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III. DESCONFIANDO DO MAIS TRIVIAL: ONTOLOGIA DO SER SOCIAL E A DESNATURALIZAÇÃO DA EXPLORAÇÃO-OPRESSÃO

3.2. Das Margens que oprimem aos seres marginais: Alienação, propriedade privada e a ontologia da exploração-opressão

3.2.3. A alienação burguesa como essência da unidade exploração-opressão

Viam o Oceano como sangue de cristal. Balanceava diante de nós sinuoso, muito belo, mas carregava-se de perigos e sonhava com afogar-nos a todos.

O oceano desceu das veias puras de deus. Dizia um velho.

nas veias puras de deus vivem parasitas que são monstros.

A Desumanização Valter Hugo Mãe

Observamos aqui que os processos que conduzem à reprodução das opressões, e também o advento da alienação, não são demandas exclusivas do modo de produção capitalista. Doravante, esclarecemos que as mediações entre a materialidade da vida social e o plano da reprodução social são repletas de complexos sociais e, nesse sentido, corroboramos o quanto é capcioso o desenvolvimento dos fenômenos ocorridos na imediaticidade cotidiana individual junto aos alicerces das estruturas sociais.

Nesse sentido, o caminho dialético da processualidade histórica precisa evidenciar a gênese do processo social de desefetivação humana. Isso significa entender que a articulação material das mais diversas opressões perpassa pela apreensão de como a capacidade humana de criar o novo e ampliar suas possibilidades passa, em uma dada complexidade social, a assumir um caráter contraditório e desumanizador. Esse processo é intrínseco aos complexos sociais e valores que expressam diferentes formas de alienação.

Por isso, precisamos entender esse diálogo da reprodução das opressões, da categoria alienação e das particularidades do sistema capitalista, aprofundando as questões para além dele, por meio da perspectiva ontológica:

Para a melhor compreensão de fenômenos como a alienação é incondicionalmente necessário, sempre, manter à vista que eles, se imediatamente se expressam individualmente, se mesmo a decisão alternativa individual pertence à essência de sua dinâmica, o ser-precisamente-assim dessa dinâmica é, mesmo se com frequência amplamente mediada por diversas interações, contudo, ainda, um evento social. Sem levar em conta essas determinações, falsificar-se-ia igualmente esse precisamente-assim, tal como se deve descuidadamente passar ao largo do ser-precisamente-assim, em aparência puramente social, objetivamente necessário, das estruturas socioeconômicas, das transformações estruturais, por um não-tomar

conhecimento das decisões alternativas individuais que ontologicamente — por último, admissivelmente, apenas por último — estão em sua base .(LUKÁCS, 2018, p.508).

Conscientes de que a categoria alienação não é uma criação do pensamento marxiano e de que, além de ser uma determinação real, ela atravessa a história da filosofia e as explicações ontológicas tanto do idealismo quanto do materialismo, urge que a busquemos na realidade e em suas particulares formas de realização concreta em cada momento histórico, com suas leis sociais específicas.

Nessa perspectiva, Mészáros alicerça as manifestações da alienação a partir da capacidade produtiva da sociedade e da forma como esta se organiza na unidade produção e reprodução social, expondo o caráter positivo no aspecto de ampliação da capacidade produtiva e o processual desenvolvimento negativo e contraditório a partir da produção de excedente e da apropriação:

[...] uma contradição que, contudo, não pode ser percebida do ponto de vista da propriedade privada, nem tampouco por aquele decorrente de uma identificação espontânea com o trabalho em sua parcialidade, mas apenas pelo ponto de vista criticamente adotado do trabalho em sua universalidade autotranscendente. Aos olhos de Marx, a evidência crescente de um antagonismo social irreconciliável entre propriedade privada e trabalho é uma prova do fato de que a fase ontologicamente necessária de auto-alienação e automediação reificada do trabalho – “pelo meio da propriedade privada’ etc. – está chegando a seu final. O agravamento da contradição entre propriedade privada e trabalho demonstra a contradição mais interna do sistema produtivo existente, e contribui enormemente para a sua desintegração.

Assim a auto-objetivação humana na forma de auto-alienação perde sua justificação histórica relativa e se torna um anacronismo social indefensável. (MÉSZAROS, 2006, p.107).

A caracterização das determinações histórico-ontológica do fenômeno da alienação está encoberta na reprodução da lógica moderna de um estado de coisas e de um constructo político-ideológico que assevera a igualdade formal, a liberdade restrita, instrumental e relativizada e a emancipação política burguesa como um horizonte histórico que perpetua e metamorfoseia um processo de sociabilidade humana voltada para a apropriação do outro, com a desefetivação de suas relações. Este é um quadro que naturaliza os valores burgueses, mascarando que

[...] o ser humano que não é a contrapartida animal de um conjunto de ideais morais abstratos – não é bom nem mau por natureza; nem benevolente nem malevolente;

nem altruísta nem egoísta; nem sublime nem bestial etc., mas simplesmente um ser

natural cujo atributo é a “automediação”. Isso significa que ele pode fazer de si mesmo o que ele é a qualquer tempo – de acordo com as circunstâncias predominantes –, seja egoísta ou outra coisa (MÉSZÁROS, 2017, Edição Kindle).

