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O termo “agricultura familiar” é relativamente novo no Brasil, pois de fato só surge após publicação da tese de Abramovay (1992), sendo em seguida reforçado pelo estudo da FAO/INCRA (1995). A discussão em torno da agricultura familiar tem como gênese a ideia de campesinato, de origem européia. Neste contexto, cabe retomar um pouco da contribuição dos clássicos que se debruçaram sobre essa problemática.

Em sua obra “A Questão Agrária”, publicada em 1899, Kautsky (1980) descreve a influência do capitalismo sobre a agricultura e as transformações ocorridas no campo no final do século XIX. A sua tese é a de que o desenvolvimento da agricultura segue o mesmo caminho da indústria, e as necessidades da sociedade, sobre a égide do capitalismo, orientam o desenvolvimento da agricultura no sentido da evolução para o grande estabelecimento social cuja forma suprema reúne, em uma única entidade, a agricultura e a indústria. A ideia central de Kautsky (1980) é a de que a grande propriedade rural tem superioridade técnica em relação à pequena, sendo a que melhor se adapta à penetração do capitalismo no campo e, por conseguinte à inserção inevitável da “industrialização da agricultura”.

Kautsky (1980) defende que a grande exploração agrícola é a que melhor satisfaz as necessidades da grande indústria agrícola. A partir de então, tem se uma integração agricultura indústria, implicando em envolvimento do camponês pelo sistema capitalista, deixando este de ser um agricultor de subsistência e se transformando em trabalhador

assalariado na cidade ou em um agricultor voltado à produção do mercado. Os camponeses que não se integrassem ao mercado estariam condenados a própria sorte, uma vez que quanto mais o capitalismo se desenvolve e penetra na agricultura, maior tende a ser a diferença qualitativa entre a grande exploração tecnificada e a pequena exploração agrícola. Consequentemente, a pequena propriedade, e com ela todo um “modo de produção camponês”, estava condenada ao desaparecimento, face à superioridade da grande exploração capitalista.

Na concepção de Lênin, a generalização das relações de produção especificamente capitalistas no interior da produção agrícola iria destruir o campesinato através da diferenciação interna e de sua integração no mercado capitalista. Para Lênin, a persistência de relações não capitalistas de produção no campo era entendida como resíduo em vias de extinção. O autor compreendia que a inserção da “economia natural” no âmbito da produção mercantil teria como conseqüência inevitável no processo de evolução social, a diluição desta forma de produção em duas classes: de um lado, um estrato de proletários rurais e, de outro, um campesinato burguês, economicamente mais favorecido em função da utilização do trabalho assalariado (CARNEIRO, 2009). Lênin mantém a posição de que o trabalho familiar de fato não existe no campesinato, e que, ao final, tudo acabaria sendo abarcado pelo capital.

Opondo se a tese leninista, o relato mais próximo e fiel da realidade camponesa está expresso na análise clássica empreendida por Chayanov apud Abramovay, (1992, p. 60 – 61):

A lei básica da existência camponesa pode ser resumida na expressão ‘balanço entre trabalho e consumo’. Diferentemente de uma empresa capitalista, num estabelecimento camponês o critério de maximização da utilidade não é a obtenção da maior lucratividade possível em determinadas condições. O uso do trabalho camponês é limitado pelo objetivo fundamental de satisfazer as necessidades familiares. E estas não se confundem forçosamente com as necessidades de uma empresa.

Conforme Abramovay (1962, p. 62), outras duas idéias básicas do pensamento de Chayanov são que a renda familiar é um todo indivisível, e o conceito de auto exploração. No que se refere à primeira ideia, tem se que o que determina o comportamento do camponês são as necessidades decorrentes da reprodução do conjunto familiar. Quanto ao segundo conceito, tem se que a intensidade do trabalho do camponês não é determinada por sua relação com outras classes que compunha a sociedade, mas pela razão entre a penosidade dos esforços empreendidos, relativamente á satisfação de suas necessidades.

