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3 OS PRECEDENTES JUDICIAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO

3.3 A aplicação dos precedentes no ordenamento jurídico brasileiro

A nova concepção do Código de Processo Civil de 2015 acerca da utilização dos precedentes representa uma tentativa de firmar a unificação das decisões judiciais, impedindo a perpetuação de práticas que, em muito contribuem, para a escalada de uma jurisprudência lotérica, visando assegurar, desse modo, a segurança jurídica ao ordenamento brasileiro. Tal tentativa deve ser considerada válida sob essa perspectiva, pois, de fato, há no sistema judiciário pátrio, um sentimento de insegurança ante a questão da facilidade de modificação e,

até mesmo, de contradição entre entendimentos judiciais proferidos, muitas vezes, dentro de um mesmo tribunal.

Desse modo, como bem aclarou Lênio Streck (2013), ao tecer críticas ao projeto do que então era o novo CPC, é necessário se falar não apenas em estabilidade das decisões judiciais, mas ainda em integridade e coerência. Para este autor, a coerência corresponde a “garantia da isonômica aplicação principiológica”. Ou seja, diz-se que uma decisão foi tomada de modo coerente quando esta observa os mesmos princípios considerados na decisão anterior.

Além disso, a integridade, ainda sob o entendimento do referido autor e com base na doutrina de Dworkin – que será melhor estuda adiante –, pode ser considerada como a exigência de que “os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito”. Dito isso, o CPC não apenas deve se ater à tentativa de tentar estabilizar e de, consequentemente, promover segurança jurídica ao sistema jurisdicional, mas, para além disso, deve se ater aos princípios norteadores da coerência e integridade.

Nessa senda, mesmo diante das ponderações realizadas pelo doutrinador citado acima, o que se vê, na prática, é uma deturpação no método utilizado para aplicação dos precedentes judiciais, uma vez que estes vêm sendo considerados em decisões futuras a partir de uma mera subsunção-lógica, evitando, desse modo, quaisquer formas de interpretação acerca da sua compatibilidade ao caso concreto, sendo, inclusive, equiparados à legislação. Como visto no tópico anterior, é nesse ponto, principalmente, que residem as críticas ao processo de commonlização e, consequentemente, à existência de um sistema brasileiro de precedentes.

As decisões judiciais, nesse cenário, estão sendo utilizadas com base em critérios hierárquicos, de acordo com os quais um precedente, somente pode assim ser considerado quando emitido através das Cortes de Vértice – que, no Brasil, são representadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) –, imputando-se aos demais graus de jurisdição uma função meramente aplicativa dos precedentes, o que, como já visto, é completamente incoerente ao conceito de precedente.

Nesse sentido, é o entendimento defendido por Daniel Mitidiero:

Tendo a interpretação da Corte Suprema valor em si mesma, sendo o móvel que legitima sua existência e outorga sua função, eventual dissenso na sua observância pelos seus próprios membros ou por outros órgãos jurisdicionais é encerado como um fator grave, como um desrespeito e um ato de rebeldia diante de sua autoridade, que deve ser evitado e, sendo o caso, prontamente eliminado pelo sistema jurídico e sua própria atuação” (MITIDIERO, 2013, p. 68)

O que se denota da passagem acima, portanto, é que o precedente judicial deve ser aplicado não porque é possível verificar pontos de congruência dialógica com o caso concreto, mas sim porque foram emitidos pelas Cortes Superiores e, desse modo, são dotados de caráter vinculante. Além disso, atesta-se que a utilização dos precedentes judiciais ocorre por imposição legislativa, a qual, uma vez desrespeitada pelos demais órgãos do judiciário, geram verdadeiros “atos de rebeldia”.

Busca-se, por meio da atribuição de força vinculante ao precedente, imputar segurança jurídica ao sistema jurisdicional brasileiro, o que, anteriormente, era realizado somente através da legislação. É possível vislumbrar, desse modo, uma transferência do poder normativo para âmbito das decisões judiciais – e, aqui, repisa-se, não qualquer decisão, mas aquelas tomadas pelas chamadas Cortes de Vértice.

