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A Assembléia Nacional Constituinte começa o trabalho

Fonte: Ilustração extraída do livro A Sociedade no Parlamento (2008)

A Assembléia Nacional Constituinte de 1987/88 representou um momento decisivo na história constitucional brasileira. Contra uma longa tradição de “conciliação e compromisso”, orquestrada pelas elites políticas “em nome do povo”, o processo constituinte ofereceu respostas ao mesmo tempo inesperadas e criativas. O final da década de 80 no Brasil testemunha a ruptura com um determinado modo de se conceber a experiência constitucional e seu significado.122

Esse novo momento constituinte123, marcado pela participação e pela pressão popular, exprimiu uma recusa à Constituição de “Notáveis”, ao texto “técnico” a serviço

122 Antonio Carlos Wolkmer (2002, p. 116-143) assinala que: “o Constitucionalismo brasileiro nunca deixou de ser o contínuo produto da “conciliação-compromisso” entre o patrimonialismo autoritário modernizante e o liberalismo burguês conservador. [...] Não resta dúvida de que o nascedouro da produção jurídica no Brasil está profundamente amarrado a um passado econômico colonial e à implantação de um sistema sócio-político discriminador, marcado por uma historicidade “conciliadora” e por um nível de desenvolvimento nem sempre compatível com as necessidades e exigências do país”. Contudo, basta recuperar — como tento fazer aqui — parte do processo de mobilização e participação social que caracterizou a constituinte de 1987/1988 para que consigamos ver a Constituição de 1988 como uma ruptura dessa tradição secular. Por isso, seria mais correto dizer que o Constitucionalismo brasileiro nunca deixou de ser o contínuo produto da “conciliação-compromisso” até que o país pudesse

realizar, no fim da década de 1980, uma nova experiência constitucional, um novo momento constituinte. 123 “Isto é, momentos nos quais a sociedade é forçada pelas circunstâncias a decidir acerca de sua trajetória política, de seu destino e dos compromissos públicos que estabelecera até então”, conforme explica Damião Alves de Azevedo (2008, p. 34).

de um programa já definido, enfim, uma recusa ao discurso competente, que fixa e enuncia antecipadamente o que é “bom para nós”. Um novo discurso deveria ser construído e, para isso, constituir as próprias condições de sua construção. “O pronunciamento do povo soberano não seria encarnado pelo uníssono da voz autoritária, mas por uma autêntica polifonia, cujo sentido somente pode ser apreendido seu próprio fazer-se”, como esclarece Leonardo Barbosa (2009).

Essa recusa é senso comum paradigmático (consenso) que está na base da Constituição de 1988: senso partilhado de que compromissos não podem garantir uma Constituição democrática, principalmente se forem firmados sem a possibilidade de participação dos interessados.124

E não há contradição alguma em afirmar que a Constituição está calcada num consenso democrático, contextualizado historicamente, para simultaneamente destacar o conturbado processo de produção do texto constitucional, indicando não haver unidade substantiva sobre a Constituição. A acirrada concorrência entre os constituintes representantes das mais variadas parcelas da sociedade para fazer prevalecer uma determinada redação de um determinado dispositivo constitucional pode ser vista como expressão daquela “polifonia” de que falou Leonardo Barbosa, dois parágrafos acima, e também como a expressão de um “consenso de fundo” sobre a capacidade (aceitabilidade) dos participantes enunciarem cada qual sua pretensão de validade dirigida à Constituição. Trata-se da existência de um consenso sobre os pressupostos da comunicação, e não sobre as regras do procedimento parlamentar de elaboração do texto.

Nesse sentido, as divergências que movimentaram a Assembléia Nacional Constituinte (ANC) não devem ser vistas como meras disputas ou questiúnculas em torno da redação da “ata do pacto social” — que é a definição de Constituição segundo

124 “Partimos do princípio de que numa democracia em que os homens e as mulheres são iguais e livres para exprimir os seus pontos de vista [...] O compromisso é, portanto, a solução mediante a qual cada ator de um eventual conflito renuncia àquilo que lhe é caro, mas não vital, a fim de obter o apoio dos outros, o qual lhe é verdadeiramente indispensável”. Trata-se da definição de “compromisso” formulada por Moscovici e Doise (1991, p. 10-24, grifo nosso) acolhida nesta tese. Já a definição de “consenso” desses dois autores não tem nada a ver com a idéia de consenso (HABERMAS, 1997, v. 2, p. 189-190) que defendemos: consenso como o “horizonte de uma pré-compreensão na qual todos tomam parte na interpretação da Constituição, cada um compartilhando esse labor a seu modo, cada alteração histórica percebida do contexto social teria que ser concebida como um desafio conclamando ao re-exame da própria compreensão paradigmática do Direito. Essa compreensão, certamente, como o próprio Estado de Direito, mantém um cerne dogmático: a idéia de autonomia segundo a qual os seres humanos só atuam como sujeitos livres na medida em que obedeçam apenas às leis que eles próprios se deram segundo suas intuições intersubjetivamente adquiridas”.

