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A analítica ontológica do Dasein: introdução aos modos-de-ser

A analítica do Dasein (ou ontologia fundamental) justifica-se na medida em que este ente tem a função de ser o ente em primeiro lugar perguntável, como fora exposto no subcapítulo anterior. Dessa forma, para que tal ente possa questionar o sentido-de- ser, devemos estabelecer seu correto modo-de-acesso, nas palavras de Heidegger: Mas como deve ser o acesso a esse ente, o Dasein, e como deve ser por assim dizer visado na interpretação do entendimento? 58, isto é, como podemos falar do Dasein e do

56 Sobre este ponto, conferir HEIDEGGER, 2012a, p. 61.

57„Das Dasein hat sonach einen mehrfachen Vorrang vor allem anderen Seienden. Der erste Vorrang ist

ein ontischer: dieses Seiende ist in seinem Sein durch Existenz bestimmt. Der zweite Vorrang ist ein ontologischer: Dasein ist auf dem Grunde seiner Existenzbestimmtheit an ihm selbst >>ontologisch<<“ (HEIDEGGER, 2012a, p. 62).

58 „Aber wie soll dieses Seiende, das Dasein, zugänglich und im verstehenden Auslegen gleichsam

36 acesso ao sentido de seu ser e aos modos-de-ser que o constituem? Primeiramente, cabe discutirmos a seguinte passagem:

Não há dúvida de que o Dasein nos é não só onticamente próximo ou mesmo o mais próximo – pois nós o somos até cada vez nós mesmos. Apesar disso, ou precisamente por isso, ele nos é ontologicamente o mais longínquo. É certo que pertence ao seu ser mais-próprio possuir um entendimento desse ser, mantendo-se já cada vez numa certa interpretação de seu ser 59.

A citação mostra a proximidade do Dasein com os demais entes quando se considera seus aspectos ônticos, uma vez que se trata de um ente como todos os outros entes. No entanto, essa proximidade leva a um distanciamento no que concerne aos seus aspectos ontológicos, ou seja, é pelo fato de o Dasein estar completamente imerso em seu ser que ele não consegue visualizá-lo com a mesma nitidez em que apreende seu domínio ôntico.

Trata-se da concepção de que, para apreender o ser, o ser-aí precisaria estar fora de seu ser para que tal apreensão se desse mais adequadamente. Contudo, o Dasein é impossibilitado de se situar fora do ser, pois é este o que possibilita sua existência de modo geral, ocasionando esta dificuldade de compreender aquilo que lhe constitui, o que sugere o fato de a precedência ôntico-ontológica do Dasein ser o fator que faz com que sua constituição de ser lhe permaneça em constante encobrimento.

É por isso que o Dasein precisa situar-se a partir do mundo, enquanto horizonte de significatividade com o qual o Dasein se comporta de maneira essencial, para compreender o sentido-de-ser de sua existenciariedade. Doravante, este ente se elabora e se desfaz segundo o que é cada vez o modo-de-ser do Dasein ele mesmo 60, isto é, o ente em questão possui a capacidade de se mostrar em si mesmo a partir de si por meio dos modos nos quais sua existência se desdobra na facticidade (Faktizität), tais modos são estruturas essenciais que determinam o ser do Dasein conforme sua cotidianidade (Alltäglichkeit), como mostra a citação,

59„Das Dasein ist zwar ontisch nicht nur nahe oder gar das nächste – wir sind es sogar je selbst. Trotzdem

oder gerade deshalb ist es ontologisch das Fernste. Zwar gehört zu seinem eigensten Sein, ein Verständnis davon zu haben und sich je schon in einer gewissen Ausgelegtheit seines Seins zu halten“ (HEIDEGGER, 2012a, p. 68).

60„Weil nun aber zum Dasein nicht nur Seinsverständnis gehört, sondern dieses sich mit der jeweiligen

Seinsart des Daseins selbst ausbildet oder zerfällt, kann es über eine reiche Ausgelegtheit verfügen“ (HEIDEGGER, 2012a, p. 70).

37 Nessa cotidianidade não devem ser mostradas estruturas quaisquer e fortuitas, mas estruturas essenciais, que sejam persistentes em cada modo-de-ser do Dasein factual, como determinantes-do-ser. É com referência à constituição-fundamental da cotidianidade do Dasein que o ser desse ente surge e é provisoriamente posto em relevo 61.

