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No âmbito da importância pedagógica atribuída às artes da representação, Aristóteles confere à música um papel de especial relevo. Esta valorização decorre da qualidade ética atribuída à expressão musical, que segundo Aristóteles, corresponde à forma de arte que melhor reproduz os diferentes carácteres do ser humano. A importância consagrada à musica enquanto exercício de virtude funda as suas origens na própria cultura e mitologia grega. Exemplo disso nos é dado pelo mito de Orfeu, que enquanto poeta, músico e cantor, teria desenvolvido o poder sobrenatural de gerar a harmonia e a calma, seduzindo toda a natureza com as suas melodias doces e harmoniosas. Grande parte da importância pedagógica e política que Aristóteles atribui à música, resulta do facto de esta se encontrar directamente ligada a diversas formas de representação artística, como a epopeia, a poesia lírica, a tragédia ou a comédia. Com efeito, não nos podemos esquecer de que

todas estas expressões artísticas eram então apelidadas de música, dado serem consideradas como “manifestações das musas”.

Tal valorização do sentido ético associado às expressões artísticas já havia sido anteriormente evocado nas reflexões de Platão acerca da educação na cidade, ou por Heródoto, quando este se refere a Homero como o grande educador da Grécia.

A expressão artística procura veicular um conjunto de valores, que apresentem um modelo de acção prática a seguir. São disso exemplos a coragem de Aquiles, a astúcia de Ulisses ou a dignidade de Ifigénia. Enquanto a epopeia e a tragédia representam acções de nobreza, a comédia tende a ilustrar comportamentos pouco edificantes. Todas estas manifestações comportam uma função didáctica, seja no sentido de estimular o fascínio pelas personagens épicas e trágicas, seja para suscitar a vergonha e o embaraço perante as personagens cómicas. A música adquire assim um duplo sentido de pedagogia, graças à motivação, ao reconhecimento e à autocrítica que produzem no indivíduo. Já no que respeita à música dita orgiástica, Aristóteles confere-lhe um sentido delirante, idêntico ao das festas e dos rituais religiosos catárticos ou purificantes.

A noção de catharsis surge frequentemente no vocabulário religioso e médico da antiga Grécia com o sentido de purificação ou purgação39, vindo mais tarde a ser utilizada para caracterizar as manifestações artísticas. A função catártica da música transforma as emoções humanas, induzindo-lhes terror, compaixão, alegria ou cólera e funciona como uma espécie de válvula de escape, contribuindo para uma certa estabilização emocional no seio da comunidade. Segundo Aristóteles, esta capacidade da arte para transformar as emoções humanas adquire uma importância tão determinante quanto a própria expressão dos valores e dos ensinamentos morais associados à música didáctica.

Assim sendo, as artes miméticas não se encontram dissociadas nem da ética, nem da política40. Pelo contrário, estas dimensões encontram-se estreitamente ligadas, tanto nas questões abordadas, como no seu processo de representação e universalização. Para além dos dilemas suscitados acerca do carácter das personagens não só estabelece um contraponto entre a virtude e o vício, como recupera e sublinha os próprios ideais fundadores da polis. Tal como Platão já defendera na República, a Política de Aristóteles reafirma a ideia de que as manifestações artísticas, sejam elas promotoras de um sentido pedagógico ou de um sentido catártico, devem estar

39. MAUTNER, T. - Direcção da obra, Dicionário de Filosofia, Lisboa: Edições 70, 2010, p.137.

40. Sobre a relação entre a arte, a ética e a política em Aristóteles, sugere-se a leitura de: BABUT, D. (1985). “Sur la notion

d`imitation dans les doctrines esthétiques de la Grèce classique” en Revue des Etudes Grecques 98; pp.72-92; BARBERO, S.G. La

noción de mimesis en Aristóteles. Córdoba: El copista, 2004; Depew, D., Politics, Music and Contemplation in Aristotle’s Ideal State: Ed. D. Keyt y F. Miller, 1991.

subordinadas às necessidades e aos objectivos do Estado ideal. Esta defesa de uma subordinação do universo estético ao universo ético-político, não será alheia à herança deixada por uma outra grande figura marcante da cultura clássica: Péricles (495-429 a.C.).

Exemplo paradigmático de uma práxis política sem paralelo na história, este estadista soube utilizar de maneira ímpar o poder da arte como instrumento ao serviço da acção governativa41. Após a guerra contra a Pérsia, Péricles ascendeu ao poder e Atenas atingiu então o seu apogeu artístico e cultural. Ao longo do século V a.C., também denominado de século de ouro ou de Péricles, a arquitectura conheceu um desenvolvimento notável, graças à construção ou reabilitação de edifícios e monumentos marcantes, como a Acrópole ou o Parténon, concebidos pelo arquitecto Nicotino. Também a escultura adquiriu o seu máximo esplendor, à medida que as obras passaram a assumir um maior realismo, procurando reflectir a perfeição e a beleza das formas humanas. São disso exemplo o Discóbolo de Miron ou as estátuas de Fídias. Já Sófocles e Eurípides destacaram-se no teatro, apresentando os dilemas fundamentais e as interrogações éticas inerentes à condição humana. Estimulando o desenvolvimento intelectual e artístico de Atenas, Péricles procurou proteger os artistas e democratizar as artes, através da atribuição de subsídios aos cidadãos mais pobres, para que estes pudessem assistir às representações teatrais. Graças a este investimento estratégico e sistemático no desenvolvimento das diferentes manifestações artísticas, o governante transformaria Atenas num dos mais importantes centros culturais da antiguidade, reforçando ao mesmo tempo o seu próprio poder político.

Embora sem este sentido instrumental gizado por Péricles, também Aristóteles irá estabelecer uma relação próxima entre a arte e a praxis política. Como já vimos anteriormente, o nosso filósofo entende que se por um lado a prática artística comporta em si mesma um sentido poiético decorrente da excelência da produção, por outro ela também inculcará no indivíduo um conjunto de valores éticos, que se irão repercutir na formação do seu carácter e da sua acção práxica. Por esta razão, o lazer é visto como uma actividade cultural indispensável ao melhoramento da virtude dos cidadãos e da própria estabilização do projecto cívico, graças ao compromisso que a actividade artística estabelece com os princípios da ética e da política. A valorização do ócio como

41. Sobre Péricles, ler: MOSSÉ, C. Péricles, l'ínventeur de la démocratie. Paris: Éd. Payot et Rivages, 2005.

Nos diálogos platónicos de Górgias, Sócrates tece uma dura crítica aos estadistas cujas gloriosas realizações materiais mais não são do que uma máscara de prepotência e um desvio perigoso da sua missão essencial: aperfeiçoar a dimensão religiosa e moral da comunidade. Neste contexto, o imperialismo de Péricles é objecto de uma condenação frontal, em que Platão insiste na ideia de que toda a prosperidade material que o governante trouxe a Atenas, não representou um autêntico progresso, uma vez que não teve reflexos positivos na formação da consciência moral dos cidadãos:

“SÓCRATES: Conclui-se, portanto, que Péricles não era um bom político”

processo de aprendizagem para a acção práxica, encontra-se pois directamente ligada ao papel activo a desempenhar pelo cidadão na comunidade.

Coloca-se então a questão de percebermos qual o significado que Aristóteles atribui ao conceito de cidadania, quais os habitantes da polis que beneficiam dessa condição particular e que tipo específico de acção prática lhes está consignada.