2. BOURDIEU E A EDUCAÇÃO
2.2 AÇÃO PEDAGÓGICA
É provavelmente por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando
o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia
da “escola libertadora”, quando ao contrário tudo tende a mostrar que ele é
um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a
aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança
cultural e o dom social tratado como dom natural
17.
A abordagem sociológica de Bourdieu é radical e contradiz todas as
expectativas positivas acerca do sistema de ensino. Ensinar é um ato de poder, uma
violência, violência simbólica que escamoteia uma violência material.
2.2 AÇÃO PEDAGÓGICA
Por tal, “toda ação pedagógica (AP) é objetivamente uma violência simbólica
enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural”
18. Esse duplo
arbítrio de imposição e cultura é, para dominantes e dominados de uma formação
social, a ação pedagógica exercida pelos grupos (educação difusa), família
(educação familiar) e sistema de ensino (educação institucionalizada). Todavia,
Bourdieu reserva ao sistema de ensino institucionalizado um papel importante para a
dominação da classe dominante.
Caso se admita que a cultura e, neste caso particular, a cultura erudita
[aquela que deve ser transmitida] em sua qualidade de código comum é o
que permite a todos os detentores deste código associar o mesmo sentido
às mesmas palavras, aos mesmos comportamentos e às mesmas obras e,
de maneira recíproca, de exprimir a mesma intenção significante por
intermédio das mesmas palavras, dos mesmos comportamentos e das
mesmas obras, pode-se compreender por que a Escola, incumbida de
transmitir esta cultura, constitui o fator fundamental do consenso cultural
nos termos de uma participação de um sendo comum entendido como
condição da comunicação. O que os indivíduos devem à escola é sobretudo
17
BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In:
Escritos de educação. NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio. (orgs.). 11. ed. Petrópolis: Vozes,
2010. p. 41.
18
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do
24
um repertório de lugares-comuns, não apenas um discurso e uma
linguagem comuns, mas também terrenos de encontro e acordo, problemas
comuns e maneiras comuns de abordar tais problemas comuns. [...] O
desacordo supõe um acordo nos terrenos de desacordo, e os conflitos
manifestos entre as tendências e as doutrinas dissimulam, aos olhos dos
que deles participam, a cumplicidade em que implicam e que choca o
observador estranho ao sistema
19.
O sistema de ensino, em seus níveis hierárquicos, é responsável pela
transmissão dos conteúdos e modos daquilo que deve, arbitrariamente, ser
transmitido da cultura da formação social por uma ação pedagógica em forma de
uma educação valorativa, a exemplo da função da escola. Bourdieu chega ao
conceito de educação a partir do seguinte raciocínio:
A AP é objetivamente uma violência simbólica, num primeiro sentido,
enquanto que as relações de força entre os grupos ou as classes
constitutivas de uma formação social estão na base do poder arbitrário que
é a condição da instauração de uma relação de comunicação pedagógica,
isto é, da imposição e da inculcação de um arbitrário cultural segundo um
modo arbitrário de imposição e de inculcação (educação)
20.
A comunicação pedagógica, o ritual de transmissão de conhecimento e
maneiras de estar no mundo a serem inculcadas pelo agente, pressupõe uma
seleção de coisas a ser apreendidas; uma cultura arbitrariamente imposta e que
deve ser necessariamente internalizada como objetivo da própria ação pedagógica.
Para o autor, a ação pedagógica é um arbítrio cultural, ou seja:
[...] violência simbólica, que diz expressamente a ruptura com todas as
representações espontâneas e as concepções espontaneístas da ação
pedagógica como ação não-violenta, seja imposto para significar a unidade
teórica de todas as ações caracterizadas pelo duplo arbitrário da imposição
simbólica. Compreende-se ao mesmo tempo a dependência dessa teoria
19
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009. p.
206-207.
20BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do
25
geral das ações de violência simbólica [...] a uma teoria geral da violência
simbólica e da violência legítima
21.
Para que haja comunicação pedagógica é necessário que se estabeleça uma
relação de comunicação, uma relação de força sociologicamente construída que
define a forma de imposição e inculcação
22. Não há nada de espontâneo e
consensual na ação pedagógica, sua forma, imposição e o conteúdo cultural são
sempre arbitrados para ratificação de um sistema simbólico de modo que pareça
legítima. A ação pedagógica dominante é aquela da classe dominante, à medida
que:
[...] tanto por seu modo de imposição como pela delimitação daquilo que ela
impõe e daqueles a quem ela o impõe, corresponde o mais completamente,
ainda que sempre de maneira mediata, aos interesses objetivos (materiais,
simbólicos e, sob a relação considerada aqui, pedagógicos) dos grupos ou
classes dominantes
23.
Essa seleção de significações, que no caso da cultura dominante é a seleção
de significações dos dominantes, produz um sistema simbólico arbitrário e
necessário à manutenção da própria coerência das funções e da cognição das
relações de poder
24.
A AP é objetivamente uma violência simbólica, num segundo sentido, na
medida em que a delimitação objetivamente implicada no fato de impor e de
inculcar certas significações, convencionadas, pela seleção e a exclusão
que lhe é correlativa, com dignas de ser reproduzidas por um AP,
re-produzir (no duplo sentido do termo) a seleção arbitrária que um grupo ou
uma classe opera objetivamente em e por seu arbitrário cultural
25.
21
Ibidem, p. 18.
22Ibidem, p. 28.
23Ibidem, p. 28.
24Ibidem, p. 28.
25Ibidem, p. 29
26
Essa violência simbólica produzida pela AP se reproduz sobre a formação
social, garantida por um lado à legitimidade do sistema simbólico dos significados
(valores simbólicos e econômicos) e socialmente da própria manutenção das
relações de poder entre as classes. Esse sistema simbólico compartilhado e que dá
coesão social em nada se deve a um significado “puro”, “essencial”, “in natura”, ou
mesmo, “humano”; senão a um conjunto de valores arbitrariamente constituído para
a dominação dos dominantes de grupos ou classes de uma formação social. Assim:
Isso significa que a AP, que está sempre objetivamente situada entre dois
pólos inacessíveis da força pura e da pura razão, deve tanto mais recorrer a
meios diretos de coerção, quanto as significações que ela impõe se
impuserem menos por sua força própria, isto é, pela força da natureza
biológica ou da razão pura
26.
Isso não quer dizer que em uma sociedade somente vigore uma AP, a AP
dominante. Todavia todas as diferentes APs serão sempre interconectadas à AP
dominante, uma vez que é ela que inculca os valores arbitrariamente constituídos
como valores dominantes. É através da AP dominante que se opera a reprodução
cultural e social, desta forma:
[...] contribui reproduzindo o arbitrário cultural que ela inculca, para
reproduzir as relações de força em que se baseia seu poder de imposição
arbitrária (função de reprodução social da reprodução cultural) (BOURDIEU;
PASSERON, 2009, p. 31).
É importante anotar que Bourdieu afirma que todas as variações de AP, são
sucedâneas da AP dominante.
Numa formação social determinada, as diferenças AP, que não podem
jamais ser definidas independentemente de sua dependência a um sistema
das AP submetido ao efeito de dominação da AP dominante, tendem a
reproduzir o sistema dos arbitrários culturais característicos dessa formação
social, isto é, o domínio do arbitrário cultural dominante, contribuindo por
26
No documento
EDUCAÇÃO AMBIENTAL TRANSFORMADORA E BACHARELISMO: UMA LEITURA A PARTIR DE PIERRE BOURDIEU
(páginas 37-41)