De acordo com Abramovay (1992), Marx e os clássicos da questão agrária que o sucederam colocaram que o campesinato viria a desaparecer tão logo o modo de produção capitalista, fundado na grande empresa, se generalizasse na agricultura. Para Abramovay, esta previsão é consistente com suas teorias e fundamentadas historicamente. No entanto, para Abramovay (1992, p. 129), o que Marx não pode antever é que:

O extermínio social do campesinato não significaria fatalmente a eliminação de qualquer forma de produção familiar como base para o desenvolvimento capitalista na agricultura. [...] O trabalho individual, familiar, representava, para ele, um estágio inicial, primitivo, no próprio avanço das relações de mercado. Tão logo o mercado tomasse conta do conjunto da vida social, a contradição embutida na mercadoria entre a natureza ao mesmo tempo social e privada do trabalho tomaria corpo em classes sociais antagônicas. E nesse sentido, não havia qualquer razão a que a agricultura escapasse ao movimento geral do capitalismo.

Apoiando se nos escritos de Chayanov, é possível encontrar no interior da família camponesa os elementos geradores de sua conduta específica, que não corresponde à racionalidade capitalista; ou seja, o “balanço entre trabalho e consumo” e a composição demográfica da família, por exemplo, são componentes explicativos das decisões econômicas do campesinato. Nisto, reside uma diferença fundamental entre a análise de Chayanov que não pode ser encontrado na teoria marxista: “explicar as leis de funcionamento de um segmento social cujo comportamento não se compreende um função da lógica da economia mercantil” (ABRAMOVAY, 1992, p. 76). Nisto reside, para o autor, a utilidade de uma definição precisa e específica de camponês13, uma vez que sem ela é “impossível entender o paradoxo de um sistema econômico que, ao mesmo tempo em que aniquila irremediavelmente a produção camponesa, ergue a agricultura familiar como sua principal base social de desenvolvimento” (ABRAMOVAY, 1992, p. 131). Neste contexto, cabe ressaltar o papel do Estado, ator fundamental na moldagem da estrutura social do capitalismo agrário das nações desenvolvidas.

[...] a agricultura familiar e um fenômeno tão generalizado nos países capitalistas avançados que não pode ser explicada pela herança histórica camponesa, de fato, em alguns casos existente. [...] O peso do Estado na consolidação da agricultura familiar como a base social do dinamismo do setor é fundamental: interferência nas estruturas agrárias, na política de preços, determinação estrita da renda agrícola e até do progresso de inovação técnica, formam o cotidiano dos milhões de agricultores que vivem numa

13“Camponeses são unidades domésticas com acesso aos seus meios de vida na terra, utilizando principalmente trabalho familiar na produção agropecuária, sempre localizadas num sistema econômico global, mas fundamentalmente caracterizadas pelo seu engajamento parcial em mercados que tendem a funcionar com alto grau de imperfeição” (ELLIS, 1988 apud ABRAMOVAY, 1992, p. 126).

estrutura atomizada onde, entretanto, o Estado tem influência maior que em qualquer outro campo da vida econômica (ABRAMOVAY, 1992, p. 22).

No Brasil, é a partir dos anos 1990 que o conceito de agricultura familiar passa a ser usado no vocabulário cientifico governamental e das políticas públicas. Assim, sob a denominação de “agricultura familiar” passa a ser considerado o que antes era denominado por termos como pequena produção, produção de baixa renda, agricultura de subsistência, agricultura não comercial. De acordo com Abramovay & Piketty (2005), foram dois fatores – um científico e outro político – que contribuíram de forma decisiva para desfazer essa “imagem caricatural” da agricultura. Do ângulo científico, diversos trabalhos mostraram que a agricultura das sociedades mais avançadas do planeta (Europa Ocidental, do Japão, dos EUA, do Canadá e, mais recentemente, dos Tigres Asiáticos) tem a base social de seu sucesso econômico assentada em unidades familiares de produção. Sob o ângulo político, os anos 80 assiste ao fortalecimento dos movimentos sociais no campo e o surgimento de amplo segmento social de agricultores familiares (que tinham acesso à terra, não estavam muitas vezes entre os mais pobres do meio rural, tomavam crédito de organizações bancárias, promoviam transformações tecnológicas em seus sistemas produtivos, integravam se a mercados exportadores) e exerciam, mediante suas organizações, uma pressão no governo com uma pauta de reivindicações quanto à política agrícola.

Tais constatações demonstraram a importância da chamada “pequena produção agrícola” ou “familiar” no meio rural brasileiro, razões que fazem com que o modelo de produção familiar seja alvo dos estudos acadêmicos e, dado o contexto um pouco mais democrático da sociedade brasileira, que ocorresse uma maior reivindicação de políticas públicas específicas para esse segmento. Essas questões são sumariamente discutidas no ítem a seguir.