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3. O tempo e o espaço da festa

3.3. A apoteose do barroco

O barroco é um conceito histórico, compreendido genericamente entre os séculos XVII e XVIII, com ideias morfológicas e estilísticas repetidas em culturas cronológica e geograficamente próximas na Europa. É um conceito de época, que se estendeu a todos as manifestações produzidas naquele período. E por isso, caracteriza-se como a cultura do barroco, indo muito além do movimento artístico39 que preconizou.

35 Por exemplo, no ano de 1752, em Ponte Lima, ordenou-se que se consertasse o caminho e a calçada, para a procissão

de Cinzas da Ordem Terceira poder passar. Consulte-se Barbosa, António Francisco Dantas, Tempos de Festa em Ponte de Lima (Séculos XVII- XIX), Braga, Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, 2013, tese de Doutoramento policopiada, p. 99; esta dissertação teve a sua obra publicada em 2017.

36 Araújo, Maria Marta Lobo de, “As manifestações de rua das Misericórdias portuguesas em contexto barroco”, in Hispania

Sacra, LXII, 125, 2010, p. 106.

37 Por vezes, os níveis de sujidade eram de tal ordem, que os padres não conseguiam atender aos seus serviços, nem as

entidades municipais comparecer às suas reuniões. Sobre este assunto veja-se Rosen, George, A history of public health, Baltimore, John Hopkins University Press, 2015, p. 22.

38 A limpeza destas áreas acontecia, de igual forma, para a passagem do viático. Leia-se Barbosa, António Francisco Dantas,

Tempos de Festa em Ponte de Lima (Séculos XVII- XIX)…, p. 297.

39 Foi através da arte que o conceito de Renascimento definiu uma época da cultura italiana. Leia-se Maravall, José Antonio,

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Para José Maravall a cultura do barroco consistiu numa resposta por parte dos grupos ativos da sociedade, que estava mergulhada numa dura e difícil crise económica40. A instabilidade

económica, política e social que se fazia sentir na Europa, a partir de finais do século XVI, levou a que as disputas entre as grandes potências se acentuassem e, com isso, os desejos de grandeza de cada uma exaltaram-se. As divisões territoriais religiosas entre católicos e protestantes, as trocas comercias, as grandes rotas, a extensão do domínio europeu e a criação de estados absolutos fomentaram o poderio e a identidade de cada nação, e a sua necessidade de o demonstrar e manifestar publicamente. O fascínio pela novidade, extravagância, materialismo, o contraste acentuado entre o belo e o feio, o exagero, a teatralidade, a rutura das normas, se bem que ilusoriamente, eram características da mentalidade barroca.

Uma das suas manifestações públicas de eleição com estas particularidades foi a festa, combinando o poder monárquico absoluto e o poder religioso. Os nascimentos, casamentos e mortes eram as principais celebrações das famílias reais, não só por serem ciclos importantes, mas também, permitiram que estes festejos não fossem exclusivos das elites. A alegria ou tristeza destes momentos era de todos. O luto possibilitava uma teatralidade dramática exacerbada, com pregações, elegias e comportamentos ritualizados. E, por isso, foi atribuído às exéquias reais uma especial importância, podendo prolongar-se por mais de um ano, como aconteceu em Portugal com as exéquias de D. João V (1706-1750). Existiam outros tipos de cerimónias reais e da nobreza como bailes, ópera ou o teatro com regras de etiqueta41, fogo de artifício e música.

O discurso promovido pela festa religiosa barroca vulgarizou-se42. Para além da

sumptuosidade, esta encorajara os devotos à piedade individual em prol da piedade coletiva. A orientação da religiosidade obedeceu a normas e modelos regidos pela literatura com sermonários, cerimoniários, manuais de piedade, livros de devoção e de catequese43. O barroco elevou-as, mas

40 Antonio Maravall, José, La cultura del Barroco…, pp. 55.

41 Com Luís XIV, a etiqueta tinha uma função simbólica de hierarquização na corte. Utilizada em qualquer circunstância, os

gestos representavam privilégios ou estatutos de determinada pessoa ou das famílias em relação às outras. Um monopólio sobre determinados cargos oficiais, fontes de renda e posição hierárquica. Acerca desta temática consulte-se Elias, Norbert, A Sociedade de Corte, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001, pp. 97-131.

42 Sobre esta temática veja-se Bouza Álvarez, José Luis, Religiosidad Contrarreformista y Cultura Simbólica del Barroco,

Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1990, pp. 42-46.

43 Santos, Eugénio dos, “Missões populares e festa barroca: Um aspecto da sensibilidade colectiva”, in I Congresso

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a Igreja Católica apoderou-se de duas práticas de demonstração pública: os sermões e as procissões44.

Os sermões, primavam pela arte da retórica e oratória, com um raciocínio persuasivo que idealizava pela argumentação os exemplos e caminho a seguir para se viver em harmonia e conformidade, segundo os ideais da Igreja Católica. Estes eram incumbidos a um pregador45 e, a

escolha deste não era ao acaso, principalmente nas maiores celebrações. A trasladação de relíquias, penitência ou agradecimento a Deus pelo bom tempo ou boas colheitas eram ritualizados nas procissões, compostas de figuras alegóricas, música, luminárias, preces, andores. Nestas cerimónias o clero, outras entidades e os fiéis trajavam a rigor e desfilavam de forma hierarquizada, demonstrando o cumprimento de regras46.

Conquanto, o carácter ideológico da época barroca demonstrou que a imaginação individual e coletiva não tem limite, quando se trata do poder monárquico, eclesiástico e da força da religião.