o liberalismo político de Frei Caneca.125 Até porque grande parte dos dissensos textuais indicava que estava em jogo tanto a compreensão do consenso quanto da própria Constituição. Afinal, o que significava redemocratizar e reconstitucionalizar o país? Na época, Artur da Távola percebia que a questão era muito mais complexa do que apontavam os enfrentamentos verbais que ocupavam os trabalhos constituintes. Ao se pronunciar sobre a polêmica instaurada pela proposta de supressão (Destaque n° 003798-87 126) do texto que atribuía competência a União para “exercer a classificação das diversões públicas” esclareceu que:

[...] Esta Assembléia já provou a extinção da censura em matéria de criação artística, científica ou cultural de qualquer natureza. Assim, ao longo dos capítulos subseqüentes, tanto na área de cultura como na de comunicação, e também — embora aqui não entre a censura — na área da educação, o texto do Constituinte de 1987 garante o mais amplo exercício das liberdades. Portanto, a meu ver, e muito sinceramente, não há o menor cabimento fazermos, neste momento, uma “guerrinha” subjacente ao texto [...] o que nos divide, no momento, é o conceito da palavra “classificação”.

A “guerrinha” por debaixo do texto a que o constituinte se referia marcou a elaboração da classificação indicativa e de outras matérias consideradas de grande interesse. Ou melhor, matérias pelas quais se interessavam diferentes grupos, representados por um ou mais constituintes. E apesar do barulho e da fumaça — que ensurdeceu, cegou e afastou grande parte da população — produzidos pelo uso intenso de um arsenal regimentalmente composto por questões de ordem, emendas, substitutivos e demais arcabuzes, os constituintes sabiam que a “guerrinha” travada era na verdade uma disputa para fazer com que o texto da Constituição contemplasse os interesses que cada parlamentar julgava representar.

Mas poucos constituintes pareciam perceber que, uma vez vencida a Ditadura, aquele processo democrático de elaboração da Constituição não poderia resultar em (interesses) derrotados. Porque a Política, entendida como sistema de produção e reconhecimento de expectativas sociais, não tinha como impedir o ingresso na nova ordem constitucional dos interesses representados e legitimados no processo constituinte. E se o que atestava a inclusão de determinado interesse era a sua

125 A definição de Frei Caneca é a seguinte: “Uma constituição não é outra cousa, que. Esta ata, por tanto, deve conter a matéria, sobre que se pactuou, apresentando as relações, em que ficam os que governam, e os governados, pois que sem governo não pode existir sociedade. Estas relações, a que se dão os nomes de direitos e deveres, devem ser tais, que defendam e sustentem a vida dos cidadãos, a sua liberdade, a sua propriedade, e dirijam todos os negócios sociais à conservação, bem-estar e vida cômoda dos sócios, segundo as circunstâncias de seu caráter, seus costumes, usos e qualidade do seu território etc”.

126 CÂMARA DOS DEPUTADOS – CEDI/CELEG/SEDOP – Diário da Assembléia Nacional Constituinte (Suplemento “C”) janeiro de 1988 – quarta-feira 27 p. 1509-1513. Destaque nº 003798-87, do Sr. Florestan Fernandes “que suprime o inciso XV do art. 20 do Substitutivo nº 2”.

“existência” como texto, dá para entender a razão de termos uma das mais longas e das mais imperfeitas (em sentido técnico-jurídico) Constituições do mundo. Cristovam Buarque, então reitor da Universidade de Brasília (UnB), explicava que:

A Constituinte tinha que ser o retrato das idéias que o Brasil tem de si. [...] Nossa Constituição de 1988 reflete perfeitamente o mundo imperfeito ao qual ela pertence. [...] Esta é a mais perfeita de nossas Constituições. Ela é inacabada como o nosso país, em processo de formação social desejando ser uma Nação (BUARQUE, 1988, p. 20).

