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A Artificialidade das Características das Personagens

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A história destaca Deolinda como fio-condutor da narrativa. É ela a maior motivação temática que estabelece relação entre vida e morte, repercutindo e movimentando as personagens, mostrando suas caraterísticas. A mãe e o pai de Deolinda, o português, o administrador estão envolvidos por ela. Ela é signo da vida

62 e da morte, tal como Moçambique do universo ficcional. Ela representa a mudança de país, de cultura de vida, de Sidónio. Contudo, Munda rouba as cenas finais da história, aceita as circunstâncias avessas a sua vontade, como viver sob a égide da mentira, só para apreciar as supostas cartas que denunciam que sua filha vive em algum lugar. Bartolomeu adoeceu com a falta de Deolinda, espera por ela como remédio capaz de curar seu mal, encontrou nas cartas o ponto de partida para sua viagem ao sonho eterno.

Há multiplicidade de modos de viver adoecido ou sarado, mas os objetivos das personagens são semelhantes: buscam sonhar para a manutenção da vida, se o sonho acabar, nada mais fará sentido. As relações conflituosas dão movimento à aparentemente pacata Vila Cacimba. As histórias singulares de cada participante da narrativa chocam-se para formar a imagem daquele povo “cacimbense”. As linguagens e as culturas que se encontram ali, servem como respostas para os deslocamentos de quem teve coragem de partir de sua terra natal para fixar-se no lugar moçambicano.

As personagens são construídas a partir do ponto de vista dos outros sujeitos discursivos, de entrelugares. São vistas como imagens fragmentadas em diferentes processos de identificações. Sofrem de males inerentes aos movimentos da vida e de outros provocados por visitantes desejados e estrangeiros invasores de seu território. O caráter ambíguo que compõe as falas e suas culturas pode ser visualizado quando a personagem traça características do outro:

Dona Munda sopra impaciências, agitando um leque de palha junto ao rosto Mundinha, sempre torta e azeda, queria agora coincidir os pontos e as reticências? [...]

Dona Munda, coitadinha, era muito ingénua COUTO, 2008, p. 20, 41, 83 pdf).

O Sozinho descreve a esposa como aquela que se desdobra em impaciência, bem como a que é bastante ingênua. Tece características que não revelam quem é Munda, mulher que atrai, que se sente atraída, quer amar o português, tenta conquistá-lo, mostra-lhe um remédio polivalente, capaz de curar as doenças incuráveis.

Durand (1989, p. 136) ressalta que a “libido seria sempre ambivalente, um vetor psicológico com pólos repulsivo e atrativo, como também por uma duplicidade profunda destes pólos”. Desse modo, ela revela sua libido como forma de propalar

63 sua autoafirmação. Assim, observam-se suas ideias no trecho a seguir em que Munda insinua-se para Sidónio seu desejo libidinoso:

A mulher não quer apenas que o português toque e cheire a flor. Pretende que ele faça como ela está fazendo: que mastigue umas pétalas e sinta o seu sabor adocicado. — Este é o remédio para saudades e tristezas, essas que não têm cura — diz Munda.27

As características das personagens são postas em travessias, mesmo quem não saiu de Vila Cacimba sente-se atravessado pelo estrangeiro, pois foram invadidos pelos contatos externos do lugar, a língua local foi hibridizada pelos processos de desterritorialização e reterritorialização.

Conforme Deleuze e Guattari (2011, p. 25-6), pode-se inferir que numa construção que (re)coloca o sujeito em algum lugar, de maneira que se sinta reorganizado, ocorrem rupturas do antes e do depois, restando algo novo ressignificado: “linhas segmentares explodem numa linha de fuga [...] Estas linhas não param de se remeter uma às outras”. Partindo dessa rede, o sujeito vagante toma sua bagagem rumo ao seu destino. Assim, ocorre a reteriorização da personagem: Sidónio ao chegar em Vila Cacimba. Neste lugar, ele encontra-se com a natureza sintética da família dos Sozinhos, descobrindo também a essência dos homens, tidos como nuvens, sombras:

— O senhor chegou aqui a perguntar se gostávamos dos portugueses, todos os dias perguntava a mesma coisa… — E qual é o mal? — Nunca em Portugal eu perguntei se os portugueses gostavam dos africanos. E sabe porquê? — Não. — Tinha medo de perguntar porque já sabia a resposta. — Tudo isso mudou muito. Portugal, agora, é um outro país. — As pessoas demoram a mudar. Quase sempre demoram mais tempo que a própria vida… Afinal, os homens também são lentos países. E onde se pensa haver carne e sangue há raiz e pedra. Outras vezes, porém, os homens são nuvens. Basta o soprar de um vento e eles se desfazem sem vestígio (COUTO, 2008, p. 83, pdf)..

Ao chegar na Vila onde mora os Sozinhos, a carreira de Sidónio parece ser unicamente a de médico, mas torna-se político empenhado no pleito da campanha para as eleições: “português era o único médico para toda a Vila, estava o povo em plena epidemia e ele, político de carreira, em plena campanha eleitoral”.28 A

27 (Idem, ibidem, p. 91, pdf). 28 (Idem, ibidem, p. 26, pdf).

64 preocupação do recém-chegado no lugar é com o cargo político, sua suposta formação na medicina parece ser deixada de lado, a não ser para Bartolomeu, a quem tinha inclinação de amizade.

De acordo com Durand (1989), pode-se inferir que a estrutura sintética da vida rítmica das personagens forma um ciclo de repetição infinita, como é o caso da eterna espera de retorno de Deolinda: “— Como desconfiado? — Deolinda não me está dizendo toda a verdade. Esses adiamentos consecutivos… E por que razão ela não diz onde está?”.29 Ora imagens expressam características heroicas, ora místicas de

uma mesma pessoa. Não se sabe ao certo quem está vivo ou morto. Estão todos esquecidos ali como as flores que são remédios para o esquecimento:

[...] ela ampara molhos imensos de flores brancas. São beijos-da-mulata, as flores do esquecimento. Plantam-se junto aos cemitérios para que os mortos se esqueçam de que, em algum momento, foram viventes.[...]

— Suba depressa — ordena o cobrador.

— Podem ir, eu fico por aqui — explica a aparecida. — Fica aqui, no cemitério?

— interroga-se o motorista.

— Eu vim semear estas flores. Tirei-as do cemitério e vou semeá-las por aí, vou semeá-las em toda a Vila Cacimba (COUTO, 2008, p. 94, pdf).

As personagens que viajam para Vila Cacimba, parecem conhecê-la porque desembarcaram naquele lugar. Entretanto, acham-se imersos no nevoeiro, ora são homens, ora, nuvens: “Em Vila Cacimba faz tanto nevoeiro que os homens, por vezes, não são mais que nuvens”30. Fazem parte do ciclo das estações, nascem, frutificam e

morrem. Contudo, a linguagem insinua a dupla negação que não deixa respostas claras para as perguntas. Não se sabe se os Sozinhos receberam algum ente novo em sua família, senão seriam, a partir de então, Acompanhados e não mais Sozinhos. As campas sugerem estar ocupadas, mas também a espera de alguém que fará morada ali. Sidónio quer saber o paradeiro físico de sua amada, não encontra respostas para suas infinitas indagações. Entra e sai de Vila Cacimba perdido em meio a tantas ações que nada explicam, não sabe se a personagem busca se estabelecer em seu mundo imaginativo ou se já habita em seu devaneio.

— E esta é a campa de Deolinda?

— pergunta Sidónio, apontando para a enferrojada âncora.

29 (Idem, ibidem, p. 23, pdf). 30(Idem, ibidem, p. 92, pdf).

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— Não. Esta será a campa de Bartolomeu. — E onde está enterrada Deolinda?