Dessa maneira, a estrutura essencial do perguntar ontológico deve partir da afirmação de que o ser desse ente que pergunta é cada vez meu, isto é, o ente que temos a tarefa de examinar, nós o somos cada vez nós mesmos 62. Tal afirmação refere-se ao fato de o ser estar em jogo para o ente em questão, não se busca, conforme fora exposto, o ser de outrem, mas sim, o ser do ente que dirige o questionar, o que culmina no fato de este ente, necessariamente, ter-de-ser, isto é, a “essência” (Wesen) do Dasein reside em sua existência 63. Como afirma Emmanuel Lévinas,

Mas uma tal relação entre a essência e a existência só é possível à custa de um novo tipo de ser que caracteriza a ação do homem. Heidegger reserva para este tipo de ser a palavra existência (...). E é porque a essência do homem consiste na existência que Heidegger designa o homem pelo termo de Dasein (ser deste mundo) (...). A forma verbal exprime o fato de cada elemento da essência do homem ser um modo de existir, de se encontrar lá 64.

A partir daí, como mostra a citação, todo ser-assim (Sosein) do Dasein pode ser considerado ser, ou seja, sua existência desdobra-se em modos-de-ser com os quais este ente se relaciona por meio de possibilidades (Möglichkeiten). Noutras palavras, (...) esta carga lançada da facticidade motiva também o caráter de projeção do Dasein, que como existência não é um mero fato, mas também uma possibilidade fáctica, um “poder-ser” 65. O Dasein é, cada vez, sua possibilidade, o que gera também a

possibilidade da apropriação de si mesmo a partir dos modos-de-ser da propriedade e da impropriedade, que refletem a estrutura “ser-cada-vez-meu” (Jemeinigkeit) que o

61„An dieser sollen nicht beliebige und zufällige, sondern wesenhafte Strukturen herausgestellt werden,

die in jeder Seinsart des faktischen Daseins sich als seinsbestimmende durchhalten. Im Hinblick auf die Grundverfassung der Alltäglichkeit des Daseins erwächst dann die vorbereitende Hebung des Seins dieses Seienden“ (HEIDEGGER, 2012a, p. 72).

62„Das Seiende, dessen Analyse zur Aufgabe steht, sind wir je selbst“ (HEIDEGGER, 2012a, p. 138). 63 „Das >>Wesen<< des Daseins liegt in seiner Existenz“ (HEIDEGGER, 2012a, p. 138).

64 LÉVINAS, 19_?, p. 75-6.

65De LÖWITHμ “(...) esa carga arrojada de la facticidad motiva también el carácter de proyección del

Dasein, que como existencia no es un mero factum, sino también una posibilidad fáctica, un ‘poder-ser’” (LÖWITH, 2006, p. 177).

38 determina 66, nas palavras do autor, o Dasein se determina cada vez como ente a partir de uma possibilidade que ele é e que, ao mesmo tempo e de alguma maneira, ele entende em seu ser. Esse é o sentido formal da constituição-da-existência do Dasein 67, que culminará na compreensão de que o ser-aí deve ter suas determinações-de-ser compreendidas sob a constituição-de-ser que fundamenta sua existência na facticidade: trata-se do ser-no-mundo (In-der-Welt-sein), considerado primeiro aspecto existenciário constitutivo do Dasein, uma vez que é condição a priori de todas as demais determinidades possíveis do ser-aí.

Doravante, daremos continuidade ao problema do mundo no próximo capítulo deste estudo, no qual passaremos a expor o decair do Dasein na cotidianidade, a importância das tonalidades afetivas no desvelamento do horizonte do mundo, e o processo de singularização que levará o ser-aí à abertura de seu ser, tendo como finalidade esclarecer como se origina a questão da compreensão da finitude.

66 Cf. HEIDEGGER, 2012a, p. 141.

67„Das Dasein bestimmt sich als Seiendes je aus einer Möglichkeit, die es ist und d. h. zugleich in seinem

Sein irgendwie versteht. Das ist der formale Sinn der Existenzverfassung des Daseins“ (HEIDEGGER, 2012a, p. 142).

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