Porém, ao contrário do que possa parecer, ter uma Constituição com aproximadamente 70.000 palavras, que correspondem a 250 artigos “permanentes” e 96, “transitórios”,127 encadeadas sem rigor técnico-jurídico não significa um grande problema para o Direito ou para a sua aplicação e efetividade. Mesmo se comparada com a Constituição dos EUA que possui pouco mais de 7.000 palavras (incluindo todas as 27 emendas produzidas ao longo de mais de 200 anos) ou com a da Argentina com suas 12.500 palavras. Porque, quando se trata de aplicar a Constituição todos os países mencionados têm, ainda com seus textos enxutos, a mesma dificuldade que a gente: se se trata de texto, então tem que interpretar, senão, não há como compreender seu sentido num contexto distinto daquele em que foi produzido. O grande problema em nosso caso era o seguinte: como o Direito pode acolher estas manifestações políticas — que são os interesses, os valores e as expectativas sociais — sem abrir mão de sua estabilidade e coerência interna? Isto é, sem que haja contradição entre as normas? Tendo em vista o processo constituinte o problema fica melhor descrito assim: como enunciar direitos e deveres sem instituir — ainda que sutilmente — interesses estritamente particulares privilegiando determinados valores em detrimento da pluralidade política? Ou de que modo “transformar” em texto constitucional uma expectativa contextualizada de determinado grupo social sem prejuízo dos demais direitos assegurados?

E se hoje nos parece grande, lá em 1987 parecia ainda maior: um problema imenso, não só em razão do enorme número de interesses existentes e divergentes, mas, da falta de experiência em ter que resolvê-lo democraticamente. Percebia-se apenas que a resposta não poderia ser produzida sem a participação das pessoas. Desta forma, mais do que uma palavra de ordem e uma exigência difusa dirigida às instituições republicanas, a idéia de participação foi se revelando o verdadeiro lastro paradigmático

127 Por incrível que pareça o texto constitucional promulgado pela ANC há vinte anos era menor: continha 245 artigos e outros 70 como disposições transitórias. Esse aumento do texto é o saldo produzido pelas 64 emendas à Constituição editadas até 4/02/2010. E se essa contabilidade toda não diz nada sobre o “conteúdo” das normas pelo menos serve como uma evidência contra aqueles que propõem novas reformas constitucionais sob o argumento de que é preciso “enxugar o texto”.

do Estado Democrático de Direito: sem participação não poderia haver Estado Democrático, sem democracia não haveria Estado de Direito. Tanto é que pela primeira vez uma Constituição brasileira registra expressamente em seu texto (parágrafo único do Art. 1º) que não só “Todo o poder emana do povo” como por este mesmo povo pode ser exercido diretamente. As constituições republicanas anteriores igualmente atribuíam ao povo a titularidade do Poder Soberano, mas afirmavam em seguida que “em seu nome [este poder] é exercido”.

O fato é que recuperando os argumentos utilizados pelos constituintes no confronto discursivo que resultou no texto constitucional da classificação indicativa podemos compreender tanto o problemão quanto a solução encontrada na vivência dos conflitos constituintes. Se relermos a manifestação de Artur da Távola, agora, veremos que ele tematiza a “guerrinha” e também indica a solução para ela dentro do próprio processo: é o que ele faz quando afirma que é preciso considerar outras passagens do texto para poder resolver as divergências de sentido em torno do conceito de classificação. Desta forma, muito provavelmente sem a intenção de oferecer uma solução geral para o problema da tensão entre contexto político e texto jurídico, o constituinte Artur da Távola acaba descrevendo uma espécie de método para escrever a muitas mãos e interpretar a muitas vozes a Constituição. Pode-se dizer que sua manifestação exprime uma certa visão de integridade128 sobre a Constituição, por meio da qual é possível observar a tendência de coalizão das normas constitucionais, ou seja, a tendência de recorrerem umas às outras para garantir a aplicação coerente do Direito.

