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CAPÍTULO 4: ANÁLISE DISCURSIVA

4.1 A Assistência Farmacêutica no SUS

Nesta parte da tese, queremos trazer questões específicas sobre a Assistência Farmacêutica no Sistema Único de Saúde que constituem a Resolução 338/2004 (8). Ao fundamentar nosso gesto de análise, consideramos relevante explicitar conceitos que comparecem na Resolução, tais como: Assistência Farmacêutica, Atenção Farmacêutica, Medicamentos, Uso Racional de Medicamentos, Medicamentos Essenciais e Relação Nacional de Medicamentos Essenciais. Neste ponto de nosso trabalho fazemos uma transição: partimos das condições de produção da PNAF (que abordamos no capítulo anterior) e voltamos nosso olhar para o modo como a Assistência Farmacêutica é textualizada enquanto uma política do SUS, iniciando já nosso gesto de análise, sustentado na materialidade da Resolução (8).

De acordo com a Resolução, a Assistência Farmacêutica deve ser compreendida como “política pública norteadora para a formulação de políticas setoriais, entre as quais destacam-se as políticas de medicamentos” (8).

Segundo Alencar (101) (p. 20), no final da década de 1980 – e como resultante das discussões produzidas pela categoria farmacêutica em articulação aos debates do movimento sanitário – houve um movimento para que a questão do medicamento fosse entendida como um componente mais amplo, definido como assistência farmacêutica. Segundo a autora (idem), essa passou a ser, então, uma questão mais abrangente que agregou – além dos aspectos relativos à produção, distribuição, qualidade e disponibilidade – elementos relativos ao uso racional e às atividades farmacêuticas. Alencar (101) (p. 20) ressalta que a expressão assistência farmacêutica aparece na Lei Orgânica nº 8.080 (80). A referida autora observa que ao longo do tempo essas expressões passaram a ser referidas ora como sinônimas, ainda que se restringissem a ações voltadas exclusivamente ao componente medicamento, ora no sentido mais amplo, conforme defendido naquele momento. Ela compreende que essa distinção não é meramente técnica, mas também política. Por esse motivo, a autora optou por utilizar em sua tese a expressão “questão medicamentos/assistência farmacêutica” (questão MAF) e não apenas uma ou outra.

O item IV do 1º artigo da Resolução 338/2004 (8) estabelece uma relação entre a Assistência Farmacêutica e a Atenção Farmacêutica: “as ações de

Assistência Farmacêutica envolvem aquelas referentes à Atenção Farmacêutica,

considerada como um modelo de prática farmacêutica, desenvolvida no contexto da

Assistência Farmacêutica e compreendendo atitudes, valores éticos, comportamentos, habilidades, compromissos e corresponsabilidades na prevenção de doenças, promoção e recuperação da saúde, de forma integrada à equipe de saúde” (8).

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (103), a mudança de foco dos serviços farmacêuticos nos últimos anos oportunizou o surgimento – na década de 1990 – do conceito de atenção farmacêutica, que prioriza as necessidades do paciente no desenvolvimento de práticas profissionais. Jaramillo e Cordeiro (104) (p. 32) afirmam que o alcance da atenção farmacêutica tem sido objeto de muita controvérsia nos países da região das américas, havendo aqueles que consideram que ela só é exercida quando o farmacêutico atende a um paciente de forma individual para resolver problemas relacionados com medicamentos, e aqueles que, conforme recomendação da OMS, preferem estender o caráter de beneficiário das ações do farmacêutico ao conjunto de usuários do sistema de saúde.

Ev e Gonçalves (105) (p. 125) recordam que na década de 1980, muitos farmacêuticos sentiam que as mudanças desencadeadas pelo movimento da farmácia clínica – no sentido de buscar novas formas de aplicar o conhecimento em benefício da sociedade e minimizar os problemas acarretados pelo uso incorreto de medicamentos – não tinha sido suficiente. Compreenderam então que seria necessário promover um padrão de prática que incluísse a determinação das necessidades medicamentosas de determinado indivíduo e a provisão não somente do medicamento, mas também de serviços necessários para assegurar um tratamento efetivo, tendo em vista a qualidade de vida do paciente sob a responsabilidade do farmacêutico atuando junto com equipe multidisciplinar. A esse campo de prática denominou-se Atenção Farmacêutica (AtenFar) (Hepler & Strand (106), definida em dois momentos de forma complementar. Em 1990, Helper e Strand a definiram como “a provisão responsável de terapia medicamentosa com o propósito de obter resultados definidos que melhorem a qualidade de vida dos pacientes” apud OPAS & OMS (8) (p. 13); em 2004, Cipolle, Strand e Morley a definiram como “uma prática

centrada no paciente, na qual o profissional assume a responsabilidade pelas necessidades do paciente relacionadas com os medicamentos e responde por este compromisso” (107) (p. 116).