O desvendamento da construção desse fenômeno a partir do advento da propriedade privada permite voltarmos às contradições mais precisas dessa questão e evidenciarmos sua incidência em vários planos da vida social, desde a moderna exploração do trabalho até as relações cotidianas entre os indivíduos e sua construção subjetiva, pois é:

[...] a partir do momento em que se constituem as classes sociais, uma vez instruída a propriedade particular e realizada a divisão do trabalho as contradições deixam de se manifestar apenas com caráter contingencial, deixam de ser meramente circunstanciais e episódicas. (KONDER, 2009, p. 68).

O viés limitado e reforçado de uma lógica voltada para a posse, para a desigualdade e para a exploração constrói relações voltadas para essa mesma direção na cultura, na política, na espiritualidade, no cotidiano. O ser humano, eminentemente social, se vê cindido, buscando desenvolver sua sociabilidade e suas expressões de forma limitada e contraditória.

O que Marx combate como alienação não é a mediação em geral, mas uma série de mediações de segunda ordem (propriedade privada - intercâmbio - divisão do trabalho), uma "mediação da mediação", isto é, uma mediação historicamente específica da automediação ontologicamente fundamental do homem com a natureza. Essa “mediação de segunda ordem” só pode nascer com base na ontologicamente necessária "mediação de primeira ordem" - como a forma específica, alienada, desta última. Mas a própria "mediação de primeira ordem" - a atividade produtiva como tal - é um fator ontológico absoluto da condição humana.

(MÉSZÁROS, 2006, p. 78)

Por isso, a alienação é um complexo com gumes afiados que atravessam as práxis humanas, cindindo suas inteirezas que permitiram perceber as conexões entre elas, obrigando a achar completude em fragmentos, impondo a desefetivação.

Lembremos que, no desenvolvimento do ser social, questões aparentemente dadas pela natureza, como a alimentação e a sexualidade, são modificadas pela sociabilidade, sem deixar a base natural, mas distanciando-se dela:

Provavelmente não seja necessário continuar a análise para se divisar claramente a condicionalidade social daqueles conteúdos e formas que, nas sociedades desenvolvidas, se sobrepõem, remodelam, modificam socialmente a pura sexualidade biológica. Mantivemo-nos, com isso, nas grandes tendências históricas,

mas não se esqueça que suas formas de manifestação alcançam até o corpóreo e, da vestimenta ao cosmético, os instintos erótico-sexuais em funcionamento influenciam decisivamente, os quais, novamente, ligam-se muito estreitamente com o desenvolvimento de relações humanas altamente importantes. (LUKÁCS, 2018, p.

132).

Por isso, insistimos em destacar que analisamos a alienação dentro dos complexos sociais, a partir da coisificação do ser humano, da relação que se estabelece como de posse, na realização da exploração e da opressão nas mais diferentes esferas, onde o indivíduo não se reconhece no outro, transformando diferenças em desigualdades. Para isso é preciso sublinhar o reflexo material que produz o protagonismo da ideia de posse no plano constitutivo da reprodução social e na subjetivação dos exemplares humanos da lógica burguesa. De formas e com ênfases distintas, esta questão atravessa toda a obra marxiana:

Além disso, a Crítica do Programa de Gotha afirmou que no modo de produção capitalista “as condições materiais de produção estão nas mãos de não trabalhadores na forma de capital e propriedade da terra, enquanto as massas são donas apenas da condição pessoal de produção, da força de trabalho”. Portanto, era essencial derrubar as relações de propriedade na base do modo de produção burguês.

Nos Grundrisse, Marx lembrou que “as leis da propriedade privada – liberdade, igualdade, propriedade – propriedade do próprio trabalho e livre disposição sobre ele – se transformam na falta de propriedade do trabalhador e na desapropriação de seu trabalho, ou seja, no fato de que ele refere-se a ela como propriedade alheia e vice-versa”. “o poder de viver sem trabalho do trabalho alheio”. na posse dos meios de produção” e que o objetivo da luta proletária deve ser “o retorno de todos os meios de produção à propriedade coletiva” [grifo nosso]. (MUSTO, 2021, p. 39, Tradução nossa).

Se há uma inequívoca desigualdade insuperável no modo de produção capitalista, este denota a perpetuação e a radicalização daquilo que se fundou no advento da propriedade privada, agora, sob o véu da igualdade formal e da real condição material, a partir do desenvolvimento das forças produtivas, de uma emancipação humana não efetivada pela conservação da exploração do trabalho e da propagação de desigualdades reprodutivas como expressão e reforço da alienação e ainda como limites e possibilidades a serem disputados nas fronteiras do capitalismo51.

O desenvolvimento da sociabilidade humana vai se aprofundando por uma

51MACÁRIO (2013, p. 189) destaca: “O progresso feito pela forma social capitalista consiste, neste particular, em ter criado forças produtivas e formas de intercâmbio universais. As primeiras põem a base da diminuição progressiva do trabalho necessário à produção econômica e da consequente liberação de tempo para outras atividades. E já que o intercâmbio se realiza no plano mundial lastreado em premissas puramente sociais, abre-se um leque de possibilidades concretas de que ele seja assumido e dirigido conscientemente pelos homens. Para tanto, é necessário superar as mediações alienadas que sustêm o gênero humano, dentre as quais se destacam a propriedade privada, o capital e o Estado”.