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Apesar de a casa representar um espaço íntimo, reservado à mulher para “exercer” seu poder, ela precisa ainda de um espaço mais íntimo, onde suas dores, angústias e alegrias possam ficar guardadas ou reservadas somente a si mesma. Esse espaço é representado pela alcova, conforme sugere Maria Angela D’Incao (2013), que afirma que esse cômodo da casa era ocupado pela mulher para fazer as coisas mais íntimas que ela necessitasse, como ler cartas amorosas, chorar e deixar aflorar todos os seus sentimentos represados. E é isso que acontece, por exemplo, com Guiomar em vários momentos:

O que se passou depois, quando, livre de olhos, estranhos, pôde entregar- se a si mesma, isso ninguém soube, a não serem as paredes mudas do quarto, ou o raio da lua coado pelo tecido raro das cortinas das janelas, como a espreitar aquela alma faminta de luz (ASSIS, 2013, p. 126).

A alcova era então o espaço de liberdade da mulher, mas ao mesmo tempo de prisão, pois somente ali, frente às paredes mudas, que não contariam o ocorrido para ninguém, ela pode deixar seus sentimentos aflorarem. A alcova, nesse caso, representa um espaço ambíguo, que se confunde com a personagem: um lugar fechado, um ambiente de escuridão, uma profunda tristeza, a busca de uma luz, de uma solução para os seus problemas.

Esse espaço de liberdade e prisão era o local onde ela poderia ficar à vontade, até permanecer com o corpo descoberto, tendo a certeza de que um homem jamais adentraria o local sem seu consentimento.

Na alcova, se ele pudesse vê-la mais tarde na alcova, solitária e toda consigo, sentada na poltrona rasa ao lado da cama, com os cabelos desfeitos, os pezinhos metidos nas chinelas de cetim preto, as mãos no regaço e os olhos vagando de objeto em objeto, como se reproduzissem fora as atitudes interiores do pensamento, ali não só ele a adoraria de joelhos, mas até poderia supor que alguma preocupação lhe tirava o sono e que essa era nem mais nem menos ele próprio (ASSIS, 2013, p. 93).

Como mencionado anteriormente, por ser um espaço de privacidade da mulher, onde seu íntimo podia ser revelado, era proibido ao homem entrar na alcova feminina, salvo se ambos representassem um casal, situação que, na época em que transcorre o romance, só se realizaria com o matrimônio. Nota-se, no trecho a seguir, que Jorge – pretendente à mão da jovem – ansiava por uma resposta de Guiomar, mas não podia conversar com ela porque a moça estava na alcova:

Vindo agora à narração dos sucessos da história, cumpre que o leitor saiba, que a carta de Jorge não teve resposta escrita nem verbal. No dia seguinte ao da entrega, foi ele jantar a Botafogo; mas Guiomar não saíra do quarto, a pretexto de uma dor de cabeça; a baronesa passou o dia com ela; Jorge apenas conseguiu saber, quando de lá saiu, que a moça ia melhor. Nos subsequentes dias nenhuma resposta foi às mãos do pretendente, nem ele conseguiu haver uns cinco minutos de conversa solitária com a moça; Guiomar esquivava-se sempre, com aquela arte suma da mulher que aborrece, e que é nem mais nem menos igual à da mulher que ama (ASSIS, 2013, p. 120).

Era somente ali, na alcova, que a mulher possuía livre-arbítrio sobre sua vida. Sua existência, sua real identidade, acabavam ficando presas em uma alcova. É o

que pode ser visto também no romance Helena, em que a protagonista só possui liberdade para chorar e extravasar seus sentimentos nesse local:

Helena entrou no quarto, fechou a porta, soltou um grito e lançou-se de golpe à cama, a chorar e a soluçar. [...] Em vão tentava abafar os soluços, cravando os dentes no travesseiro. Gemia, entrecortava o pranto com exclamações soltas, [...] Chorou muito; chorou todas as lágrimas poupadas durante aqueles meses plácidos e felizes (ASSIS, 2015, p. 121)

Cumpre observar que “o interior das casas, reservado às mulheres, é um santuário que o estranho nunca penetra” (DAMATTA, 1997a, p. 48). Santuário maior ainda para a mulher, então, era a alcova. É possível notar que mesmo quando Helena está enferma, “Estácio mal ousava entrar na alcova da doente” (ASSIS, 2015, p. 137), haja vista a forte convenção social que estipulava que, mesmo em tais situações, era impedido ao homem adentrar esse espaço.

Em Iaiá Garcia, também é visível que a alcova exerce a representação do recinto que acolhe as dores espirituais da mulher. Isso ocorre, por exemplo, com Valéria, na partida do filho rumo aos campos de batalha: “Valéria não o viu sair; dera costas a todos e foi lastimar na alcova seu voluntário infortúnio” (ASSIS, 2011, p. 88).

Análoga situação ocorre com a protagonista que dá nome ao romance, quando necessita descobrir a relação da madrasta com Jorge: “Iaiá agitava-se na alcova, de um para outro lado, desejosa e receosa ao mesmo tempo de ir ter com Estela” (ASSIS, 2011, p. 137), ou seja, é na reclusão do quarto que a jovem se agita face a uma situação da qual nutria dúvidas.

Também com Estela, que medita sobre suas escolhas, ocorre semelhante fato: “Nessa noite, recolhida aos aposentos, a moça deu largas a dois sentimentos opostos. Entrou ali prostrada. — Que estou eu fazendo?” (ASSIS, 2011, p. 164).

Pode-se assim afirmar que, quando a mulher necessitava de um espaço somente seu, ela buscava a alcova, pois ali tinha a certeza de que nenhum homem poderia entrar e, então, nesse lugar, poderia extravasar todas as suas emoções escondidas.