No Brasil, em 2002 foi publicada uma proposta de consenso, posteriormente adotada na Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), em que a AtenFar é definida como:

um modelo de prática farmacêutica, desenvolvida no contexto da Assistência Farmacêutica e compreendendo atitudes, valores éticos, comportamentos, habilidades, compromissos e corresponsabilidades na prevenção de doenças, promoção e recuperação da saúde, de forma integrada à equipe de saúde. É a interação direta do farmacêutico com o usuário, visando uma farmacoterapia racional e a obtenção de resultados definidos e mensuráveis, voltados para a melhoria da qualidade de vida. Esta interação também deve envolver as concepções dos seus sujeitos, respeitadas as suas especificidades biopsico-sociais, sob a ótica da integralidade das ações de saúde (108) (p. 16-17) (8).

Ev e Gonçalves (105) (p. 126) relatam que as estratégias apresentadas na proposta do Consenso Brasileiro de Atenção Farmacêutica, na 1ª Conferência Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica (CNMAF) – realizada em Brasília, no ano de 2003 – foram apresentadas e aprovadas mais de vinte propostas relativas à prática da AtenFar, entre as quais a de “inserção e regulamentação da Atenção Farmacêutica no SUS”. Com essa aprovação, a definição de atenção farmacêutica apresentada no consenso passou a fazer parte da Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), publicada em 2004.

A PNAF traz uma determinada definição do escopo da Assistência Farmacêutica, para a qual o medicamento é insumo essencial: “a Assistência

Farmacêutica trata de um conjunto de ações voltadas à promoção, proteção e recuperação da saúde, tanto individual como coletivo, tendo o medicamento como insumo essencial e visando ao acesso e ao seu uso racional” (8).

Em nosso gesto de análise compreendemos que a Resolução 338/2004 (8) filia-se a uma rede de sentidos – construída historicamente – em que o medicamento é significado como insumo essencial. Osório-de-Castro et al. (109) (p. 51) estão entre os muitos autores que compreendem que “medicamentos são bens essenciais porque salvam vidas e promovem a melhoria das condições de saúde das pessoas

enfermidades”. Nessa perspectiva, os referidos autores defendem que “o acesso a

medicamentos é um elemento chave para a realização plena do direito à saúde e à

vida” (109). Note-se que o direito à saúde e à vida consta na Declaração Universal

dos Direitos Humanos, elaborada na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) de 1948 (110). De nosso lugar teórico, entendemos que, historicamente, os direitos à vida e à saúde – defendidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos – foram se estabilizando como equivalentes ao acesso a medicamentos, resultando no efeito de evidência que comparece também na Resolução 338/2004 (8).

Osório-de-Castro et al. (109) (p. 52) ressaltam que, diferentemente de outras tecnologias em saúde, é bastante comum que o medicamento seja demandado fora do processo de cuidado em saúde, sendo muito frequente a busca por decisão própria – ao contrário do que ocorre com exames laboratoriais ou de imagem, por exemplo. Assim, os referidos autores afirmam – e concordamos com eles – não ser qualquer tipo de acesso aos medicamentos que deva ser promovido pelas políticas públicas, considerando que uma avaliação distorcida da necessidade pode levar o usuário a buscar um medicamento, que não só não resolverá o seu problema de saúde, como o espoliará de seus recursos ou agravará a sua condição clínica. Segundo os autores, há um hábito da população em geral: buscar a solução para sintomas, e não a abordagem de causas.

No que se refere às afirmações feitas por Osório-de-Castro et al. (109), gostaríamos de salientar que, discursivamente, não compreendemos essa questão em termos de “hábito da população” porque entendemos que esse gesto da população “buscar a solução para sintomas e não a abordagem de causas” faz parte de um processo complexo em que é preciso levar em consideração que a própria prática clínica – já afetada pelo processo de medicamentalização – trabalha preponderantemente numa dinâmica em que se busca solução para sintomas ao invés da abordagem de causas dos adoecimentos.

