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A apropriação do discurso histórico na criação ficcional em Bernardo Élis

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O fazer humano se constitui pelas ações, mas se eterniza pela linguagem. Uma das formas eficientes de registro da concretização das ações humanas é a linguagem escrita. O interesse aqui em torno da linguagem escrita destina-se à narrativa Chegou o Governador, bem como a forma com que Bernardo Élis se apropria de um discurso histórico para criar um discurso ficcional.

Ao longo dos tempos, a atividade de comunicação humana foi selecionando, conforme as circunstâncias dadas, as formas de uso dos enunciados, a escolha do vocabulário e de estratégias linguísticas. Na medida em que ia selecionando, a atividade de comunicação constituía uma forma adequada de discurso para cada categoria criada pela sociedade civilizada. São essas categorias: a história; a

filosofia; a retórica; a literatura; entre outros.

A construção do discurso histórico, no século XIX, buscou no discurso positivista, embasado no cientificismo, as bases para sua afirmação como ciência. Seguindo um rigoroso padrão metódico, o registro histórico passou a ter como condição essencial a comprovação dos fatos. O que não se pudesse comprovar por meio da vivência, da experiência e da documentação escrita (e oficial) não seria história. Acreditava-se que o historiador deveria ser um cientista da linguagem que faria o registro de modo impessoal, não envolvendo sentimentos ao relatar os fatos. O texto histórico deveria ser técnico, asséptico, livre de todo e qualquer subjetivismo. E essa ideia prevaleceu até meados do século XX, quando historiadores, linguistas e teóricos da língua e linguagem passaram a questionar o cientificismo e a imparcialidade da escrita.

Pensando na natureza própria da escrita da história, articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como de fato foi. De acordo com Hayden White (2006), até mesmo o discurso histórico, que se pretende objetivo, ganha toda subjetividade que lhe é própria – a começar pela escolha e seleção de um tema, a qual se realiza no espaço de interesse do historiador. Esse escritor considera que a história contada historicamente é equivocada. Para ele, “as declarações factuais são entidades linguísticas e pertencem a ordem do discurso” (2006, p. 192). Ao tratar da narrativa e da relação que a mesma estabelece com a história, White afirma que:

[...] a narrativa é considerada um container neutro do fato histórico, um modo de discurso “naturalmente” apropriado a representar diretamente os eventos históricos; segundo, histórias narrativas geralmente empregam a chamada linguagem natural e ordinária, no lugar da técnica, ambas para descrever seus temas e para contar sua estória; e terceiro, eventos históricos devem consistir ou manifestar um amontoado de estórias “reais” ou “vividas”, as quais têm apenas de ser descobertas ou extraídas das evidências e dispostas diante do leitor para ter sua verdade reconhecida imediata e intuitivamente. (2006, p. 191-192).

White (2006) teoriza sobre o discurso histórico, afirmando que de qualquer forma o texto histórico é um texto. Afinal, o mesmo é produzido por um sujeito que monta o arranjo dos acontecimentos, posicionando-se em um tempo e em um lugar – estando esse sujeito vinculado ao contexto e, por isto, de acordo com os valores que incorporou. Logo, não há como um historiador ser completamente imparcial.

Por isso, o que dizer do romance Chegou o Governador, de Bernardo Élis? Toda sua narrativa é pautada de epígrafes e sempre seus capítulos são abertos com

essa referencialidade ao discurso histórico. A narrativa e sua relação com o documentário propiciam uma outra invenção do passado. Afinal, nessa dissertação, parte-se do pressuposto que Bernardo Élis se apropria de um discurso histórico para produzir um contraponto discursivo. Acredita-se que sua intencionalidade seria subverter o discurso de decadência associado ao passado de Goiás, que de certa forma foi estigmatizado e entendido como verdade (inclusive por certa historiografia goiana), sobretudo, graças aos relatos de viajantes e de cronistas oitocentistas.

A intenção nos próximos capítulos, principalmente no terceiro capítulo desta pesquisa, é demonstrar que, ainda que Bernardo Élis se apodere de um fato histórico, seja pela lente crítica e imaginativa da verdade ficcional, o escritor nos transmiti sua visão dialética da realidade, sendo essa sua função precípua. Assim, procurar-se-á insistir num ponto básico: a partir do momento que se tece a ficção, ainda que com os fios da história, obtidos seja pelos relatos dos viajantes, seja pelo debate historiográfico, não haverá mais a preocupação em torno da “verdade histórica”?

Na tentativa de encaminhar um debate em torno dessa questão, traçar-se-á, no segundo capítulo, uma abordagem da narrativa evidenciada em Chegou o Governador a partir da relação da mimésis e da verossimilhança amparada à teoria de Luiz Costa Lima. A partir desse conceito, buscar-se-á entender de que maneira a representação de um discurso histórico, feita por Bernardo Élis, constrói e propõe um contraponto discursivo através do ficcional – superando, desse modo, as análises que se concentram em pensar a obra de Bernardo Élis dentro da perspectiva meramente regionalista. Nesse direcionamento, uma pergunta se impõe: será Chegou o Governador a única obra bernardiana inserida no campo da ficção e história? Certamente que não. Todavia, não se coloca como objetivo deste trabalho traçar um estudo comparativo entre as produções de Bernardo Élis.

Especificamente para o tratamento da narrativa Chegou o Governador, buscar-se-á entendê-la inserida no campo da narrativa de extração histórica. Pois, percebe-se na obra de Bernardo Élis a utilização de estratégias discursivas no sentido de promover uma relativização dos limites, antes tidos como rígidos, entre história e ficção. De acordo com Trouche (2006, p. 33), pode-se avaliar como formas de relativização desses limites “a forte influência recíproca e a grande permuta de procedimentos e processos discursivos entre a narrativa histórica e a narrativa

ficcional, aliadas ambas às alterações conceituais que vieram processando no interior de uma delas”.

Para o caso de Chegou o Governador, o escritor promove essa relativização quando o mesmo insere epígrafes, estabelecendo assim, diálogos através de intertextos vivos e interdiscursos com os relatos dos viajantes e dos cronistas do século XIX – Saint-Hilaire, Pohl e Cunha Mattos – e com a historiografia tecida na trilha desses relatos – os historiadores Luiz Palacín e Dalísa Dores. Por fim, avalia- se que talvez Chegou o Governador não seja a única obra bernardiana inserida no campo da ficção e história. Mas, certamente, é a única que apresenta a construção narrativa realizada a partir do diálogo com os viajantes oitocentistas e com a historiografia goiana, refém desse discurso oitocentista. Construção essa necessária para compreender novas possibilidades discursivas de criar um outro passado para Goiás que encontra no desejo de inserção no caminho da modernidade, e não da

CAPÍTULO II

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