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A associação entre as teorias de Goffman sobre a mudança de footing, o

No documento alessandrasixeldaibert (páginas 45-49)

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: A SOCIOLINGUÍSTICA INTERACIONAL

1.3. Uma perspectiva acerca da formação do self: A co-relação entre as

1.3.1. A associação entre as teorias de Goffman sobre a mudança de footing, o

Pereira (2002) afirma que Goffman associa a formação do self ao nosso modo de atuação em situações sociais variadas, aos comportamentos esperados e assumidos dentro de um determinado contexto. O nosso sentimento de quem somos ou de pertença social é firmado por meio de nossas interações. Desse modo, o autor correlaciona a construção do self do indivíduo e a formação de uma identidade social da seguinte forma:

O self é considerado por Goffman como nosso sentimento de quem somos, em personalidade e socialmente no nível da microanálise, isto é, em encontros, interações e atividades em que rotineiramente nos engajamos. O que nós somos (ou acreditamos ser) advém não apenas de processos sociais (por exemplo a família, a escola, o trabalho), mas de processos sociais embutidos nas situações, ocasiões, encontros e rituais do dia- a- dia. Tais processos de micronível ajudam-nos a organizar e dar sentido aos nossos comportamentos do dia-a-dia e ajudam a nos promover o sentimento de self. (PEREIRA, 2002, p.16)

Ao nos apropriarmos dessas assertivas e situarmos nosso foco em nosso objeto de estudo, o discurso narrativo, constatamos que, embora as teorias apresentadas até aqui estejam, de um modo ou de outro, correlacionadas e que seus estudiosos comunguem de algumas concepções, a abordagem sobre a qual nos apoiamos é a perspectiva proposta por Goffman, já que ela lida mais diretamente com as questões de projeção do self, que é a temática proposta por este trabalho.

Entendemos, ainda, que um meio de atribuir flexibilidade ao processo de construção de nossas identidades se dá por meio da mudança de footing em nosso discurso, pois, se ela é percebida a partir de uma alteração em nossa elocução, ao retomarmos nossos estudos acerca do constituinte avaliativo das narrativas, de acordo com o que foi visto, essa mudança na elocução ocorre durante o momento da avaliação, visto que, para tecer comentários externos aos fatos narrados, o falante precisa interromper a sequência dos mesmos.

Ao fazê-lo, tal mudança na elocução torna-se mais evidente quando o falante se desloca da posição de narrador, passando a expressar opiniões pessoais acerca do assunto, de suas próprias atitudes ou ainda da atitude de terceiros, o que também pode ser compreendido como uma mudança de footing do narrador.

Para ilustrar, segue o trecho extraído de uma narrativa do romance Irmãos Pretos: “O Georgio apanhou muito, a multidão gritava, as pessoas o acusavam de ladrão, João veio e o encontrou derrubado, todo machucado, deitado em cima de um saco de trapo, ele sentia

muitas dores, mas aposto que as injustiças e as falsas acusações o machucaram muito mais.” (Binder, Tetzner, 2006,p.96)

No exemplo acima, há uma mudança de footing, marcada tanto sintaticamente, pelo uso do verbo “aposto” conjugado no presente e que ocorre imediatamente após uma sequência de verbos empregados no passado, quanto prosodicamente, já que, embora não nos disponhamos de recursos fonológicos para afirmar, não é difícil perceber que muito provavelmente tenha havido uma mudança na entonação da elocução do narrador ao introduzir sua opinião por meio do constituinte avaliativo.

Diante do conhecimento de que as identidades são interacionalmente construídas por meio de uma negociação entre os participantes do evento interativo, no exemplo apresentado acima, os ouvintes poderiam tanto sustentar a opinião do narrador, que se mostra complacente e solidário com o personagem, quanto poderiam discordar acusando-o de alguma forma e julgando-o merecedor do ocorrido.

A partir daí notamos a conexão existente entre a questão da construção da identidade ou manifestação do self do narrador e dos ouvintes, o constituinte avaliativo da narrativa e as mudanças de footing. Esses mecanismos operam de forma integrada na interação face a face, formando um continuum, uma espécie de ciclo em que ocorrem primeiramente as mudanças de footing do narrador para sinalizar uma quebra na narrativa pela introdução das avaliações. Estas, por sua vez, conduzem os ouvintes ao entendimento da pessoa do narrador, que deixa de ser um mero contador de histórias, apropriando-se do próprio discurso para revelar seus pontos de vista e apresentar o self intencionado dentro de uma determinada situação social, podendo, ainda, retomar a narrativa e recomeçar todo o processo quantas vezes se fizer necessário.

