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A “ascensão/desenvolvimento pacífico” do gigante chinês

Capítulo II: Política Externa da RPC e Estratégia

II. 2. A “ascensão/desenvolvimento pacífico” do gigante chinês

Após o colapso da URSS e com o crescimento económico da China nos anos 90, começou a falar-se numa ascensão do país. Yan Xuetong aponta que foram os media não chineses os primeiros a falar da China como uma “potencial superpotência” (2001: 33), sendo que a partir daí passou a ser veiculada a teoria da ameaça. De forma reactiva, surgiu

28 Lee Teng-hui solicitou, em 1994, autorização para o avião no qual seguia abastecer no Havai, sendo esta a primeira vez em que um presidente taiwanês aterrava em solo norte-americano, e em 1995 discursou na universidade norte-americana de Cornell, onde obteve o doutoramento, o que enfureceu Pequim.

29 A política “Um País, Dois Sistemas” foi a solução encontrada nos anos 80 para as questões de Hong Kong e de Macau, então sob administração britânica e portuguesa. Foi esta política que permitiu uma transição de administrações pacífica nos dois territórios, atribuindo um alto grau de autonomia tanto a Hong Kong como a Macau durante 50 anos, com excepção das Relações Externas e da Defesa. Segundo o previsto, Hong Kong terminará o período de autonomia previsto em 2047 e Macau em 2049.

33 então o conceito de “ascensão pacífica”, depois designado “desenvolvimento pacífico”, associado a uma eventual grande estratégia por parte da RPC.

Alexandre Carriço identifica o “desenvolvimento pacífico”, assim como o “sonho chinês”, desenvolvido mais adiante, como sendo dois dos mais importantes elementos daquilo a que chama o actual “edifício estratégico” da China, constituído por, de cima para baixo: uma visão do mundo harmonioso; o conceito/desígnio/ambição de sonho chinês/da China; a grande estratégia de desenvolvimento pacífico; a estratégia de segurança nacional assente no Novo Conceito de Segurança; a estratégia militar de defesa activa; e, por fim, a doutrina militar de Guerra Limitada sob Condições de Info- mecanização (2015: 93).

Mas há visões discordantes sobre se o conceito de desenvolvimento pacífico pode ou não ser integrado numa grande estratégia31, não existindo uma referência oficial e

explícita a uma grande estratégia da RPC e havendo uma multiplicidade de perspectivas antagónicas da parte de entidades oficiais, académicos, militares ou think tanks. Alexandre Carriço identifica a “existência de dois grandes campos argumentativos, e que são denominados por David Lampton como ‘internacionalistas cooperativos’ e ‘novos nacionalistas’”.

Os primeiros esboços da criação da estratégia de ascensão/desenvolvimento pacífico, explica Carriço, “ter-se-ão iniciado aquando do terceiro Plenário do 11.º Comité Central do PCC em Dezembro de 1978 com a aprovação de conceitos como os de ‘reforma interna’, ‘abertura ao exterior’ e desenvolvimento da economia como tarefa central; reforçados pela visão estratégica de Deng Xiaoping, formulada em 1982, de que a tendência mundial era e seria cada vez mais a ‘paz e o desenvolvimento’”. Esta era a altura em que a China dissimulava o seu poder, negando-o.

Em 1989, Deng propôs a implementação de uma política externa de paz e desenvolvimento que levou, no campo interno, a partir de 1992, ao desenvolvimento de um “leninismo de mercado” na expressão de Richard McGregor, ou capitalismo com características chinesas. Posteriormente, Yan Xuetong publicou em 1998 um corpo teórico enformador da grande estratégia de desenvolvimento pacífico, sob a denominação

31 Alexandre Carriço explica que “a grande estratégia de um estado pode ser definida como a ‘visão geral dos seus objectivos de segurança e a determinação dos meios mais adequados para os atingir, o que depende da avaliação da distribuição de poder, da localização geográfica e das capacidades militares próprias e dos outros’”. Explicita ainda uma metodologia de aferição da grande estratégia em três passos: “determinar os interesses vitais relativos à segurança de um Estado; identificar as ameaças a esses interesses; e decidir sobre qual a melhor forma de aplicar os recursos políticos, militares e económicos para proteger esses interesses” (2015: 112).

34 de “ascensão da China”, conceito recuperado mais tarde por Zheng Bijian como “ascensão pacífica” da China (Carriço, 2015: 115). Essa teoria foi depois debatida entre 2002 e 2004 e culminou na publicação por Zheng de um artigo na Foreign Affairs32.

No fundo, o texto acabou por ser uma das primeiras formas de resposta da China à questão de “como uma grande potência moderna podia erguer-se sem recurso ao conflito militar com os protagonistas dominantes no sistema internacional”33 (Kissinger, 2012:

532). Mais ou menos na mesma altura, a 15 de Setembro de 2005, o presidente chinês Hu Jintao discursou na Assembleia Geral da ONU (“Construir a Caminho de Um Mundo Harmonioso de Paz Duradoura e Prosperidade Comum”), onde defendeu o multilateralismo para “tornar real a segurança comum” no mundo, sendo a paz uma premissa fundamental para o desenvolvimento da humanidade.

