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1.1. A Historiografia

1.1.2. A África e a expansão marítima: abordagens possíveis

Muito embora a História da Expansão Marítima Portuguesa seja há muito discutida, sobretudo, pela historiografia portuguesa, entende-se que se trata de um tema ainda longe de ser esgotado em seus múltiplos aspectos. Comentando tal questão, o historiador português Luís Filipe Thomas afirma, no proêmio de seu livro intitulado De Ceuta a Timor, publicado no início da década de 1990, que “quase tudo está por fazer” e “ no que está feito, muito há a refazer”, o autor continua, afirmando o seguinte:

Tirante dois períodos - o dos descobrimentos henriquinos e o das conquistas albuquerquinas- dissecados, ruminados e celebrados ad

nauseam, quase todo o resto permanece na penumbra: não só faltam

estudos circunstanciados e coletâneas documentais onde os assentar, como a própria documentação inédita dos arquivos está em boa parte por classificar ou apenas inventariada pelo grosso.29

Thomas que à altura do trecho supracitado já possuía mais de trinta anos de pesquisa e docência na área, fez parte de uma geração de historiadores portugueses que, em razão dos centenários dos descobrimentos e do interesse governamental em exaltar esses feitos , tiveram a oportunidade de trabalhar em pesquisas de grande vulto sobre o tema. Entre as décadas de 1960 e 1990, muitas pesquisas sobre a Expansão Marítima portuguesa foram impulsionadas em decorrência de incentivos governamentais e nesse período muitas obras importantes foram compostas, muitos documentos foram catalogados e muitos destes documentos foram revisitados, como as crônicas de Zurara e os relatos de Viagem de Luís de Cadamosto e de Diogo Gomes Sintra, por exemplo.

É certo que a geração de Thomas fez muito pela historiografia da História da Expansão Marítima, portuguesa e europeia, no entanto, como o próprio ressalta, muita ainda há de ser feito e refeito.

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Nessa perspectiva, o medievalista francês Jean Devisse e o africanista egípcio Shubi Labibi ressaltam que no lugar do termo “descobertas,” usado para se referir ao fenômeno das grandes navegações europeias durante o século XV, seria preferível utilizar “redescoberta”30. Relativiza-se assim a própria noção de descoberta, no que tange à

exploração europeia, notadamente portuguesa, sobretudo, na Costa Atlântica Africana. No mesmo sentido converge o pensamento do historiador congolês Elikia M’Bokolo, segundo o qual “o descobrimento” é um tema a ser “reapreciado”, elencando três razões para se revisitar a problemática do descobrimento.

Primeiramente o autor afirma que muito antes dos portugueses, os árabes já tentavam há muito explorar a costa africana; a segunda razão se deve ao fato de os próprios africanos que habitavam o litoral Atlântico não terem alimentado, nas relações com o mar, a irreprimível fobia que lhes foi durante muito tempo atribuídas 31; assim,

segundo M’Bokolo:

A abertura do Atlântico foi uma operação de grande fôlego durante a qual a sede de ouro e a busca das especiarias, a audácia de navegadores portugueses, assim como de espanhóis e de italianos, interessados no lucro das operações, os lentos progressos técnicos e o conhecimento progressivo do terreno acumularam os seus efeitos.32

Nesse sentido, entendemos necessária a apreciação da História da Expansão Marítima Portuguesa, no século XV, vinculada à própria História da África, mais precisamente com a História da África Ocidental, considerando as especificidades dos povos ali consolidados e das relações estabelecidas entre estes e os exploradores europeus. É necessário, portanto, entender o movimento expansionista não apenas a partir de uma via única , mas levando em conta também a importância de outros povos nesse processo, notadamente os árabes e os “guinéus”, da Costa Ocidental Africana.

Nesse sentido, há que se ressaltar a situação dos estudos acerca do continente africano. Por muito tempo a produção historiográfica sobre a História da África fora eminentemente estrangeira e marcada pelo colonialismo europeu. A temática fora, portanto, tratada de maneira racializada e eurocêntrica de modo que tal visão se perpetuou

30 DEVISSE, Jean; LABIBI, Shubi. A África nas Relações Intercontinentais. In: NIANE, Djbril Tamsir

(Org).História Geral da África. África do século XII ao XVI. Brasília: UNESCO, 2010, p.751.Volume IV.

31M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações.Salvador: EDUFBA, 2011, p.257. 32 Ibidem, p.257.

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na sociedade ocidental, sendo percebida, ainda hoje, em estudos sobre o assunto33.

