemente, através do hiato profundo entre a lei escrita e a lei efetivamente praticada, o que faz com que a mera exigência da aplicação da lei envolva já um conflito intenso com o poder e uma luta transformadora. Por isso, não surpreende a importância, nestas lutas, do recurso ao direito e da utilização estratégica da “Lei de combate à precariedade”, sempre articulada com ações com- plementares (comunicados públicos, denúncias ao media, manifestações no espaço público, interpela- ção das instituições políticas), determinantes para impulsionar os próprios processos inspetivos.109

Serralves e Casa da Música não são, contudo, casos isolados no panorama cultural em Portu- gal. A mobilização destes dois grupos de traba- lhadores destapou uma realidade que é muito mais generalizada e relativamente à qual tem pre- valecido uma espantosa impunidade. Em todo o setor da cultura, dos espetáculos e do audiovisual, abunda o recurso ao falso recibo verde e ao falso outsourcing. O exemplo dado pelos precários des- tas duas instituições parece estar, no entanto, a despertar outras denúncias e uma maior consciên- cia dos direitos e dos instrumentos disponíveis

109 No caso de Serralves, depois de um primeiro relatório ins- petivo em que a ACT, tomando como única fonte a própria Administração, afirmava não ter encontrado “falsos reci- bos verdes” na instituição, há um volte-face e, mudando de posição, a autoridade inspetiva acabaria por dar razão aos trabalhadores.

para realizá-los. Não seria uma surpresa, por isso, se os próximos tempos vissem eclodir processos semelhantes noutros espaços. Estaríamos, neste caso, a assistir ao princípio do fim da cultura dos recibos verdes na cultura?

Outubro de 2020

O autor segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE ISTO DE