— Eu já lhe disse, Deolinda não mora na terra. Ela é uma sombra. — Diga-me: qual é a campa dela?31

A viagem começa tecendo o imaginário, vai ao encontro daqueles que precisam de um bilhete só de ida ao universo dos sonhos. O médico embarca pelo desejo de rever sua amada. Passa tempos em Vila Cacimba e nada encontra, senão mentiras que o fazem permanecer imerso naquele lugar por um pouco de tempo. Descobre que nada saberá sobre ninguém ali. Deolinda é uma sombra que parece abrandar o causticante mormaço dos eternos conflitos entre o colonizador e os pós-colonizados.

66 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao nos depararmos com o objeto Venenos de Deus, remédios do Diabo, de Mia Couto, percebemos que o entrelaçamento da história dos personagens se inscreve no entrelugar. Este estudo permitiu-nos constatar que as relações entre as “viagens” de doutor Sidónio, Bartolomeu, Munda, Deolinda e outros, mostravam-nos na condição de sujeitos vagantes, que se moviam e movimentavam os fantasmas que dão sentidos a suas vidas. O cemitério é o lócus de encontro e de desencontro entre os mundos real e imaginário.

As leituras sob diferentes ópticas deram-nos meios de observar as características de cada um dos protagonistas: como embarcavam no sonho que suscita a vida e a morte por meio de substâncias que podem curar e matar. As circunstâncias de cada personagem parecem paradigmas diferentes, mas, ao mesmo tempo, sugerem ser a mesma coisa, caminhar para um mesmo fim: desejam encontrar-se, de forma lúdica, consigo mesmos.

Doença e saúde, venenos e remédios, nacional e estrangeiro estão colocados numa mesma espacialidade para gerar o efeito da imagem híbrida. O pluralismo das memórias inscritas no entretempo e no entrelugar formam contrastes de experiências, de sonhos. Contudo, Deolinda é o fio-condutor das atenções e dos desejos mais profundos. A personagem-chave evoca os sentidos da vida dos entes que são atraídos por ela. Ela é a condição comum dos sonhos, do imaginário.

Os sujeitos são vagantes, trazem em suas memórias os fantasmas que dão sentidos para suas vidas. As significações foram descobertas no desenvolvimento da pesquisa. Os olhares sobre o tecido narrativo de Mia Couto foram ampliados, mostrados. O mapeamento da narrativa nos permitiu demonstrar entrelugar, entretempo, sonho, realidade ficcional, imagens de um mundo imaginário, com personagens vagantes, entre outros. Fez-se um profundo mergulho na cultura moçambicana, bem como no jogo de ir e vir no entretempo e entrelugar da narrativa. Vila Cacimba se inscreve como ponto de partida e de chegada para se viver o sonho de maneira mais intensa e profunda. O bilhete de passagem é a imaginação, o desejo de conhecer outros mundos, ter experiências com seus elementos.

A graduação em Pedagogia serviu como base para o desejo de apreender sobre os elementos da literatura de Mia Couto. A injeção de persistência foi reaplicada

67 a cada aula. As leituras da obra Venenos de Deus, remédios do Diabo com as teorias condizentes com o que foi traçado no projeto inicial mostraram as significâncias, os elementos, a organização discursiva, as características das personagens, os pontos do entrelugar e do entretempo. Os modos discursivos encontrados nas linguagens reveladoras de sentidos foram mostrados como análise do processo criativo que remete para questões diaspóricas, inscrito na sua realidade do sonho e do imaginário. As imbricações dos elementos do processo criativo formaram reflexos do universo ficcional sobre o suposto diálogo com o mundo cotidiano do que se sente convidado a imergir num mesmo espaço das personagens vagantes. A pesquisa se fez como convite à fruição de circunstâncias ficcionais encontradas num entrelugar, A imaginação movimentou a escritura deste estudo: a vida dos moradores de Vila Cacimba foi vista como imagens de remédios e de venenos, misturados, formando novas substâncias eficientes para ressignificar o sentido da vida e da morte nas experiências dos sujeitos.

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