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PARTE II: AS ESPECIFICIDADES NORTE-AMERICANAS E O

3.1 A abertura unilateral e o “Sistema Antigo”

Algumas razões históricas consolidaram tais padrões legislativos: (1) o contexto da Guerra Fria, (2) as idéias, (3) a superioridade do poder político e estratégico norte-americano; (4) a superioridade industrial e comercial dos Estados Unidos e; (5) as instituições internas. A relação destes fatores, alguns conjunturais e outros estruturais, criaram um ambiente propício para a propagação do livre-comércio.

A compreensão da Guerra Fria é de extrema importância para entender as instituições de comércio dos Estados Unidos. A estratégia política empregada durante todo o conflito, com especial destaque para as décadas de 1950 e 1960, foi influenciada pela lógica da contenção103, enraizadas na doutrina Truman, que determinava a política econômica, ainda que os custos econômicos fossem altos. “The real question is not whether we can reduce our

deficit but how much we ought to reduce it and how we can make this reduction without sacrificing policies which are vital for the achievement of our national aims”, dizia Gardner

(1960:433). Em um artigo escrito por Raymond Vernon (1960) - um dos colaboradores na elaboração do Plano Marshall e formulador de estratégias para a reconstrução da infra- estrutura e economia da Europa depois da II Guerra Mundial, além de colaborador na formulação do FMI e do GATT – para a Foreign Affairs em 1960, esta idéia fica clara:

First, we need to reestablish unequivocally the fact that there is a clear direction in our long-run policy – a long-rum commitment to the continuous reduction of our trade barriers for as long as other developed countries will agree and as rapidly as the problems of internal adjustment permit. [...] If the President can cut United States tariffs considerably, it may be possible for a time to ensure that the two rival trading blocs of Europe [...] will also hold down their external trade barriers.

Vernon entendia o protecionismo Europeu como uma fase de ajuste e transição. Esta

103 George Frost Kennan, utilizando o cognome “Mr. X”, escreveu um artigo intitulado “The Sources of Soviet Conduct” em 1947 que fora de extrema importância para a compreensão da Guerra Fria. Segundo este autor,

existia um antagonismo profundo entre o capitalismo e socialismo enraizado nas instituições soviéticas. “Isto tem implicações profundas na conduta Russa como membro da sociedade internacional. Significa que nunca poderá haver por parte de Moscou qualquer movimento de comunidade sincero entre a União Soviética e outras potências consideradas capitalistas. Em Moscou, deve ser assumido invariavelmente que os objetivos do mundo capitalista são antagônicos ao Regime Soviético, e conseqüentemente aos interesses das pessoas em seu território. Se o governo soviético assinar ocasionalmente algum documento que demonstre o contrário, este fato deve ser entendido como uma manobra tática para combater o inimigo capitalista (que não possui nenhuma honra) [...]”, conclui o autor. (KENNAN, 1947).

seria a única participação do Estado para alcançar o laissez-faire, elaborando políticas de ajuste, protegendo alguns setores e dando tempo para adaptação, realocando aqueles que perderam empregos etc. Para atingir este estágio, Vernon defendia a concessão pelo Congresso de uma autorização comercial para o presidente Kennedy, permitindo que este reduzisse as tarifas em até 50%. Dentro desta lógica, os Estados Unidos toleravam o protecionismo japonês e a discriminação contra seus produtos na Europa uma vez que entendiam tais movimentos como políticas de ajustamento. Somando-se a isso, dentro da lógica da Guerra Fria, esta vantagem relativa dos aliados norte-americanos era desejada, buscando com isso conter o avanço soviético.

Mesmo com a coexistência pacífica e até o fim do conflito em 1989, o livre-comércio continua a ser defendido pelo Executivo pelos motivos mencionados acima. As décadas de 1970 e 1980, como será visualizado a seguir, assistiram a um forte questionamento desta política por grupos de pressão representados no Congresso, mas nem com isso a postura livre- cambista do Executivo mudou. Mesmo no cenário Pós-Guerra Fria esta tendência permanece: agora, como principal potência do Sistema Internacional, a necessidade de manter a saúde do sistema de comércio mundial existe com intensidade parecida.

Quanto às idéias, no imediato pós-guerra, acreditava-se que o protecionismo tivera sido um dos principais motivos para os conflitos mundiais. Depois da grande depressão da década de 1930, por exemplo, o liberalismo dominou o debate político econômico nos principais centros acadêmicos norte-americanos (BERLUND, 1935). As causas da depressão e as causas da guerra foram relacionadas diretamente com as práticas mercantilistas adotadas na década de 1930 (EICHENGREEN, 2000). A reconstrução da Europa “seria impossível se os países voltassem a cometer os erros da década de 1930, cada um procurando vender o máximo e comprar o mínimo”, aponta Aron (2002:567). Com isso, o liberalismo no pós-guerra ganhou um status “incontestável” e seria o principal remédio para evitar dois “grandes traumas” do século XX (HOBSBAWM, 1995). Além disso, o crescimento “espetacular” no imediato pós- guerra fortaleceu esta idéia, colocando os Estados Unidos na liderança do Sistema Internacional.

Em suma, era preciso evitar práticas restritivas de comércio: “Spreading the gospel of

free trade around the globe became the overarching objective of U.S. international economic policy”, indica Dryden (1995:06). Isto ficou claro em um dos discursos do presidente Kennedy

quando ele afirmou que “if we are to bring about World Peace [...] and prevent World War III

1995:34). Para evitar a repetição desses “acontecimentos catastróficos”, afirmava-se que não havia mais espaço para manter o isolacionismo da política externa norte-americana em relação à Europa. Era preciso um novo conjunto de propostas para o comércio internacional. Assim, os Estados Unidos passaram a liderar a construção de um regime de comércio liberal, o qual teria como conseqüência a promoção da paz e um ambiente propício aos seus interesses (GOLDSTEIN, 1993; O’SHEA, 1993).

A posição que os Estados Unidos passaram a ocupar logo após a II Guerra Mundial também merece destaque e é uma das principais especificidades históricas do país. Após 1945, com a Europa em reconstrução, este país assumiu o papel de grande potência ocidental104. Tal superioridade do poder político e estratégico contribuiu para a intensificação das políticas liberalizantes. “The regime of freer trade had strong domestic support”, afirmou Destler (1995:06), pois, num ambiente de Guerra Fria, o comércio era usado para conter avanços comunistas. “What really mattered, however, was that trade was not high on the list of public

concerns. So governmental leaders had the leeway to press the policies they felt were needed”

(DESTLER, 1995:06). Ikenberry ajuda a entender isso. Segundo este autor, embora tenham sido convidados pelos europeus, “the United States was clearly hegemonic and used its

economic and military position to construct a postwar order” (IKENBERRY, 2006:22)105. Em suma, diante do papel que os Estados Unidos visavam adotar no Sistema Internacional, o livre-comércio parecia ser a melhor opção, mesmo com os custos econômicos inerentes a tal decisão. As outras opções disponíveis restringiriam a liderança política dos Estados Unidos e por este motivo não foram colocadas em prática. A partir desta percepção, políticas multilaterais e bilaterais foram adotas. Conforme afirmaram Gowa e Goldstein (2002:155), “it was in the interest of a hegemon – that is, one, very powerful state – to create

a free trade regime, even if it alone had to bear the entire cost. It was not an accident, he argued, that international free trade coincided with [...] US hegemony”. Em outro trecho, os

mesmos autores atestam que “when the distribution of power is skewed and markets do not

conform to the world of standard trade theory, [...] open international markets require the disproportionately powerful state to make a credible commitment to free trade” (GOWA &

104 Este ponto é de vital importância: a posição diferenciada ocupada pelos Estados Unidos gerava políticas

bastante específicas, refletindo na política comercial deste país que passou a ser baseada em uma idéia predominante: o livre-comércio.

105

Esse parágrafo remete à discussão sobre a Teoria da Estabilidade Hegemônica, contestada por uns e endossada por outros (GILPIN, 1981; KEOHANE, 1988). Se aceita a teoria como útil para explicar o período em tela. Além disso, ela possui uma importância endógena na medida em que os atores domésticos relevantes dão credibilidade a seus argumentos, aderindo-os ou refutando-os (ANDERSON, 1960; GARDNER, 1960; AUBREY, 1961).

GOLDSTEIN, 2002:154). Embora tais políticas pudessem proporcionar altos custos para os Estados Unidos, este país adotou esta postura para manter sua liderança econômica e política: era preciso implantar o livre comércio nos países aliados, e posteriormente, em todo o globo.

Quanto à superioridade econômica e industrial dos Estados Unidos, conseqüência direta das duas grandes guerras que aconteceram no seio da Europa, está passou a ser sentida já nas discussões sobre o reordenamento econômico que ocorreram em Teerã (1943), Yalta (1945) e Potsdam (1945). O Plano Marshall, formulado de junho a setembro de 1947, é outra demonstração da superioridade econômica deste país.

A liderança econômica norte-americana, ainda que intensamente questionada e modificada nas décadas seguintes, teve significado na explicação das causas da continuidade do país em posição sistêmica central (vide DOBSON & MARSH, 1994). O gráfico abaixo, baseado na série histórica de estatísticas compiladas por Maddison (2008), ajuda a perceber a ascensão dos Estados Unidos, ultrapassando a Europa Ocidental em PNB no decorrer nas duas grandes guerras, se distanciando consideravelmente nas primeiras décadas. Também aqui acreditava-se que a opção liberalizante criaria um caminho necessário para o contínuo crescimento do poder econômico norte-americano. A medida que os Estados Unidos cresciam, tais idéias ganhavam força. “By the early 1970s, liberalism had become more than a policy

option, it was a policy bias and a policy constraint”, conclui Goldstein (1988:188).

Gráfico 3: PNB Norte-Americano e Europeu, Milhões de Dólares, (1914-1965)

Gráfico elaborado pelo autor a partir de dados extraídos de Maddison (2008)

Além disso, a liberalização do pós-segunda guerra foi possível devido ao arranjo

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institucional existente nos Estados Unidos naquela época. Este arranjo era constituído por contrapesos anti-protecionistas, peças fundamentais para o que aqui se denomina como “Sistema Antigo de Comércio”, basicamente impulsionados pela prosperidade econômica dos Estados Unidos bem como sua nova posição preponderante no sistema internacional. Estes contrapesos entraram em vigor no imediato pós II Guerra e favoreceram a manutenção de diretrizes liberalizantes mesmo com mudanças nas preferências internas. Em outras palavras, o “sistema antigo” pode ser entendido como uma espécie de blindagem que protegia os congressistas das demandas protecionistas, abrindo caminho para políticas de abertura comercial. Em conjunto, o arranjo institucional tinha o efeito de minar grupos locais protecionistas, desestimulando este paroquialismo em favor de uma política nacional liberalizante (DESTLER, 1995; ECKES, 1999).

Segundo Destler (1995:08),

All of these factors – the “lessons” of Smoot-Hawley, the Cold War imperative, US economic predominance, and prosperity – contributed to one crucial underpinning if the American trade policymaking system: the fact that trade barriers were not a major source of conflict between the Republican and Democratic parties during the postwar period.

Tal fato, é importante dizer, criou uma estrutura institucional que possibilitou a continuidade de políticas liberais independente do partido do presidente eleito. Este é um dos pilares do Sistema Antigo.

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