A “promoção do uso racional de medicamentos, por intermédio de ações que disciplinem a prescrição, a dispensação e o consumo” (8) também é um dos eixos estratégicos da Política Nacional de Assistência Farmacêutica.

O Uso Racional de Medicamentos (URM) é assim definido na Política Nacional de Medicamentos (PNM):

o processo que compreende a prescrição apropriada; a disponibilidade oportuna e a preços acessíveis; a dispensação em condições adequadas; e o consumo nas doses indicadas, nos intervalos definidos e no período indicado, de medicamentos eficazes, seguros e de qualidade (111).

Osório-de-Castro et al. (109) (p. 60) baseiam-se nesse conceito para afirmar que estão envolvidos no URM: o Ministério da Saúde, a Anvisa (como autoridade reguladora) e a própria indústria farmacêutica, responsáveis pela disponibilidade de medicamentos eficazes, seguros e de qualidade. De acordo com os autores, os gestores da área da saúde devem propiciar o acesso adequado a esses medicamentos onde sejam necessários; compete aos prescritores diagnosticar e prescrever corretamente; aos farmacêuticos, dispensar os medicamentos, orientar quanto ao seu uso e acompanhar os resultados dos tratamentos; a participação e responsabilidade dos profissionais de enfermagem e cuidadores em geral - além dos próprios usuários – são fundamentais para que os benefícios terapêuticos possam ser atingidos com menores riscos e menores custos.

Os referidos autores (109) recordam que o uso da expressão URM se inicia pela adoção do conceito de Medicamentos Essenciais (ME), estabelecido nos anos 1970, quando o mundo ocidental vivia o resultado do boom da indústria farmacêutica ocorrido desde a década anterior, com o número de novas moléculas, falsas inovações (moléculas semelhantes, me too) e especialidades variadas crescendo vertiginosamente, causando confusão e insegurança no contexto da saúde, elevando gastos e aprofundando desigualdades no acesso a medicamentos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde

Medicamentos essenciais são aqueles que satisfazem às necessidades

prioritárias de saúde da população. São selecionados levando-se em consideração as doenças prevalentes, a segurança e eficácia e a relação custo/efetividade comparativa, devem estar sempre disponíveis nos serviços de saúde, a todo momento, em quantidades adequadas e formas farmacêuticas apropriadas, com qualidade assegurada e a um preço que o indivíduo e a comunidade possam pagar (108).

Vale ressaltar que há uma deriva entre “ser essencial” significar ser parte de um conjunto de medicamentos que devem ser assegurados para aquilo que se sustenta em um processo de equivalência entre remédio e saúde, em que “ser essencial” significa todo e qualquer medicamento enquanto essencial à vida, à saúde. O que permite, inclusive, para muitos ser inconcebível sair de uma consulta sem um remédio prescrito.

Segundo Osório-de-Castro et al. (109) (p. 60) o desenvolvimento de critérios para a seleção de medicamentos – e a elaboração de uma lista modelo pela OMS, publicada pela primeira vez em 1975 – foi concebido como parte de uma política focalizada nos países em desenvolvimento, nos quais as dificuldades na promoção do acesso a medicamentos eram maiores. Os autores ressaltam que, desde o início, essa política sofreu o boicote da indústria farmacêutica e de grande parte dos prescritores, que argumentavam que a referida política prejudicava o acesso dos pacientes a inovações e a melhores alternativas terapêuticas.

A implementação de listas de ME é uma estratégia estruturante para a promoção de URM, conforme Osório-de-Castro et al. (109). Os referidos autores afirmam que o ideal é que a lista oriente o registro, a produção e a comercialização de medicamentos no país, e sobretudo que determine a prescrição de medicamentos, particularmente no sistema público de saúde. A “utilização da Relação Nacional de

Medicamentos Essenciais (RENAME), atualizada periodicamente, como instrumento racionalizador das ações no âmbito da assistência farmacêutica” (8) é um dos eixos estratégicos da Resolução 338/2004 (8).