Essa mesma concepção também é adotada por Luiz Guilherme Marinoni, na tentativa de consolidar o entendimento de que as decisões proferidas pelos tribunais superiores têm a função precípua de atribuir sentido ao direito. O precedente, sob essa perspectiva, adquire caráter vinculante e não meramente norteador dos julgamentos futuros. Como já dito, no âmbito prático – porém não a este limitado – a aplicação dos precedentes judiciais no Brasil orbita em torno do princípio da segurança jurídica, buscando-se conceder ao direito uma maior previsibilidade e uniformização. Assim pontuou Marinoni:

Relevante é que o precedente obrigatório orienta os cidadãos, pois lhes ditas o modo como devem se comportar e lhes dá a previsibilidade acerca do resultado dos reclamos jurisdicionais, tendo, nesta dimensão, a característica de norma geral que, além disso, é capaz de oferecer maior segurança que a própria norma legislativa. (MARINONI, 2016, p. 95)

O citado autor compreende que as decisões judiciais, e aqui leia-se aquelas emitidas pelo STF ou STJ, devem ser dotadas de característica de “norma de geral”, sob o argumento de “oferecer maior segurança”, superando, inclusive, a norma legislativa. Equipara-se, portanto, o precedente à norma e, desse modo, surge, novamente, a problemática atrelada ao positivismo exegético – já comentado no primeiro capítulo deste trabalho –, uma vez que os outros órgãos jurisdicionados estariam impedidos de fazer quaisquer movimentos hermenêuticos para interpretar um determinando precedente.

Ora, o que se vê na aplicação dos precedentes judiciais no ordenamento jurídico brasileiro é uma transposição dos equívocos interpretativos – antes atrelados às leis – para o âmbito jurisdicional. Logo, toda a suposição envolta da segurança jurídica trazida pelos precedentes não se perpetua, uma vez que estes passam a ser aplicados do mesmo modo da

legislação, o que, como já visto, mostra-se insuficiente para solucionar todas as questões envoltas em caso concreto.

Nesse sentido, Lênio Streck pontua que “a saída encontrada pelos precedencialistas foi a de transferir para um locus superior o processo de atribuição de sentido” (2019, p. 39), referindo-se ao poder concedido às Cortes de Vértice e, consequentemente, à vinculação dos precedentes ali formulados.

Ao contrário do que se vê no commn law desenvolvido na Inglaterra e nos Estados Unidos, os precedentes passam a ser tomados, no cenário brasileiro, não por sua congruência ao caso concreto, mas, unicamente, por serem proferidos pelas cortes superiores, o que, de logo, é suficiente para dar razão às críticas desenvolvidas a este método de aplicar as decisões judiciais âmbito jurisdicional do Brasil. Nesse sentido, Bahia, Nunes e Humberto Teodoro analisam criticamente essa questão, aduzindo os questionamentos a seguir:

Se os enunciados da lei não conseguem aplicação automática e indiscutível em todos os casos práticos submetidos à decisão judicial, por que isto aconteceria com os enunciados jurisprudenciais sumulados pelos tribunais superiores? Acaso os juízes teriam alcançado o milagre que os legisladores confessadamente se revelaram impotentes de conseguir? (BAHIA, NUNES e THEODORO JR., 2011, p.770). Embora tais questionamentos sejam retóricos, haja vista que já foram, mesmo que indiretamente, respondidos ao longo dessa pesquisa, repisa-se que as críticas realizadas a chamada “jurisprudência lotérica” estão sendo resolvidas por meio da imputação de força normativa aos precedentes, o que, não é preciso ir longe, para constatar que recai sobre esta solução o mesmo erro anteriormente criticado, qual seja o de retirar o foco de uma questão qualitativa e passar a tomar estes como meramente quantitativos.

Não obstante a isto, conforme pontua Lênio Streck (2019), há que se destacar a errônea tentativa de realizar a cisão entre interpretação e aplicação, pretendida pelos defensores do sistema precedencialista à brasileira. Nesse sentido, pontua o autor, ao se debruçar criticamente sobre o entendimento defendido por Marinoni acerca do caso específico de julgamento em torno da definição do conceito de “casa” para justificar a inviolabilidade do domicílio:

Eis aí, claramente, a cisão entre o discurso de fundamentação e o discurso de aplicação forjado no bojo na “teoria dos precedentes à brasileira”. Funciona assim: primeiro (antes), a Corte de Precedentes (a que “interpreta”) – encarregada de reduzir a “equivocidade” dos textos normativos – firma a tese (eis o busílis!); “depois”, os juízes do andar de baixo somente têm o trabalho de aplica-las. (STRECK, 2019, p. 61)

Pretende-se, desse modo, utilizar-se do precedente como “norma geral” e, portanto, apto a ser aplicado em quaisquer casos concretos pelo simples método de subsunção-lógica. Ou seja, os tribunais superiores, STF e STJ, firmam os precedentes e, a partir de então, estes estão prontos para serem utilizados pelos demais órgãos do judiciário aos casos que podem considerados “mais simples”, não demandando a atividade interpretativa das Cortes de Vértice.

