• Nenhum resultado encontrado

Ações físicas na iniciação e treinamento do palhaço

2 O PALHAÇO: PROCESSOS DE INICIAÇÃO E TREINAMENTO

2.2 O MÉTODO DE AÇÕES FÍSICAS NO PROCESSO CRIATIVO DO PALHAÇO

2.2.1 Ações físicas na iniciação e treinamento do palhaço

Para abordar este tema, tomarei como base principal o trabalho realizado junto à Cia Buffa de Teatro com a diretora Joice Aglae Brondani O método de iniciação de palhaço desenvolvido por Brondani, como parte de sua pesquisa de mestrado29, parte da técnica que Luís Otávio Burnier criou junto ao Lume. Tal técnica se fundamenta na criação de partituras físicas e de ações codificadas e constitui-se de uma preparação energética e técnica, como aquela proposta por Burnier. Contudo, apesar de tê-la tomado como base principal e guia de seu trabalho, a diretora, porém, não se limitou à cartilha do Lume, forjando seu próprio método, no qual agregou as influências e ensinamentos de outros mestres que alimentaram sua busca artística. Assim, do ponto de vista teórico e conceitual, ela também se apoia em Dario Fo e Jaques Lecoq, principalmente.

Dario Fo contribui com a visão de um clown mais conectado com a ancestralidade, o qual, através das energias do baixo ventre, de sua força, exerce vorazmente sua fome de viver, quebrando os paradigmas sociais, desconstruindo as barreiras que estes nos impõem. Este palhaço é o portador da crueldade, pois relativiza as regras sociais, expõe o ridículo da condição humana e, por isso, provoca o riso debochado e crítico. Outro aspecto que também Fo enfatiza é a necessidade de preparação técnica do ator de clown, que inclui saber tocar instrumentos, cantar, executar acrobacias e outras habilidades circenses. Para Fo, o acúmulo de técnicas torna-o mais atento e ágil, mais adaptável a outras linguagens cênicas, potencializa sua capacidade expressiva. Assim, Brondani conclui:

Para nós, os pontos conceituais, do discurso e da prática de Dario Fo, que se fazem presentes nos espetáculos resultantes do processo de encenação sobre o qual estamos refletindo, são: o ator do ofício de clown que deve cercar-se de outras técnicas e ter total consciência destas e de seu corpo e o clown como portador da crueldade (tomada de consciência), do grotesco, do deboche, do poder e da necessidade de justiça (2006, p.46).

Por utilizar os elementos ancestrais e as energias do baixo ventre, o clown de Dario Fo possui aspectos grotescos e escatológicos, deseja saciar sua fome de sexo e comida. Tais

29

BRONDANI, Joice Aglae. Clown, Absurdo e Encenação: Processo de Montagens dos Espetáculos

“Godô”, “Trattoria” e “Joguete”. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-

características o aproximam bastante da figura do bufão e outros antepassados, como o Arlequim da commedia dell’arte.

Um último e importante aspecto adotado de Dario Fo é o grammelot. Esta constitui uma forma de comunicação verbal fundamentada numa língua inexistente, uma série de onomatopeias, ruídos e sons que se completam com o gesto e a ação. No Brasil, costuma-se chamar essa técnica de blablação. O grammelot intensifica a comunicação do corpo, ao mesmo tempo em que só tem sentido quando “vestido” por ele. É uma técnica que enriquece a partitura de ações do clown, visto que cria uma composição entre imagem sonora e visual, pois o som deve ser uma expansão do corpo do ator, dilatando-o. No espetáculo Joguete, dirigido por Brondani, a utilização do grammelot se dava em momentos cruciais, de forma que os tornava mais intensos. Embora não constitua uma linguagem, em comunhão com a ação ele se torna perfeitamente inteligível.

Jaques Lecoq, por sua vez, traz uma visão bem diferenciada do palhaço. Contrapondo a Fo e o grotesco, ele explora a beleza que está no sublime e na poesia. O clown de Lecoq carrega o sentimento do mundo, causa comoção, o ridículo que ele expõe vem através de suas fraquezas e não da pulsão sexual. Nas palavras de Brondani: “Quando falamos da visão do sublime em Lecoq é porque ele coloca as energias do baixo ventre de forma sublimada, transformando-as em sentimentos interiores, “nobres”, introspectivos e existencialistas” (2006, p. 49).

Há outros elementos da poética de Lecoq por ela adotados em sua própria poética, inclusive alguns comuns também a Burnier e a Dario Fo. Contudo, considero a questão dos sentimentos sublimados o ponto crucial no seu trabalho, a característica que se torna mais flagrante nos espetáculos, pois mesmo quando se realiza uma cena escatológica ou grotesca, dali emanam poesia e leveza.

Com relação aos procedimentos, relatarei alguns pontos do treinamento, com vistas ao entendimento da aplicação destes conceitos e técnicas na prática. Retomo, pois, o momento de iniciação já anteriormente detalhado, com fins de rememorá-lo.

O processo de iniciação ao palhaço, proposto por Brondani, é constituído basicamente por um treinamento energético e técnico. O treinamento energético fundamenta-se na disponibilização do corpo para o jogo pela exaustão física, a dança dos ventos e a dança pessoal. Tais elementos visam transpor barreiras físicas e mentais do ator, com o fim de disponibilizar seu corpo para o jogo do palhaço em um estado alterado de energia. A parte mais técnica do trabalho é constituída pela realização de jogos dramáticos e teatrais para a

manutenção e estabilização do estado e descoberta da lógica de seu clown. A técnica é também usada para adquirir instrumentos que facilitam o jogo e a improvisação. As partes técnicas e energéticas da iniciação não estão necessariamente apartadas entre si ao longo do treinamento, ao contrário, elas estão imbricadas na realização de atividades que podem envolver a ambas.

No período de treinamento para a descoberta do seu palhaço, na etapa de exaustão física e também de jogos dramáticos e teatrais, Burnier propõe a realização de algumas ações físicas, que são também utilizadas por Brondani em sua iniciação, são ações básicas como formas de andar, correr, saltar, movimento das articulações, impulsos em diversas partes do corpo. Todos esses movimentos são realizados com variação de ritmo (de lento a rápido) ou de nível (baixo, médio e alto).

Brondani faz uso também de estímulos à imaginação, conduzindo os atores por situações que os levam a experimentar as referidas ações, além de diferentes sentimentos e sensações. Então, muitas vezes, nos momentos das instruções, ela nos conduzia por locais imaginários, situações a que se devia reagir de forma que cada clown fosse encontrando sua maneira própria de fazê-lo.

Dentro deste processo seguido por Brondani, a utilização da música é um elemento fundamental, uma vez que todos os encontros eram conduzidos inteiramente por uma trilha, que vinha desde o alongamento, passando pela exaustão física, execução de ações e jogos. A música foi o instrumento utilizado por ela para conseguir manter o fluxo de energia necessário ao intenso treinamento, determinando o ritmo dos exercícios. Talvez este seja um dos pontos de diferenciação entre a proposta de Brondani e o treinamento do Lume, pois na pesquisa de Burnier consta a referência à utilização da música, porém, em momentos específicos e isolados. Por sua vez, Brondani usa a música como estímulo e guia de seu trabalho.

Após o período de iniciação e experimentação com seu clown, quando se parte para o processo criativo de um espetáculo teatral utilizando esta linguagem, o método de ações físicas é uma técnica que ajuda a criar, registrar e codificar ações que compõem a cena. Neste caso, as ações se justificam por uma ordem lógica entre si, através de ação e reação, sem a necessidade de uma lógica emocional.