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2 O MITO DA MULHER E O CINEMA

2.3 O CINEMA E A MULHER

2.3.2 A mulher construída na tela

2.3.2.2 A ascensão das estrelas

O período de 1920 a 1930 é caracterizado como a era gloriosa do star system, além de mudanças importantes na indústria cinematográfica. O surgimento do cinema falado e o desenvolvimento de tecnologias para a captação de imagens coloridas tornaram os filmes mais realistas.

Nesse período pós-guerra, os Estados Unidos passavam por um momento de otimismo e prosperidade, refletindo essa sensação na indústria cinematográfica e impactando o aumento da produção de filmes. No início da década de 1920, as mulheres estadunidenses conquistaram o direito ao voto por meio do movimento sufragista, impulsionadas pelas conquistas do movimento na Europa. Entretanto, as mulheres norte-americanas, assim como as europeias, “[...] foram encorajadas a voltar ao lar e reassumir o papel de esposas e mães em tempo integral e a abrir espaços para os homens que estavam voltando da guerra” (MENDES E HAYE, 2003, p. 53). Esse cenário reflete no cinema, em que a mulher bela, sensual e independente é vista como perigosa.

O período de ascensão do star system é marcado pela reprodução de arquétipos que invadem as telas hollywoodianas e que consolida um grande arquétipo, a femme fatale (MORIN, 1989). A mulher fatal marca uma representação mais complexa do feminino. Os antigos arquétipos, antes bem definidos e polarizados, como a bondade da virgem e a malvadeza da vamp, passa a se multiplicar e

diversificar em outros arquétipos. Como exemplo, o autor Morin (1989) traz a virgem inocente que se transforma na mulher chique e na mulher amante e companheira. Já a vamp, segundo Morin (1989, p. 32), foi apagada do star system, pois “[...] a estrela não pode ser imoral, perversa, selvagem”. Entretanto, ainda conforme o autor, ela “[...] libertou uma energia erótica que se distribuiu por todos os outros tipos de estrelas”.

A mulher fatal adota o erotismo da vamp e avança ainda mais na sensualidade, se tornando uma mulher irresistivelmente atraente. Essa sedução misteriosa e beleza tentadora são baseada nos mitos antigos, como a Pandora e Helena de Tróia das histórias da Grécia e a Eva da Bíblia. A femme fatale, segundo De Carli (2009), ainda retoma conceitos da psicanálise, em que o homem se afasta por ver o corpo feminino como um mistério, mas se encanta ao relacionar o poder da mulher ao poder do falo. A morte é seguidamente retratada como desfecho para a mulher fatal e, de acordo com De Carli (2009, p. 92), acontece como uma forma moralista de punição. Essa visão evidencia o cinema hollywoodiano característico da época, em que além de entretenimento é pedagógico para o seu público, a classe média. A autora ainda relaciona esse cinema com o melodrama do teatro do povo, que “[...] permite a identificação do espectador classe média; libera paixões; mostra a transgressão e o perigo; pune; reconhece a virtude, com a finalidade pedagógica e moralizante de manter a ordem”.

O corpo da femme fatale, conforme De Carli (2009), possui ombros largos, pouco peito e quadril estreito. A silhueta é esbelta e o olhar é de cima para baixo, com pálpebras semiabertas e sobrancelhas finas. Com o rosto envolvido por uma maquiagem espessa como a neve, um olhar frio e uma sensualidade insinuada e enigmática, essas características são baseadas na grande estrela do período, a atriz Greta Garbo (Figura 8).

Figura 8 - Atriz Greta Garbo no filme Mata Hari (1931)

Fontes: <https://www.wikiwand.com/en/Mata_Hari_(1931_film)> e

<https://www.imdb.com/title/tt0023196/mediaviewer/rm1919260672>. Acesso em: 24 nov. 2019.

A atriz Greta Garbo é um exemplo de femme fatale, mas também assume outras representações, dando sinais da transição de Hollywood em representar outras mulheres. O autor Morin (1989, p. 8), ao falar sobre Garbo, coloca que “entre a virgem e a mulher fatal, surge a divina, tão misteriosa e soberana quanto a femme fatale, tão profundamente pura e destinada ao sofrimento quanto a jovem virgem”. Conhecida como “Divina”, a atriz representava a beleza perfeita e endeusada, como a beleza da Grécia Antiga, mas que também abria espaço para traços humanizados.

A representação da mulher bela e fatal ganha uma nova roupagem sob a estrela Marlene Dietrich. Vestida com roupas masculinas, a personagem da atriz no filme Marrocos12 (Figura 9) desafia a imagem feminina do período. Segundo Kaplan

(1995), Dietrich abre espaço para duas visões: na primeira, sob o olhar masculino, a mulher é vista como um objeto de fetiche. Na segunda, o olhar da espectadora vê a atriz como uma forma resistência.

12 Título original Morocco (IMDb).

Figura 9 - Marlene Dietrich no filme Marrocos (1930)

Fonte: <https://www.christies.com/lotfinder/Lot/marlene-dietrichmorocco-1930-> Acesso em: 24 nov. 2019.

As grandes atrizes tinham uma forte influência não só nos seus personagens, como no próprio estilo de vida. Os anos dourados do star system foi também visto fora das telas, sendo que as estrelas hollywoodianas viviam como verdadeiras deusas, mesclando o mito com o real. Segundo Morin (1989), a propaganda de atrizes inalcançáveis e enigmáticas só aumentavam a adoração pelo público.

Sem se preocupar com a divinização do star system, a Europa, no período pós- Primeira Guerra Mundial, se revela um continente em crise. Nesse contexto, o cinema francês buscou no movimento artístico Impressionismo um cinema mais estético e autoral. Com uma situação similar e enfrentando a devastação da guerra, o cinema alemão buscou os sentimentos primitivos do ser humano no Expressionismo, com o filme de Robert Wiene, O gabinete do dr. Caligari13 (1920). O cineasta espanhol Luis

Buñuel, com o filme Um cão andaluz14 (1929), utilizou do Surrealismo para mesclar,

de uma certa maneira sombria, a realidade e o sonho em uma narrativa não-linear (CANIZAL, 2008).

Na Rússia, Eisenstein, com o filme Outubro15 (1927), propunha um cinema

diferente do de Hollywood, fazendo importantes estudos sobre a montagem do filme, o “cinema intelectual”. O autor Morin (1989) cita um outro filme de Eisenstein, O

13 Título original Das Cabinet des Dr. Caligari (IMDb).

14 Título original Un chien andalou (IMDb). 15 Título original Oktyabr (IMDb).

Encouraçado de Potemkin16 (1925), para destacar o poder de expressão desses

filmes europeus em relação aos hollywoodianos. Conforme o autor, enquanto as estrelas se escondiam na maquiagem, os rostos das atrizes do filme não usavam pintura, revelando a textura da pele, suas sombras e relevos, tornando-as mais humanas e reais.

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