Quanto a tal questão, Elikia M’Bokolo faz as seguintes considerações:

O fato de os primeiros que escreveram a história da África tenham sido estrangeiros – árabes e europeus não deixa de ter consequências sobre as orientações ulteriores da historiografia africana e sobre a excepcional vitalidade de algumas lendas, mais negras do que douradas. Curiosidade e ingenuidade, simpatia e repulsa, busca da verdade e defesa de interesses, vontade de deformação sistemática e dúvida metódica, as atitudes mais contraditórias misturam-se em proporções variáveis conforme as épocas e conforme os indivíduos para desenhar configurações epistemológicas às quais os historiadores de hoje ainda não conseguiram escapar. O contexto particular que presidiu a formação dessas historiografias estrangeiras foi sempre, além disso, caracterizado por relações desigualitárias entre os africanos e aqueles que produziram esta história, comerciantes ou missionários, negreiros ou colonizadores. O maravilhoso componente quase obrigatório de qualquer encontro com o outro, sempre se misturou, no contexto africano, com o nada mais absoluto, quer se trate das trevas do paganismo, que seria necessário dissipar de qualquer maneira, ou de homes cuja humanidade, custasse o que custasse, deveria ser negada para os transformar em mercadorias. Para acrescentar à complexidade, africanos roçados pelas culturas dos outros ou formados nas suas escolas e nas suas historiografias recuperaram e, às vezes, alargaram as hipóteses e as conclusões, conferindo-lhes, assim o carimbo suplementar da autenticidade.34

Diante disso, podemos, portanto, assumir que em seus primórdios a História da África resumiu-se a visão do outro, especificamente o europeu, sobre o continente. Tal perspectiva, reducionista e estereotipada, impediu por muito tempo o conhecimento mais aprofundado acerca dos povos e das diversas expressões culturais existentes na África. Tal panorama começa a mudar a partir de finais das décadas de 1950 e 1960, sobretudo em razão das lutas pela independência dos países africanos que se refletiu na produção acadêmica das ex-colônias e das regiões africanas que buscavam a sua soberania. Nessa conjuntura, a UNESCO promove, no final da década de 1960, a elaboração de uma coleção vultosa sobre História da África, a qual é organizada por intelectuais e acadêmicos africanos.

Trata-se de uma ruptura com um modelo anterior de produção historiográfica sobre História da África, levando os estudos acerca do tema para novos patamares. No que tange

33 KI-ZERBO, Joseph (org). História Geral da África.Brasília: UNESCO, 2010, p.10. Volume I. 34M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações. Op.cit, pp. 50-51.

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à produção acadêmica de História da África no Brasil, Mauricio Waldman e Carlos Serrano apontam que por muito tempo ouve um “vazio” na produção de estudos nessa área, segundo os autores:

Tal lacuna é evidente tanto na ausência pura e simples de uma visão realista sobre o continente quanto em seu desdobramento direto na persistência de uma visão estereotipada e preconceituosa impingida, sem maiores delongas, à África. Não seria demasiado sublinhar, essa perspectiva associa-se à exclusão de parcela ponderável da população brasileira do pleno exercício dos seus direitos enquanto cidadãos, veredito que recai de forma marcante sobre os nacionais de origem africana, isto é, os afrodescendentes.35

A despeito da temática ainda não estar completamente consolidada em nosso país, Waldman e Serrano atentam para a projeção que os estudos de História da África ganharam nas universidades do mundo inteiro e revelam a importância da lei federal 10.639 para a inserção do tema na Educação Básica e para o aumento da produção acadêmica e da formação de profissionais na área. Acerca dessa questão o historiador José Rivair Macedo afirma o seguinte:

Desde 2003, a lei federal 10.639 tornou obrigatório o ensino da história e cultura da África e dos afrodescendentes no ensino fundamental e médio. Não foi uma decisão unilateral imposta de cima para baixo, mas o atendimento a uma reinvindicação encaminhada pelos movimentos sociais. O objetivo é romper com o silêncio que persiste nos currículos tradicionais e ampliar o espaço da África e dos africanos na memória coletiva do Brasil, que é considerado o pais com maior população afrodescendente do mundo36

Além de destacar a importância da lei para o fomento dos estudos sobre a História da África e para a disseminação do conhecimento acerca desse continente, o qual embora tenha sido essencial para a formação de nossa sociedade é deveras ignorado e/ ou desconhecido para a mesma, Macedo também sinaliza para a falta de disponibilidade de materiais publicados no Brasil ou em português sobre o tema.

Ressalta-se, por fim, o salto da produção historiográfica acerca do movimento expansionista, observado no Brasil a partir das comemorações dos quinhentos anos dos “ descobrimento” da América (1492) e da chegada dos portugueses ao Brasil (1500).Diante

35 WALDMAN, Maurício; SERRANO, Carlos. Memória d’África: a temática africana em sala de aula.

São Paulo: Cortez editora, 2013, p.11.

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disso, nossa pesquisa procura contribuir não apenas para os estudos sobre a História da Expansão Quatrocentista, mas também para os estudos de História da África Ocidental pré-colonial, especificamente na região da Guiné, considerando o processo integração desse espaço ao universo europeu e a própria afirmação de uma identidade europeia, com base na afirmação da alteridade em relação aos guinéus.

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