Deste modo, em um processo cíclico, teríamos:

→•1↓--- •2↓---•3↓---4•↓---5•↓- ---6↓•→ Desenrolar da sequência narrativa













Mudança de footing

















Introdução de avaliações

















Revelação do self do narrador

















Mudança de footing













Retorno à sequência narrativa

















Ao executar esse procedimento de forma cíclica e contínua, o narrador torna-se capaz de moldar sua imagem e revelar seu self, apresentando sua identidade ao grupo. Do mesmo modo, pelo mesmo procedimento, poderá também reconfigurá-la e alinhar-se ao enquadre situacional por meio da mudança de footing quantas vezes julgar conveniente, a fim de se adequar a situação social na qual se encontra.

Tal reconfiguração mostra-se necessária devido à dinamicidade das interações face a face, em que ocorrem constantes mudanças de footing e o surgimento de enquadres variados, ocasionando, também, constantes mudanças de posicionamentos dos integrantes dessas interações.

Compreendemos então que os processos dinâmicos, a partir dos quais ocorrem as mudanças de footing, convergem com a questão da pluralidade das identidades, sendo que todos esses aspectos da interação face a face estão confinados ao evento interacional, à situação social e à capacidade de adequar-se a eles por meio de ações verbais e não verbais.

As mudanças de footing dos indivíduos inseridos em uma determinada interação representam o gerenciamento de suas identidades múltiplas diante dos variados papéis que desempenham em seu convívio social. Deste modo, mais uma vez, se reafirma uma nova concepção de identidade, que não é única, fixa e rígida, mas que, pelo contrário, se molda a cada uma das situações que a nós se apresenta por meio das estratégias linguísticas (e inclusive extralinguísticas) citadas acima.

Cada reconfiguração de nosso self representa uma nova projeção da identidade que pretendemos construir dentro de um determinado espaço de interação. Tal identidade é negociada na intersubjetividade de nossas relações interpessoais e estão confinadas aos significados que atribuímos a um dado evento interativo assim como à compreensão dos papéis que desempenhamos dentro desse evento.

Todos esses significados e representações são partilhados socialmente porque estão, de algum modo, convencionalizados, sendo eles mesmos direcionadores de nossos comportamentos, constituindo, também, parte dos conhecimentos prévios que possuímos enquanto seres sociais. Dentro dessa perspectiva, temos a linguagem, enquanto meio de ação social, pois, de acordo com o que vimos até o presente momento, é ela, a linguagem, que nos projeta dentro de um determinado ambiente interacional que nos situa enquanto indivíduos integrantes e atuantes dentro deste ambiente.

As atividades discursivas em que estamos situados são tomadas, como na visão de Goffman, como enquadres nos quais nossos papéis sociais são validados e nossas identidades são expostas ou reveladas ou mesmo criadas para estarem em consonância com tal enquadre.

A transformação de nossas experiências em histórias e o modo como as verbalizamos representam uma maneira de nos apresentarmos aos nossos interlocutores, de nos reinventarmos e ajustar aspectos de nossa personalidade. Estamos continuamente nos situando e nos reposicionando, nos definindo e nos redefinindo por meio de palavras. Schiffrin assevera ainda que contar uma história é um processo que permeia nossos modos de falar, agir e de estarmos no mundo.

Assim como a história é dinâmica, visto que é transformada e construída pelo tempo bem como por aspectos socio-culturais, assim também somos nós, integrantes desse processo; ainda que involuntariamente. A cada dia, e de diferentes maneiras, somos convocados a fazer parte de tal processo. Portanto, para nos inserimos na história enquanto agentes participativos de nosso tempo, é necessário reivindicar nosso lugar a fim de estarmos interagindo em um mundo que se mostra em constante evolução, heterogêneo e plural e, para que assim se faça, a linguagem é o meio mais eficiente.

Deste modo, consideramos o estudo da narrativa no mínimo intrigante por sua abrangência e sua relação com as diversas áreas do conhecimento, fornecendo subsídios tanto para uma pesquisa a nível micro, sobre a construção da identidade individual e de grupo, quanto a nível macro em torno do tema construção da identidade social. Encerramos com a concepção apresentada pelo estudioso francês Ricoeur (1983), que assim descreve a função da narrativa:

[...] são elas que nos permitem tecer inteligibilidade e ordenação espaço-temporal na profusão de acasos e contingências que caracterizam a experiência, dando-lhes a ideia de completude. Teríamos, segundo o pensador francês, um fascínio pela criação de um tempo retilíneo, que nos faz, de certa forma, experimentar a ideia de controle sobre os acasos desordenados da existência e da nossa experiência de identidade e alteridade. (RICOEUR apud BASTOS, FABRÍCIO, 2009,p.46).

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