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A abertura do Teatro da Rua dos Condes em 1738

No documento O teatro da Rua dos Condes : 1738- 1882 (páginas 44-50)

Na verdade, a questão da possível existência de um Pátio dos Condes não interfere na marcação da data efetiva de abertura do Teatro da Rua dos Condes, precisamente como Teatro e não como Pátio. A fundação, e bem assim todo o processo que lhe deu origem, encontra-se registada numa série de entradas das gazetas manuscritas de Évora, que a bibliotecária francesa Jacqueline Monfort deu a conhecer no artigo “Quelques notes sur l’histoire du théâtre portugais (1729-1750)”, publicado em 1972 nos Arquivos do

Centro Cultural Português8.

Seguindo a transcrição do segmento noticioso de 9 de agosto de 1729 a 3 de outubro de 1750, que Monfort anexa ao seu texto, poderemos formular uma narrativa dos factos que levaram ao nascimento do Teatro da Rua dos Condes. Como pudemos constatar pela consulta dos manuscritos9, a transcrição de Monfort não é exaustiva, e a leitura do original trouxe-nos dados novos e mais precisos.

Desde 1735, há notícias de representações públicas de ópera, que correspondem aos espetáculos da companhia de Alessandro Maria Paghetti na Sala da Academia à Praça

8 Como referimos (nota 3), encontram-se editados os Diários de 1729 a 1737. Em 1943, Eduardo Brasão

publicou uma parte desses diários, a partir de diferente cópia, sob o título Diário de D. Francisco Xavier

de Menezes, 4.º conde da Ericeira (1731-1733). 9 BPE Cód. CIV/1-8 d.

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da Trindade. Tal como os títulos dos libretos confirmam, aqui se deram as óperas

Farnace, Alessandro nell’Indie, Sesostri, re d’Egitto, Demofonte, Eurene, Anagilda, Siface. Paghetti teve de entrar em acordo com o Hospital de Todos os Santos, pagando-

lhe os devidos direitos («Lisboa, 17 de setembro de 1737. As partes de Itália para a ópera estão ajustadas e Paquetes [i. e., Paghetti] principia a entrar em tratado com a Misericórdia» – Monfort, 1972: 588).

Nota-se um interesse crescente pela ópera, em particular oriundo da franja aristocrática. E é por isso que surge a ideia de erigir um teatro de ópera: «Lisboa, 4 de fevereiro de 1738. Alguns homens de negócio pedem ao conde de Ericeira parte de um picadeiro e do canto da rua para um teatro de ópera com 270 palmos de comprido e 110 de largo [59x24m, segundo Brito, 1989: 17]. O conde lhe pediu dois mil cruzados [800$000] de renda, porque já perde mil cruzados e o sítio das casas que queria aumentar, e também quer um camarote perpétuo» (Monfort, 1972: 589-590).

O que Monfort não transcreve são as palavras imediatas, ainda sobre o mesmo assunto. Estas palavras reforçam a hipótese da prévia existência de um espaço teatral na propriedade do conde da Ericeira. Retomamos e concluímos: «O conde lhe pediu dois mil cruzados de renda, porque já perde mil cruzados e o sítio das casas que queria aumentar, e também quer um camarote perpétuo que tem também na ópera de bonecos que alugou por 50 moedas com a horta»10. Fala de um camarote em qual ópera de bonecos? Ao mencionar a horta, parece estar a referir-se às dependências do seu palácio. Mais tarde, nova referência, no mesmo sentido, conferindo o Diário de 22 de abril de 1738: «Sábado se fez a primeira ópera, sem grande concurso, e outra vez entram em ajuste com o conde de Ericeira para a casa do presépio da sua horta»11. Este último segmento do discurso assinala a existência de um presépio (teatro para presépios, espetáculos alusivos à história bíblica, como havia na Mouraria) nas hortas, isto é, no jardim do conde da Ericeira.

