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A ação artística restringe se a um produtor humano?

No documento LUDMILA HELE A RODRIGUES DOS SA TOS (páginas 96-99)

Capítulo 3: De Artista à antropóloga: “Arte para artistas”?

3.1 A ação artística restringe se a um produtor humano?

Tal pergunta que problematiza os fundamentos da ação permite introduzir e deixar em suspenso como o conceito de agência opera nas teorias de Alfred Gell (e sua análise antropológica da arte como um sistema de ação), bem como a de Marilyn Strathern (e a conexão do termo com a capacidade recíproca de “fazer agir”) tentando uma conexão com análises possíveis voltadas à obra de arte – afinal a criação artística é uma ação em si , que a autonomizam, e neste sentido, permitem melhor entender as teorias e abordagens conceituais utilizadas para pensar o grafito de banheiro.

Partindo desta reflexão das abordagens (tendo a criação artística como ponto de partida), buscamos situar tal problemática “no banheiro”, ou melhor, como a agência e as particularidades descritas são frutíferas para se pensar os eventos grafados em banheiros.

O intento em si problematiza outras indagações pertinentes para a análise antropológica que buscaremos enfrentar ao pensar a análise de escritos, a saber:

Ações/intenções só podem ser constituídas se partimos a análise de uma entidade que as produza e as defina ou as relacione a pacientes ou receptores específicos?

É possível decompor e situar os momentos e os sujeitos quando tratamos de ações composta de relações?

Pessoas objetificam relações ou estas podem materializar pessoas?

Balizados por tais questões, podemos extrapolar a abordagem dos escritos como uma “produção material”, ou como fruto de uma projeção humana, onde intencionalidades são inscritas em coisas/ palavras vistas como depositários inertes que simbolizam somente vazões/desejos.

A visão melanésia expressa por Strathern da personificação das relações na qual objetos são dotados de atributos e capacidades humanas, cuja forma não é canal de expressão de simbolismos, mas é levada a se “fazer aparecer” nas relações permite pensar tais expressões para além de possibilidades teóricas pré moldadas, centradas nos indivíduos e suas atuações. Tal acepção, que parece de difícil abstração, é suavizada quando pensamos a possibilidade da análise estética tendo como piloto significados da linguística destacada por Souriau:

E se pinto a árvore, ou a velha mulher, ou o crepúsculo, de tal maneira que sejam verdadeiramente obras de arte, vós equivocais, redondamente, se crerdes que seriam obra de arte com a condição de que se pudesse reconhecer nas figuras que traço no papel a representação de uma árvore ou de uma velha mulher. Enganai vos, igualmente, pensando ser preciso reconhecer, por intermédio das figuras, que me sentia angustiado pelo crepúsculo ou penalizado pela velha mulher. Meu desenho não é a representação da arte; é a própria árvore encontrando em meu desenho seu valor terminal e sua realização (SOURIAU, 1973, P. 78).

Notamos como, esteticamente, uma ação evidencia, constitui, configura algo, independentemente das intenções e estados emocionais de quem a pratica e de uma recepção padronizada do trabalho artístico. A obra de arte se configura quando pensamos na relação desta, do artista e do contemplador, podendo estas instâncias representar sujeitos distintos, ou, ainda, que um mesmo sujeito seja produtor e receptor das emanações estéticas deste objeto. Sujeitos são ativados na presença e na relação destes fatores: só existe artista se há o reconhecimento de sua obra como tal, e a condição de artista é determinada no tempo e espaço sendo assim relacional à produção artística. A obra existe apenas se alguém a produz e é reconhecida desta forma, por sua vez a existência do expectador depende do artista e da obra. Comunicam se, a todo o momento, instâncias que não se individualizam como tal sem a presença da relação. Assim, é possível entender obras de arte como “pessoas”, ou parte destas quando a pensamos como a produção e intenção de alguém visando atingir outrem:

modo, sua alma. E isso não é uma metáfora. É uma similitude. O emprego que a filosofia contemporânea faz da nação de alma pode, igualmente, ser aplicado, rigorosamente, em relação à obra de arte na medida em que todo seu conteúdo espiritual ou moral possa ser posto ao corpo físico da obra, e quando se considera a obra nessa unidade e unicidade, que a fazem comparável a uma pessoa. (SOURIAU, 1973, P. 79)

A intenção expressa não é analisar escritos como “verdadeiras obras de arte”, mas mostrar que tal relação pensada para as obras conceituadas artísticas, contemplam outras instâncias de relação, que podem se utilizar de palavras e imagens, sem limitar se a significados semânticos ou “epítetos estéticos” de definição destas instâncias, tais como o belo, gracioso, agradável, temeroso, etc.

É preciso pensar na relação fundada entre as partes que compõem o momento artístico, considerando a própria obra como “pessoa”, dotando a assim de intenção e singularizando sua capacidade de mobilizar se.

Este pensamento possibilita pensar e renovar em bases de compreensão comum experiências a principio inconciliáveis: como a compreensão e relação do conceitual vivido e descrito por Marily Strathern nas terras da Guiné e o olhar mais criterioso para grafitos em banheiros públicos, compreender que “Rembrandt ao gravar as Três árvores, não somente encontrou a significação dos três pinheiros que tinha diante de si, como encontrou também sua própria significação”(SOURIAU, 1973, P. 78) ou ainda associar tal entendimento ao encantamento e impacto artístico profundo baseado numa compreensão do Ritual de máscaras Apapaatai no Alto Xingu:

Animal, objeto e espírito formam o trinômio fundamental da descrição e análise etnográfica dos processos de transformação e objetivação dos apapaatai. Contudo, dada a inconstância das perspectivas humanas e não humanas no universo wauja, estes termos não apresentam, aqui, as mesmas propriedades conceituais que lhe são atribuídas no ocidente moderno. Eles apenas apresentam valor analítico em seu encadeamento ternário e na sua apreensão contextual. Não há como isolar conceitualmente “os animais”, porque eles não existem como tal no mundo xinguano – visto que não podem ser reduzidos a classes taxonômicas de seres estáveis e previsíveis , mas como tipos de perspectivas, como modos de ver o mundo e criar ambientes de intencionalidades. Por sua vez, os objetos raramente são apenas objetos. Sua simples existência já é o indício da presença (potencial ou atual) de outrem. (BARCELOS, 2008, p. 29)

Da mesma forma que a pessoa pode ser concebida como uma “entidade distribuída”, pois transcende o espaço tempo de seu corpo biológico através dos atos, produtos e lembranças que produz, o objeto se torna igualmente uma “entidade distribuída”, à medida que seu campo de ação se amplia em termos de tempo e espaço. (GELL apud Lagrou 2007, p. 53).

Da mesma forma que pessoas não representam entidades fixas, produtoras de relações e mediadoras de objetos, estes últimos não são inertes, representações puras de intenções delimitadas em um sujeito. É o que veremos nas relações dos grafitos com outros agrafitos e interlocutores humanos.

No documento LUDMILA HELE A RODRIGUES DOS SA TOS (páginas 96-99)