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A afetividade enquanto ética e a dialética da inclusão/exclusão.

VULNERABILIDADE RELATIVA À SECA

3 A AFETIVIDADE COMO CATEGORIA DE INVESTIGAÇÃO DA REALIDADE

3.2 A afetividade enquanto ética e a dialética da inclusão/exclusão.

“Somente a fraternidade/ Nos traz a felicidade/ Precisamos dar as mãos Para que vaidade e orgulho/ Guerra, questão e barulho/ Dos irmãos contra os irmãos Jesus Cristo, o Salvador/ Pregou a paz e o amor/ Na santa doutrina sua. O direito do banqueiro/ É o direito do trapeiro/ Que apanha os trapos na rua Uma vez que o conformismo/ Faz crescer o egoísmo/ E a injustiça aumentar Em favor do bem comum/ É dever de cada um/ Pelos direitos lutar Por isso vamos lutar/ Nós vamos reivindicar/ O direito e a liberdade Procurando em cada irmão/ Justiça, paz e união/ Amor e fraternidade. Somente o amor é capaz/ E dentro de um país faz/ Um só povo bem unido Um povo que gozará/ Porque assim já não há/ Opressor nem oprimido”

(Nordestino sim, nordestinado não. Patativa do Assaré)

“A felicidade não é uma recompensa da virtude: a felicidade é a virtude em si mesma.” (Ética. Espinosa)

A idéia de não fragmentação do ser humano e a compreensão de que a consciência é constituída tanto pelos aspectos cognitivos como afetivos, apresentada por Vigotsky, foi influenciada pela filosofia de Espinosa (2003).

Para o filósofo, a alma e o corpo são dois aspectos de uma mesma realidade, duas manifestações da mesma substância e ambos envolvem os afetos (emoções e sentimentos). Quando Espinosa apresentou esta concepção de homem, assim como a sua compreensão de Deus,

sofreu várias críticas e perseguições, pois, pela primeira vez na história da filosofia, corpo e alma eram compreendidos em condições de igualdade, sem relação de hierarquia entre ambos.

Baruch de Espinosa ao apresentar em sua filosofia a idéia de que não há uma dicotomia entre a razão e afetividade, corpo e alma, defende a idéia de que ambos são partes de uma mesma substância única e infinita e que estão submissos às mesmas leis e princípios. Assim, a comunicação entre corpo e alma ocorre de forma imediata.

Corpo e alma são definidos pelo conatus, que representaria um esforço de ambos para conservarem a própria existência, apresentando-se enquanto uma força interna, positiva e afirmativa do homem. O conatus apresenta-se na filosofia de Espinosa como uma força indestrutível, fundamentada na busca pela felicidade como forma de manutenção, apresentando-se como apetite, quando relacionado ao corpo e como desejo, quando relacionado à alma. A servidão, neste caso, ocorreria quando houvesse um enfraquecimento dessa força, em virtude da influência de forças externas e negativas.

O esforço para se conservar (o conatus) é o primeiro e único fundamento da virtude[...]a possibilidade da ética se encontra, portanto, na possibilidade de fortalecer o conatus para que se torne causa adequada dos apetites e imagens do corpo e dos desejos e idéias da alma, e a originalidade de Espinosa está em considerar que essa possibilidade e esse processo são dados pelos próprios afetos e não sem eles ou contra eles. A alegria e todos os afetos dela derivados, mesmo quando passiva, é o sentimento do aumento da força para existir...O processo libertador se realiza no interior da vida afetiva, iniciando-se no campo das paixões e terminando no campo das ações (CHAUÍ, 2004, p. 14).

De acordo com Damásio (2004), o conatus é definido por Espinosa como um esforço implacável de autoconservação, presente em todos os seres vivos e não se apresenta apenas como ímpeto de autopreservação, mas como conjunto de atos de autopreservação que mantêm a integridade do corpo. Nesta concepção há uma relação com o todo, entre a felicidade pessoal e a coletiva, onde a ética é intrínseca ao sujeito.

Para Espinosa, tudo está relacionado e não se pode pensar no homem isoladamente, pois o Deus dele está em toda parte, nos homens, na natureza e não pode ser visto como dotado de qualidades ou sentimentos humanos. Está além de tudo isso, ou melhor, em tudo isso.

O deus de Espinosa não era judeu, nem cristão. O deus de Espinosa estava em toda parte, dentro de cada partícula do universo, sem princípio nem fim, mas não respondia nem a preces nem a lamentações (DAMÁSIO, 2004, p. 31).

A ética para Espinosa está alicerçada nos afetos alegres, só podendo ser experimentada se sentida como felicidade e não como conformismo a imposições que vêm de fora. O primeiro fundamento da virtude, para o filósofo, é a preservação do self, e esta busca leva à virtude, pois na necessidade de nos mantermos a nós mesmo necessitamos ajudar os outros a se manterem a si mesmos (DAMÁSIO, 2004).