Kissinger interpreta as teorias da “ascensão pacífica” (e do “mundo harmonioso”) como evocativas dos “princípios da era clássica que garantiram a grandeza da China: gradualista; harmonizando-se com as tendências e evitando o conflito aberto” sendo que, porém, a própria expressão de “ascensão pacífica” acabou por ser alterada para “desenvolvimento pacífico”, “supostamente com base em que a noção de uma ‘ascensão’ era demasiado ameaçadora e triunfalista” (2012: 534).

Na perspectiva de Yan Xuetong, o perfil discreto da China nas relações internacionais foi mantido desde 1990-1991, com Deng Xiaoping, até Xi Jinping apresentar formalmente em 24 de Outubro de 2013, na conferência do PCC sobre Negócios Estrangeiros, a estratégia de “esforço pelo sucesso” (2014: 154). Na mesma linha, Alexandre Carriço acredita que a China pretende recuperar o seu estatuto de potência preponderante na Ásia, “com uma configuração actualizada e mais informal do ‘sistema tributário’ (uma versão 2.0), potenciando a criação de uma ‘esfera de deferência regional’ (…) sendo tal configuração o ‘trampolim para uma subsequente preponderância global’ (…)” (2015: 130).

Mas esse caminho não é fácil, até porque se o fim da Guerra Fria não trouxe “a paz kantiana” à Ásia, como nota Carlos Gaspar, nas últimas duas décadas, com excepção

32“A China não seguirá o caminho da Alemanha que levou à I Guerra Mundial, nem os da Alemanha e do Japão que levaram à II Guerra Mundial, quando esses dois países saquearam violentamente recursos e procuraram a hegemonia. A China também não seguirá o caminho das grandes potências que competiam pela domínio global durante a Guerra Fria. Em vez disso, a China transcenderá as diferenças ideológicas para lutar pela paz, desenvolvimento e cooperação com todos os países do mundo” (Zheng, 2005). 33 Kissinger cita David Shambaugh para sublinhar este momento único da história: “Poucas, se é que alguma, das outras grandes ou aspirantes a grandes potências se empenham num discurso autorreflectivo como este”.

35 de conflitos entre a Índia e o Paquistão, não voltou a haver guerras entre as principais potências da região. Porém, “persistem numerosos tipos de conflitos que não só implicam um certo nível de instabilidade regional, como podem vir a representar riscos sérios de escalada nas relações entre as principais potências regionais”, tais como “conflitos étnicos e religiosos, problemas de acesso a recursos naturais, disputas territoriais, movimentos separatistas, redes terroristas e proliferação de armamentos, num quadro de competição estratégica entre as principais potências regionais” (2013: 16).

No Livro Branco sobre a Defesa Nacional da China em 2010, as autoridades chinesas asseguravam que a RPC estava num “novo ponto histórico” e que “face a oportunidades partilhadas e desafios comuns, o país mantinha o seu compromisso com os novos conceitos de segurança de confiança mútua, benefício, equidade e coordenação mútuos”. A tónica era, pois, colocada no “desenvolvimento pacífico, na concretização de uma política externa independente, de paz, e uma política nacional de defesa defensiva na sua natureza” e atestava-se a irreversibilidade de um caminho que leva à globalização económica e a um mundo multipolar (Gabinete de Informação do Conselho de Estado da RPC, 2011).

No final dos mandatos de Jiang Zemin e de Hu Jintao, Jean-Pierre Cabestan nota que, não tendo existido diferenças substanciais quanto aos processos de tomada de decisão ao nível da política externa e de segurança, o papel dos militares na liderança do país diminuiu e que, inversamente, o papel de diplomatas, especialistas em política externa e segurança aumentou, assim como foi acentuado o foco nas relações económicas internacionais, energia, propaganda e educação. Ao mesmo tempo, as províncias e as cidades maiores deixaram de depender exclusivamente do Estado central para desenvolverem ligações com o exterior, sendo que globalmente os processos de tomada de decisão ao nível da política externa e de segurança se foram tornando menos secretos (Cabestan, 2009: 64), ainda que, no geral, se tenham mantido opacos.

Com Hu, a política externa e de segurança continuou a ser formalmente decidida por um centro de poder colectivo, nomeadamente o Comité Permanente do Politburo do PCC e o Politburo, que tem em consideração um conjunto de recomendações emitidas por entidades como o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), o Ministério do Comércio ou o Departamento de Ligação Internacional do Comité Central do PCC,

36 embora na prática a figura do Secretário-Geral – Presidente – Comandante-Chefe34, ao

convidar membros da CMC e outros especialistas para participar em reuniões do Comité Permanente do Politburo do PCC e do Politburo, consiga deter espaço de manobra suficiente para orientar o debate interno e preparar de forma cuidadosa as decisões a serem tomadas ao nível da política externa e de segurança conseguindo impor desta forma as suas escolhas (Cabestan, 2009: 66-67).