Por isso que os capítulos que compõem esta Parte II podem nos ajudar a compreender a importância presente e futura da Constituição e, por extensão, do Direito no inextricável processo de integração social. Muito embora todo o texto que se segue tenha por finalidade precípua contar a história do processo de elaboração constitucional da classificação indicativa — considerando as duas décadas anteriores à Constituição em que a idéia de classificação ganhou sentido oposto ao de censura — e do processo (consecutivo) de realização dessa nova competência da União, especialmente por meio dos atos regulamentares produzidos no âmbito do Ministério da Justiça. Desta forma,

128 Em 1986 Ronald Dworkin publicava nos EUA um livro — lançado no Brasil sob o título O império

do direito (1999) — no qual defendia essa mesma visão de integridade mais ou menos nos seguintes

termos: as pessoas que têm a responsabilidade de usar o Direito para resolver casos socialmente relevantes devem considerar “tanto o texto como a prática passada como seu objetivo”, isto é, “devem buscar construir uma interpretação coerente, principiológica e persuasiva do texto de dispositivos específicos, da estrutura da Constituição como um todo, e da nossa história constitucional”.

pode-se dizer que esta segunda parte do trabalho contém a descrição de um processo passado de realização/interpretação construtiva da Constituição, calcada numa visão de integridade, com a pretensão de funcionar como uma lanterna na proa — como uma luzinha no fim do túnel — a indicar o avanço do constitucionalismo no Brasil.

Vale reiterar que, de um ponto de vista sociológico, as constituições modernas estabelecem limites entre Direito e Política fixando regras por meio das quais um sistema afeta o outro. A Política, cuja função precípua é a produção de decisões coletivamente vinculantes a partir da tematização de expectativas sociais partilhadas, fornece ao Direito uma organização institucional dotada de coercibilidade. O Direito, por sua vez, tem como função própria a estabilização de expectativas sociais, ao passo que oferece à Política justificação normativa e, com isso, permite que ela se apresente como poder legítimo e não como mero arbítrio (HABERMAS, 1997a, p. 170 e ss.).

Daqui pra frente são dois os desafios. O primeiro consiste em compreender como a Constituição realizou em 1988 essa conexão entre manifestações políticas (interesses, valores e expectativas) e normas jurídicas, considerando especialmente o processo constituinte iniciado formalmente com a instalação da ANC. O segundo desafio consiste em verificar como os processos de formulação e execução de políticas públicas podem conectar Política e Direito de forma a reforçar a interdependência entre legitimidade e legalidade sem, no entanto, reduzir o sistema jurídico a um meio disponível a qualquer fim. Faz-se necessário analisar a atuação do Poder Judiciário — especialmente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) — no controle da constitucionalidade e da legalidade das normas que pretendem regulamentar as políticas públicas porque, não sendo a Constituição um organismo vivo com cabeça e boca próprias, o trabalho de realizar (ou não) essa conexão cabe em última instância aos magistrados, o que justifica o estudo de alguns casos literalmente paradigmáticos da jurisprudência.

Se superarmos esses desafios não será preciso explicar por que repeti 13 vezes a palavra “processo” nestas primeiras 150 linhas do Capítulo 2. Não terá sido à toa e muito menos em vão. Pois estou seguro que a observação atenta dos trabalhos realizados pela ANC (Poder Legislativo), pelo Ministério da Justiça (Poder Executivo) e pelo STF e STJ (Poder Judiciário) será capaz de revelar, por si só, que a conexão entre Direito e Política apenas pode ser democrática se estabelecida por procedimentos juridicamente válidos por meio dos quais se processam os interesses que, legitimados, concorrem para a formação institucional da opinião pública.

Tento provar que não é apenas burrice como é constitucionalmente inadequado continuar pensando o Direito ou, pior, continuar tentando aplicá-lo como uma dicotomia insuperável entre legalidade e legitimidade, entre norma e realidade. Reafirmo: trata-se de uma tensão. Traduzida aqui como uma tensão entre texto e contexto que constituiu e que permanentemente constitui o Direito enquanto sistema. Isto é o mesmo que dizer que a participação e o pluralismo político procedimentalmente desenvolvidos garantem o “valor democrático” do Estado que surge com a Constituição de 1988. Este é o plano sobre o qual tento sustentar esta tese, tal como na geometria, o plano de existência e validade do paradigma do Estado Democrático de Direito composto por três pontos não colineares e não coincidentes, porém, interdependentes: 1) o reconhecimento histórico das tensões e dos conflitos sociais como condição constituinte da “natureza” processual do Direito contemporâneo; 2) o reconhecimento público das diferentes pretensões de validade (neoliberais, socialistas, dentre outras) das normas jurídicas; 3) e, o reconhecimento dos direitos humanos como garantia de que todos os possíveis atingidos pelas decisões soberanas podem participar dos processos políticos e normativos dando seu assentimento (ou não) nos limites da Constituição.