No common law inglês e norte americano, o precedente só passa a assim ser considerado após analisadas as suas similitudes com o caso concreto e os princípios que ali estão postos. Em contra partida, no sistema brasileiro, o precedente é considerado desse modo, pois foi proferido pelas Cortes de Vértice, sendo a função das outras instâncias do judiciário somente realizar a sua aplicação, sem firmar qualquer esforço hermenêutico para tanto.

Os defensores desse entendimento esquecem, no entanto, que o precedente, assim como a norma, é texto e, portanto, carece de interpretação, sendo impossível realizar a atividade jurídica sem que se utilize de técnicas de interpretação para solucionar o caso concreto. O brocado “in claris cessat interpretatio” não prospera, nesse cenário, eis que, por mais completo que se possa considerar um precedente, não há clareza que não comporte interpretação (BAHIA, NUNES e THEODORO JR., 2011, p.753), mesmo que esta ocorra apenas na esfera gramatical.

Lopes Filho, ao tratar acerca da applicatio dos precedentes judiciais, assim entende:

O precedente não encerra discussões, mas, sem dúvidas, traz uma economia argumentativa porque, precisamente, por trazer um ganho torna desnecessário reavaliar e considerar aquilo que já foi avaliado e considerado em um jogo de-e-para já realizado. Para isso ocorrer, no entanto, também é necessária a adequada fundamentação. (LOPES, 2016, p. 338)

Dito isso, a tentativa de, por meio dos precedentes judiciais, assegurar maior segurança jurídica e uniformidade ao sistema jurisdicional brasileiro é válida e, inclusive, necessária. Ocorre, que a metodologia que vem sendo aplicada, desde o Código de Processo Civil de 2015, é questionável e se afasta do propósito inicial.

Acerca disso, reitera-se o que já foi explicitado neste trabalho em torno da vinculação dos precedentes sob a perspectiva trazida pelo acórdão do RE 655.265 – analisado em tópico anterior –, o qual pretende, a partir do entendimento do ministro Edson Fachin, propagar que os artigos 926 e 927 do CPC introduziram na jurisdição brasileira a

característica do stare decisis, baseando, assim, a necessidade imputada à vinculação dos precedentes judiciais.

Desse modo, faz-se necessário trazer à baila que o referido artigo 927, em seu caput, possuí a seguinte redação: “Os juízes e os tribunais observarão: (...)”. Em uma mera interpretação gramatical deste caput, é possível denotar que, em nenhum momento, o dispositivo trata acerca de vinculação do rol indicado nos incisos, mas tão somente se utiliza do verbo “observarão”, o qual, nem de longe, é suficiente para sustentar a pretensa vinculação por meio da instalação da stare decisis. Sobre o tema, Lênio Streck, acertadamente, dispôs:

Em concreto quero insistir que o Código de Processo Civil não instituiu um sistema de precedentes. Por quê? Porque, para o CPC, os provimentos que devem ser observados estão elencados no art. 927 (...) (a palavra é observarão e não vinculação) (STRECK, 2019, p. 91). grifado

As considerações tecidas ao longo deste tópico aclaram, portanto, que o método de aplicação dos precedentes judiciais utilizado no ordenamento jurídico brasileiro contribui para que se afastem os anseios de tornar o sistema jurisdicional mais seguro e uniforme, uma vez que simplesmente transpõem para o judiciário aquilo que é característico do legislativo, indo além ao determinar que as decisões judiciais emitidas pelo STF e STJ não devem ser interpretadas, mas somente aplicadas pelos órgãos judiciários de base.

É retirado, portanto, do sistema jurídico, no que concerne a aplicação dos precedentes judiciais, a sua capacidade interpretativa, tendo em vista que, como analisado, os órgãos dos demais graus de jurisdição somente devem aplicar, por subsunção, os precedentes judiciais, sem que, para tanto, seja realizado qualquer esforço interpretativo no sentido de se admitir que há entre o precedente e o caso concreto um mínimo de similitude.

4 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E O DIREITO COMO INTEGRIDADE: