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A acepção poética de Bakhtin: um fio condutor para a canção?

3. O GÊNERO CANÇÃO NA POÉTICA DE CAZUZA

3.2 A acepção poética de Bakhtin: um fio condutor para a canção?

crônicas, contratos, escritos literários, canção etc. E é das canções de Cazuza que vamos abstrair os fatos lingüísticos que marcam os discursos proferidos pelos sujeitos sociais na construção do sentido do erotismo que se revela nas vozes desses sujeitos. Fugir do papel da canção enquanto gênero e dos enunciados que marcam as variedades de discursos marca a negação da matéria e se destaca a forma, o que ocasiona o devaneio, desvirtuando historicidade do estudo e enfraquecendo o elo existente entre a língua e a vida (BAKHTIN, 1997). Portanto, a canção é um gênero que reflete e questiona a vida, desde os problemas que nela se instauram até a dimensão do prazer de vivê-la e é assim que a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam e é através destes também que a vida penetra na língua.

3.2 A acepção poética de Bakhtin: um fio condutor para a canção?

Centrado mais no estudo prosaico, Bakhtin não deixa de enveredar-se pelo campo poético. Analisa que o poeta tem responsabilidade constante e direta pela linguagem da obra como sua própria linguagem, pois ele está nela e é dela inseparável. Ele não tem limites, pode fazer da linguagem o que quiser, uma vez que ela está ao seu serviço. E acrescenta:

Os mecanismos pelos quais a linguagem se centraliza poeticamente não são, é claro, apenas temáticos, mas muito especificamente composicionais – todos os recursos gráficos, visuais e sonoros de que o poeta dispõe para isolar sua linguagem de todas as outras, para delimitar seu território (BRAIT, 1997, p. 206)

É fundamental esclarecer também que a voz poética sempre transcende em busca do “tom maior”, dando à poesia autoridade e presença e que no campo ideológico o poeta será um homem do seu tempo.

Embora o mundo prosaico se faça forte nos dias atuais devido a uma consciência e valorização das linguagens alheias, as quais foram perdidas do poético quando se cantava os feitos heróicos de um povo, a iluminação cristã e a organização do mundo, o poético continua firme, transcendendo valores, lapidando conceitos e discutindo temas.

A primeira análise literária de Bakhtin não foi um romance, uma vez que é o maior objeto de seu estudo sobre a linguagem, mas um poema, “Separação”, de Puskin. Nele aponta a presença de duas pessoas ativas e dois contextos de valor, mas dentro de

uma abordagem estética a qual é compreendida como ponto de encontro de no mínimo, dois centros de valores, abrangidos pelo fechamento do “sujeito estético” que está situado do lado de fora. Porém, tal assertiva corresponde a nada mais do que a natureza dialógica da linguagem, o que se efetiva nos estudos sobre Dostoievski.

Na Teoria do Romance, Bakhtin (1993) discorre sobre a natureza linguística e estilisticamente centralizadora quanto ao caráter monolingue e sobre a descentralizadora, a plurilíngue. Essa arquitetura faz com que a literatura se alimente de linguagens sociais e de valores. Desse referencial abstrai-se o núcleo duro do conceito de poesia. Se na prosa a concentração de vozes multidiscursivas é pano de fundo do discurso romanesco, na poesia o poeta, na relação com as linguagens alheias, torna-se responsável por toda linguagem construída, ou seja, satisfaz a uma única linguagem e consciência linguística.

Essas abordagens refletem um “continnum” na imagem estética literária, os dois eixos extremos: a prosa absoluta e a poesia absoluta. Assim, os estilos prosaicos e poéticos se definem a partir do papel que essa dialogicidade ocupa na enunciação literária.

O prosador mede o seu mundo a partir da linguagem do outro, enquanto que o poeta submete todas as outras linguagens à sua própria linguagem. Ele não tem limites linguísticos, pode fazer dela o que quiser, pois está ao seu serviço. Por conta dessa liberdade, temos uma linguagem poética pura, dos deuses.

Nos gêneros poéticos (em sentido restrito) a dialogização natural do discurso não é utilizada literariamente, o discurso satisfaz a si mesmo e não admitem enunciações de outrem fora de seus limites. O estilo poético é convencionalmente provado de qualquer interação com o discurso alheio, de qualquer “olhar” para o discurso alheio. (BAKHTIN, 1993, p. 93)

O estilo poético contém o máximo de centralização linguística que inclui as peculiaridades formais e o isolamento semântico-ideológico. Então, a centralização formal e estilística do discurso poético também é útil a outros gêneros.

No grau da centralização da linguagem acontecem os tempos linguísticos centralizadores e descentralizadores; os mecanismos pelos quais a linguagem se centraliza poeticamente não são só temáticos, mas também composicionais e delimitam a linguagem do poeta. Agora o universo semântico-ideológico encontra na sua

expressão a resistência da cultura coletiva, da qual o poeta faz parte e de onde extrai a convenção de sua arte (BRAIT, 2005, p. 206).

Convenhamos, então, que há sempre um toque transcendente na voz poética, há sempre a busca de um “tom maior”, coletivo, que dá à poesia a autoridade de sua própria presença. Mas, se tecnicamente o estilo poético não conhece limites, ideologicamente o poeta é homem do seu tempo. Portanto, a contaminação prosaica (como já foi questionado anteriormente) é a marca contemporânea, obrigatória de toda a poesia e o poético absoluto ficou sem lugar no poema ou então se mantêm na expressão desconfortável de um mundo ideológico que não encontra mais eco e que a voz (ou vozes) não encontra espaço que lhe conceda autoridade.

Eis o fio para a canção.

Mesmo as canções não apresentando as marcas que caracterizam um gênero poético, delas se podem abstrair o viés da subjetividade, do encantamento, da sensibilidade e das descobertas que se faz e sente através dos versos. E, presa a essa condição acima exposta, podemos delimitar do gênero poético, o gênero “canção”, sim, pois as canções de Cazuza carregam “esse dizer” através do sentimento, da emoção, da reflexão; fatores bem consistentes no campo poético. Porém, vamos enveredar pela voz do sujeito enunciador historicamente marcado que se revela na canção a partir da iminência do erotismo, desvendando valores e conceitos, e mostrando perspectivas de um mundo que se revela diante da força do erotismo.

No capítulo que segue iremos apresentar o processo metodológico desenvolvido desde o direcionamento teórico até a escolha do cantor e, principalmente, das suas respectivas canções.

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