• Nenhum resultado encontrado

4. UMA LINHAGEM DA AMARGURA E DA DECOMPOSIÇÃO NO

4.1. A acumulação literária de Augusto dos Anjos

Nos capítulos anteriores foram destacadas as especificidades da forma poética desenvolvida por Augusto dos Anjos, o que foi feito a partir de uma leitura mais cerrada de seus poemas. Entretanto, no intuito de estabelecer uma visão mais totalizante sobre sua obra, é importante também entender o escritor dentro de um sistema maior, pois, apesar da singularidade do EU, o talento individual não está em oposição à tradição, e sim lhe é complementar, como já apontou T.S Eliot em

“Tradição e talento individual”:

Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estima-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um princípio de estética, não apenas histórica, mas no sentido crítico. É necessário que ele seja harmônico, coeso e não unilateral; o que ocorre quando uma nova obra de arte aparece é, às vezes, o que ocorre simultaneamente com relação a todas as obras de arte que a precedem. Os monumento existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem deve ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada: e desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados. (ELIOT, 1989, p. 39).

Então, a obra que está situada mais ao cabo de uma determinada linhagem não é apenas beneficiada pelos predecessores, pois ela também beneficia o paideuma construído revigorando-o, operando reajustes. A tradição esclarece o surgimento da obra assim como esta ilumina e revitaliza a tradição, em uma via de mão dupla. Dito isso, o objetivo é tentar entender de que maneira Augusto dos Anjos internalizou e

ressignificou as experiências literárias de alguns antecessores mais afins a seu estilo. São eles: Teófilo Dias, Carvalho Júnior e Fontoura Xavier44.

Esses nomes apresentam uma visão poética cujos elementos centrais eram o senso da decomposição da carne, a amargura, o tédio, a conotação patológica e o uso da terminologia fisiológica, esses dois últimos mais marcantes em Carvalho Júnior. Em suma, é aquilo que Antonio Candido designa como um “Realismo poético

brasileiro”, cuja fonte de inspiração estava mais próxima de Charles Baudelaire do

que de Leconte de Lisle. (CANDIDO, 2011, p. 45-46). A meta é buscar compreender de que maneira o autor do EU, já no século XX, se nutriu dos temas e da dicção observáveis nas obras desses escritores para construir seu livro. É importante destacar que não está em jogo a noção de influência, mas sim de acumulação, que nos manda refletir sobre os aprofundamentos da forma, conteúdo e perspectiva operacionalizados por Augusto dos Anjos. Em outras palavras, o capítulo será dedicado a demonstrar como o poeta deu soluções diversas e mais apuradas a impasses literários de artistas anteriores. Assim, quando num poema de Fontoura Xavier vemos a mulher amada comparada a um roast-beef entendemos que o prosaísmo e a agressividade da analogia, de algum modo, chegou até Augusto dos Anjos, mas não com a mesma força encontrada no eu-poético do segundo, que nos oferece a imagem da mão de seu amado pai “roída de bichos, como os queijos”. (ANJOS, 1995, p. 270).

Portanto, a questão é estudar como o poeta foi capaz de assimilar, aprofundar e fecundar o legado positivo das experiências anteriores para tentar elucidar o segredo de sua independência. Nesse sentido, três estudos serviram de inspiração para a organização do capítulo. Um deles, como não poderia deixar de ser, é o

Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido; o segundo, do mesmo autor,

é o ensaio intitulado “Os primeiros Baudelarianos”; e o terceiro é um capítulo de O

mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz. No caso do Formação,

trata-se de uma obra exemplar no que diz respeito a consciência de método,

44

A reflexão de T.S Eliot, assim como a noção de paideuma, de Pound, tratam de uma linha de tradição muito mais vasta. Em alguns momentos chegam a cotejar as invenções poéticas de escritores como Homero e Ovídio a modernos, como Arthur Rimbaud e James Joyce. A linhagem estabelecida no presente estudo possui proporções bem mais modestas, uma vez que trataremos de poetas cuja separação no âmbito da História literária é de, no máximo quarenta anos e que não possuem o mesmo grau de reconhecimento. Contudo, o fundamento do raciocínio utilizado por Pound e Eliot mostra-se adequado para o caso analisado.

profundidade analítica e reflexão histórica . Já o ensaio, apesar de seu interesse central ser o impacto da obra de Charles Baudelaire no Brasil, consegue traçar as

linhas gerais de um tipo de poesia marcada por “certas componentes de amargura, senso da decomposição e castigo da carne”. Segundo o próprio crítico aponta, foi Augusto dos Anjos, um “heterodoxo”, que levou essa linhagem ao extremo.

(CANDIDO, 2011, p. 27). O texto de Schwarz revela como o processo de acumulação artística possui funcionamento objetivo e, muitas vezes, não está explícito na obra dos predecessores, embora atue nela de modo decisivo. Ainda que

seu objeto e a proposta do estudo sejam bem diversos, Schwarz ensina que “tudo

estará em especificar o que muda e o que fica, sempre em função de um impasse literário anteriormente constituído e a superar, o qual subjaz à transformação e lhe empresta pertinência e verdade”. (SCHWARZ, 2008, p. 222). Esse é o movimento que tentaremos empreender no caso de Augusto dos Anjos: buscar entender o que muda e o que fica em sua poesia para visualizarmos qual a sua posição nos rumos de nossa tradição poética.

Documentos relacionados