Baseada na filosofia de Espinosa e na Psicologia Sócio-histórica de Vigotsky, Sawaia (2000) constrói o conceito de afetividade ético-política. A afetividade é compreendida, para a autora, como uma dimensão fundamental para a transformação da sociedade e uma força libertadora ou escravizadora, a partir do momento em que interfere nas ações dos indivíduos, auxiliando o sujeito na tentativa de modificar a sua situação de sofrimento gerado pelo processo de inclusão perversa ao qual está submetido dentro da dialética da exclusão/inclusão social. Para que se compreenda o conceito de exclusão/inclusão social, consideremos as palavras da autora:

Enfim, o que queremos enfatizar ao optar pela expressão dialética exclusão/inclusão é para marcar que ambas não constituem categorias em si, cujo significado é dado por qualidades específicas invariantes, contidas em cada um dos termos, mas que são da mesma substância e formam um par indissociável, que se constitui na própria relação. A dinâmica entre elas demonstra a capacidade de uma sociedade existir como um sistema. Essa linha de raciocínio permite concluir, parafraseando Castel (1998), que a dialética exclusão/inclusão é a aporia fundamental sobre a qual nossa sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar os riscos de sua fratura” (SAWAIA, 1999, p.108).

Nessa dialética surgem subjetividades específicas, que podem ir desde o sentir-se incluído ao sentir-se discriminado ou revoltado. Essas subjetividades estão relacionadas a formas diferentes de legitimação social e individual, na relação com o outro e manifestam-se no cotidiano, não podendo ser explicadas apenas através de determinações econômicas.

O fator psicológico para Sawaia é visto como um fenômeno ético-político, nem interno nem externo, mas “da ordem da vida para além da sobrevivência e das contingências sociais” (SAWAIA, 2000, p. 17). Ao defender este ponto de vista, a autora põe por terra a idéia de que o indivíduo precisa antes satisfazer as necessidades mais básicas para, então, ser capaz de atitudes éticas. Assim, é devolvida ao pobre a possibilidade de poder ser ético, apesar da luta pela sobrevivência. A afetividade, para a autora, permite atribuição de significado à vivência do indivíduo na sociedade, influenciando de forma decisiva a sua atuação no mundo, podendo levá-lo a uma potência de ação, como a alegria e motivação para

a transformação, ou a uma potência de padecimento, como a vergonha, o medo e a resignação.

Os afetos, entretanto, podem se apresentar enquanto adequados ou inadequados, dependendo da capacidade do indivíduo para transformar paixões em ações e libertar-se das imposições e dos conformismos (Sawaia, 1999). Os afetos adequados podem trazer uma potência de ação, que se apresenta enquanto capacidade de ser afetado e de afetar os outros num processo de possibilidades infinitas de composição da vida. Já os afetos inadequados podem trazer a potência de padecimento, gerada por emoções tristes que permitem a exploração e manutenção da mesma. Esta situação configura o sofrimento ético-político.

O sofrimento ético-político surge a partir da dicotomia entre inclusão/exclusão social e se apresenta como o sofrimento gerado pela inserção em uma sociedade marcada pela desigualdade, surgindo a partir de políticas excludentes.

Na perspectiva de Sawaia (1999), o sofrimento ético-político é resultado de toda forma de exclusão social, é algo imposto socialmente e que surge da situação de sentir-se tratado como inferior, subalterno, sem valor. Tal sofrimento pode levar o sujeito à submissão, impedindo a vivência das próprias emoções, dos desejos e das necessidades. A autora ainda acrescenta que “estudar a exclusão pelas emoções dos que a vivem é refletir sobre o ‘cuidado’ que o Estado tem com seus cidadãos. Elas são indicadoras do (des)compromisso com o sofrimento do homem, tanto por parte do aparelho estatal quanto da sociedade civil e do próprio indivíduo” (SAWAIA,1999, p.99). A afetividade é considerada ética porque define a atuação do homem a partir do desamparo e da autonomia. Desta forma, Sawaia “constrói a noção de afetividade alicerçada no processo de ação-transformação da sociedade” (BOMFIM, 2003, p.57).

[...]conhecer o sofrimento ético-político é analisar as formas sutis de espoliação humana por trás da aparência da integração social, e, portanto, entender a exclusão e a inclusão como duas faces modernas de velhos e dramáticos problemas – a desigualdade social, a injustiça e a exploração (SAWAIA,1999, p.106).

Segundo Sawaia (1999), quando a exclusão é vista como sofrimento, o sujeito, antes perdido nas análises econômicas e políticas sobre exclusão, ganha força sem, no entanto, ser tirada a responsabilidade do Estado. A autora defende que várias formas de exclusão que são objetivadas podem ser vividas como motivação, carência, emoção e

necessidade do eu. O sofrimento é sentido pelo indivíduo, mas a origem deste não advém do próprio sujeito, mas das intersubjetividades delineadas socialmente. A autora destaca ainda a importância em não haver uma negação do sofrimento, devendo se estabelecer uma motivação para a cidadania que não seja apenas no nível racional/cognitivista, mas também afetivo/emocional, pois negar o sofrimento psicossocial é “negar a negação da cidadania” (SAWAIA, 1995 a, p 164).

Apresenta-se a seguir uma continuidade da discussão sobre o conceito exclusão, fazendo-se uma relação com os aspectos da globalização e as mudanças geradas por esta para que se possa ir em busca de uma compreensão do que está por trás do processo migratório nos dias atuais.

3.3 Exclusão e migração: uma compreensão a partir da