Por outro lado, devemos notar que, nos livros de registo de receita do Hospital de Todos os Santos12, apenas em 1738 surge um pagamento relativo à ópera no Condes; no ano anterior, só o Pátio das Comédias foi taxado. Os espaços teatrais não contemplados pelo

10 BPE Cód. CIV/1-8 d, f. 10-10v. 11 BPE Cód. CIV/1-8 d, f. 32v.

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imposto seriam, provavelmente, de caráter particular, ou descontínuo, única forma de classificar o anterior espaço.

E, em 6 de maio de 1738, acrescenta o cronista: «Cedeu Paquete o seu privilégio das óperas, com permissão da Misericórdia, com António Gomes Figueiró, o qual ainda se não ajustou com a casa que está na horta do conde da Ericeira, nem com ele, a quem fica um camarote perpétuo, que já tinha para a mesma casa, e paga Figueiró todas as dívidas de Paquete, que não tem agora grande concurso»13.

Entretanto, vão prosseguindo os espetáculos na Trindade, até findar a época 1737/1738. Porém, o empresário acusava dificuldades financeiras, e daí a intervenção dos homens de negócios. Temia-se a partida dos músicos italianos, segundo informações que o núncio enviou para a Santa Sé, a 15 de abril de 1738: «Sentesi, che sia per cessare il divertimento dell’opera in musica, mentre l’impresario Pacchetti, che s’era impegnato a somministrare tutte le spese necessarie, non trova denaro, e i musici venuti d’Italia sono in procinto di ritornare alle loro abitazioni, se pure non trovano qualche altra persona che voglia addensarsi il peso di aprire, conforme si crede, altro teatro per la recita dell’opera» (cit. por Doderer, 1993: 134).

Em junho de 1738, o Hospital transfere o privilégio de Paghetti para António Gomes de Figueiró. O núncio transmite a novidade para a sede da Igreja, a 12 de agosto: «Non potendo l’impresario Pacchetti supplire alle gravissime spese, che si ricchiede[r]ano per la continuazione dell’opera nel Teatro della Trinità, prese ultimamente la resoluzione di far la vendita del suddetto Teatro a Monsieur de Figueirò, il quale l’hà trasportato in altro sito più amplo, e più capace di maggior numero di spettatori, con aver altresi appaltato i musici, che dovranno rappresentare in essa Opera, facendo ora travagliare a diversi ordini di palchetti per pubblica commodità del popolo che vorrà intervenirvi, avendone a tal effetto ricevuta la permissione della Corte» (cit. por Doderer, 1993: 135). O principal atuante é, pois, António Gomes de Figueiró, que «fez escritura com o Hospital, que lhe cedeu por dez anos e meio o privilégio que tinha dado a Paquete por 600.000 réis cada ano, e porque este lhe não pagou o em que estava ajustado, e também letras passou Agostinho da Silva para fazer-se a ópera a casa que tinha na horta do conde da Ericeira, o qual fica com um camarote perpétuo pelos 12 anos do seu

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arrendamento, dando Figueiró a Agostinho da Silva também 600.000 réis cada ano e 240 que este dava ao conde pela casa e horta dita»14.

Em suma, o que contém esta notícia é o relato da fundação do Teatro Novo da Rua dos Condes. O local é Lisboa, nos jardins do conde da Ericeira; por isso o Teatro se chamou também das Hortas do Conde. A data é 1738; os intervenientes são António Gomes de Figueiró, Agostinho da Silva, conde da Ericeira; a companhia Paghetti passa da Trindade para o Condes.

Quem são António Gomes de Figueiró e Agostinho da Silva? O apelido Gomes de Figueiró é comum a cristãos-novos comerciantes perseguidos pela Inquisição na segunda metade do século XVII. Descenderá, possivelmente, dessa família. Uma procuração escriturada em 27 de novembro de 174015 confirma-o como «homem de

negócio nesta corte». Acrescenta que ele vive no Rossio, «no pátio chamado da fruta». Por este contrato, Figueiró constitui seu procurador António Rebelo de Andrade, para tratar de negócios na cidade da Baía, no Brasil. Sabemos ainda que António Gomes de Figueiró era cunhado do advogado Francisco Trigueiro de Góis (?-1732), e que recolheu os seus sete sobrinhos na morte deste (Lisboa, 2005: 111).