À época, Bonfim (112) (p. 7) analisou a situação do registro de fármacos novos e pontuou mudanças que permitiriam a aprovação de produtos com melhor segurança e eficácia, contribuindo assim para o uso racional de fármacos em geral. O autor realizou uma pesquisa de documentos do Ministério da Saúde – em especial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – e a bibliografia no campo da regulação relativa ao registro de produtos farmacêuticos. Ele identificou produtos farmacêuticos novos em geral registrados no país dentre os anos de 1999 a 2004, sob três categorias: produtos novos (e adicionais ao grupo terapêutico), indicações terapêuticas novas, combinações (associações) novas. O referido pesquisador concluiu que o atual sistema de registro acolheu expressivo número de indicações terapêuticas novas e de combinações, além de produtos adicionais a um grupo terapêutico, atendendo assim, aos interesses de mercado e sem que existisse necessariamente correspondência com as necessidades do Sistema Único de Saúde. Por isso, em sua perspectiva (112) é indispensável melhorar a articulação com atividades da regulação farmacêutica.

Bonfim participou da produção de um artigo mais recente, no qual Yamauti et al. (113) (p. 976) recordam que a cada dois anos a Organização Mundial da Saúde

revisa o elenco de medicamentos contido na Lista Modelo de Medicamentos Essenciais. Os autores ressaltam que, em 2012, o Ministério da Saúde (MS) do Brasil adotou um conceito de medicamento essencial diferente do proposto pela OMS e divulgou que “medicamentos essenciais são aqueles definidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para garantir o acesso do usuário ao tratamento medicamentoso” (114).

Ainda segundo Yamauti et al. (113) (p. 980) a RENAME 2013 deixou de ter características de uma lista de medicamentos essenciais e passou a ter aquelas de uma lista positiva, pois a seleção de fármacos que compunham a RENAME até 2011 – que utilizava a lógica da OMS, instituída em 1977 – foi modificada para uma seleção disposta em vários componentes de blocos de financiamento da assistência farmacêutica no SUS (115). De acordo com Yamauti et al. (113), a nova concepção de medicamento essencial, adotada pelo governo brasileiro, descaracteriza o conceito do que é essencial – uma vez que relega a segundo plano a seleção de medicamentos essenciais com base na melhor evidência disponível – e afeta também a proposta de tratamentos farmacológicos disciplinados por formulários terapêuticos nacionais, assim como protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas. Por isso os referidos autores concluem – em consonância com Santos-Pinto et al. (116) – que a ideia do uso racional de medicamentos tornou-se secundária em razão da incorporação de produtos influenciada por demanda, em que o governo passou a financiar produtos para além da essencialidade.

Depois de termos explanado questões relevantes ao funcionamento da Assistência Farmacêutica no SUS que permitem a formulação da PNAF, concluímos este capítulo no qual discorremos sobre as condições que permitiram a emergência da Política Nacional de Assistência Farmacêutica.

O movimento de intertextualidade20 relaciona a Resolução 338/2004 (8) com os textos que a sustentam, trazendo para o nosso arquivo os seguintes documentos (que ora apresentamos em ordem cronológica – e não na ordem em que

20 Segundo Indursky (117) (p. 78): “As relações intertextuais relacionam um texto com outros textos. Estamos aqui face ao que já estamos habituados a nomear de intertextualidade. Entendo por intertextualidade a retomada/releitura que um texto produz sobre outro texto, dele apropriando-se para transformá-lo ou assimilá- lo. Dito de outra forma, o processo de intertextualidade lança o texto a uma origem possível. Deslocando esta noção, que nasce na literatura, para a Análise de Discurso, a intertextualidade aponta não somente para o efeito de origem de um texto, mas também para outros textos que ainda estão por surgir e que se inscrevem na mesma matriz de sentido”.

aparecem na referida Resolução – a fim de favorecer ao leitor a compreensão da análise que empreendemos): 1) as Leis Orgânicas da Saúde (8.080 e 8.142, ambas aprovadas no ano de 1990); 2) as deliberações da 1ª Conferência Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica (que aconteceu em setembro de 2003); 3) as deliberações da 12ª Conferência Nacional da Saúde (que aconteceu em dezembro de 2003) e 4) a Ata da 142ª Reunião do Conselho Nacional de Saúde (que ocorreu em maio de 2004, quando a referida Resolução foi discutida e aprovada), que são textos que autorizam o funcionamento do Conselho Nacional de Saúde, inclusive para deliberar sobre a aprovação da Resolução 338/2004 (8).