Numa Adição à Gazeta de 20 de dezembro de 1736 (Gazetas manuscritas III: 350), o cronista refere que «Na terça apareceu na Mesa da Fazenda um requerimento de António Gomes de Figueyroa, em que pedia a Sua Majestade lhe arrendasse todas as alfândegas do reino, o que se crê não terá efeito». Mais à frente, na entrada do dia 4 de junho de 1737 (Gazetas manuscritas III: 252-253), volta a referir o nome: «grande concurso muito tem havido na ópera nova, que é excelente, mas não teve nos primeiros dias. Continua sem vê-la em público a sra. marquesa de Távora e a mulher de D. Manuel de Sousa Calhariz, e já partiu para Itália um italiano com 15.000 cruzados de crédito que lhe deu o Figueiró, a buscar músicos». O envolvimento de António Gomes de Figueiró no negócio da ópera é, portanto, anterior à abertura do Condes.

Agostinho da Silva nasceu em Évora, onde foi batizado a 28 de agosto de 1701, na paróquia de São Mamede, e onde casou, em agosto de 1722, com Maria das Neves Quintanilha. Henrique, filho do casal, nasceu também em Évora, em 1723. A filha Felícia nasceu já em Lisboa, na freguesia das Mercês, em 5 de junho de 1727. Casou-se esta em 13 de julho de 1746 com José Palmer Maynard Camacho, na freguesia da 14 BPE Cód. CIV/1-8 d, f. 47v. Cf. Diário de 24 de junho de 1738, Monfort, 1972: 574.

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Encarnação. Ou seja, Agostinho da Silva, provavelmente, saiu de Évora depois de 1723 e antes de 5 de junho de 1727, pois nessa data estava na Rua da Rosa, em Lisboa, e talvez em 1746 ainda lá vivesse (quando a filha casa diz-se que é lá moradora). Em 1750, vive junto do palácio da Bemposta – data em que assina a transferência do cargo de escrivão da almotaçaria do Crato para o genro. A madrinha de uma das netas de Agostinho da Silva, Mariana, filha de Felícia, nascida em dezembro de 1753, é Mariana Bernarda de Sousa, mãe de D. João, da Bemposta16.

Na entrada do Dicionário bibliográfico português, Inocêncio confessa, acerca de Agostinho da Silva: «de cujas circunstâncias pessoais não pude colher informação alguma». Mas regista uma obra rara, intitulada História cómica de Céfalo e Prócris, que

no teatro público da casa da Mouraria se há de representar neste ano de 1737,

publicada em Lisboa debaixo da autoria de Agostinho da Silva. Classifica-a como «uma ópera cómica no gosto e estilo das de António José da Silva; e quem sabe se por este composta, e talvez impressa sob um nome disfarçado em razão de achar-se ele já então preso nos cárceres do Santo Ofício?»17 (Silva, 1867: 16). Mas Inocêncio não sabia da ligação de Agostinho da Silva ao Teatro da Rua dos Condes. Se soubesse, talvez o achasse mais conforme a uma obra desta natureza.

O negócio da construção do Teatro Novo da Rua dos Condes envolverá também a passagem para este espaço da companhia Paghetti, como bem nota Monfort (1972: 574): «C’est l’annonce du déménagement de la Compagnie des “Paquetas”: la “Praça da Trindade” ne l’abritera plus, mais “as Hortas do Conde” qui s’appelleront sous peu o “Theatro novo da Rua dos Condes”».

As negociações resultam frutíferas, pois, a 15 de julho de 1738, o Diário noticia que «Está ajustada a ópera na horta do conde de Ericeira, que lhe deu um pátio para as carruagens, donde era o seu palheiro, e lhe fica um camarote com serventia separada, e dizem se ajusta Figueiró com os Paquetes»18. Logo depois faziam-se as obras necessárias, se bem interpretamos a notícia de 29 de julho desse ano: «Já se trabalha no Teatro da Ópera, e dizem estão ajustadas as Paquetas, e Valete, e acabando-se os

16 Grande parte destas e de outras informações biográficas, obtidas sobretudo a partir de registos

paroquiais, foi alcançada por José Camões.

17 Uma ficção cómica intitulada Amor perdoa os agravos, que se há de representar no teatro público da casa da Mouraria este ano de 1737 (Lisboa: Na Offic. da Musica, 1737) saiu com o nome de Luís Tadeu

Nicia, pseudónimo de P. Vicente da Silva. Inocêncio diz que pode ser este o verdadeiro nome do autor da peça impressa sob o nome de Agostinho da Silva (Silva, 1911: 15).

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Bolantins, que tiveram grande concurso». Estariam estes volantins, isto é, acrobatas, a atuar na horta do conde?

O trecho mais expressivo desta sucessão de novidades sobre a empresa do Condes encontra-se no final do parágrafo relativo a 5 de agosto de 1738: «O ajuste das Paquetas ainda tem dúvida, e a Angela roubou seu marido as joias e dinheiro que tinha, deixando- lhe na casa cravada uma faca; e Figueiró mandou oferecer a Itália à famosa música chamada a Peruza oito mil cruzados por três invernos, e ela pede dez, poderão ajustar- se; e no teatro que se alarga e levanta se fazem máquinas para tramoias»19. Não há dúvida de que se trata da construção de um teatro com o objetivo de nele se representar ópera, com todo o aparato que implica.

Logo depois, a contratação dos Paghetti fica resolvida: «Hoje se faz a escritura com as Paquetas, em que Elena representará nas óperas que lhe parecer, deixando a remuneração a arbítrio de Figueiró, que lhe dá por ano e meio seis mil cruzados»20. Isto é, 2.400$000 réis, um salário elevado, a que se juntava o privilégio de escolher ela própria as óperas em que cantaria.

O núncio, em carta que escreve para Roma a 30 de setembro de 1738, remete o início dos espetáculos para depois da festa de S. Francisco (assinalada a 4 de outubro): «Dopo la festa di S. Francesco s’intraprenderà la recita di una nuova opera in musica del Teatro del Rossio, di cui è impresario Mr. de Figueirò, il quale, per rifarsi del denaro imprestato al Paghetti, già impresario del Teatro della Trinità, hà preso in scomputo del suo credito le scene e l’abiti del sudetto Teatro con aver appartati i musici italiani a suo conto» (cit. por Doderer, 1993: 136).

Nos Diários de Évora, não surge a notícia da inauguração, mas, pela sequência, percebe- se que, em novembro de 1738, o teatro já estava a funcionar. A notícia de 4 desse mês21 dá conta de pormenores da utilização do espaço e da frequência do público, nomeadamente titulares da nobreza:

A senhora marquesa de Valença tomou cinco camarotes na Ópera para muitas senhoras, entre as quais se repetiram os dias, fazendo serventia separada e pondo gelosias, que depois de ter ido a elas, mandam fazer mais apertadas e aos cinco camarotes que as não tem vão outras senhoras, que também fizeram pela horta entrada para carruagens e

19 BPE Cód. CIV/1-8 d, f. 59v.

20 BPE Cód. CIV/1-8 d, f. 65v (26 agosto 1738). 21 BPE Cód. CIV/1-8 d, f. 79.

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escadas divididas, porque a senhora marquesa de Abrantes e a de Soure e Távora também fizeram o mesmo e tem concorrido muita gente.

Assinale-se a assiduidade das senhoras de alta sociedade, a que não será alheia a localização do teatro novo, em terrenos senhoriais, que lhes permitia usufruir de uma passagem privilegiada, pelo jardim do palácio da Anunciada. Quando podiam, resguardavam-se de olhares indiscretos, sob a proteção das gelosias. Não obstante a preferência da elite da corte, o espaço seria ocupado por outros indivíduos, que só assim poderiam configurar a «muita gente», já distribuída pela plateia.

No documento O teatro da Rua dos Condes : 1738- 1882 (páginas 44-50)

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