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A ausência de efetividade do modelo atual ante as limitações de

2 O MODELO JURÍDICO-REGULATÓRIO EXISTENTE E SUA

2.3 O PAPEL DO DIREITO PENAL NA RESPONSABILIZAÇÃO DOS AGENTES

2.3.4 A ausência de efetividade do modelo atual ante as limitações de

Ante o cenário acima exposto, nota-se um descompasso muito grande da evolução dos sistemas administrativos de detecção e persecução de sintomas nocivos ao bom funcionamento do mercado, através da atuação direta dos entes responsáveis pelo seu bom funcionamento, do cenário relativo ao Direito Penal e processual penal.

O que se depreende é a diferença de, por um lado, termos um mecanismo de controle, baseado em tratados internacionais, com fiscalização geral multifacetada e extremamente especializada, capitaneada por agentes de atuação direta, discreta e técnica no ramo das operações financeiras. De outro lado, está um sistema

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Art. 340 - Provocar a ação de autoridade, comunicando-lhe a ocorrência de crime ou de contravenção que sabe não se ter verificado: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

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BRASIL. Lei 7.209, de 11 de julho de 1984. Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e dá outras providências – Exposição de Motivos.

investigatório inquisitorial, cuja titularidade se dá por entes de qualificação técnica duvidosa acerca de operações financeiras, dentro de um processo hermético e arcaico, que buscam, por intermédio da ameaça, angariar informações sobre a suposta prática de crimes de forma não clara, vaga e imprecisa, direcionada a pessoas que, em geral, não tem autoridade para conseguir os dados requeridos e, sobretudo, atropelando garantias e direitos individuais constitucionalmente previstos. Não é necessário um exame apurado do quadro prático para se chegar ao entendimento de que a atividade de requisição de dados às instituições financeiras pelas autoridades investigativas diretamente aos integrantes dos quadros funcionais das operações financeiras não apresenta quase nenhum resultado prático. O Direito Penal, originalmente organizado como modo de garantia do cidadão contra o desejo punitivo estatal, é utilizado como instrumento de coação aos receptores das ordens de fornecimento de informações, o que, ao fim e ao cabo, acaba por não ter grau algum de eficiência no caso concreto. A partir do momento em que o Direito Penal não é utilizado em seu fim original, qual seja, a proteção a bens jurídicos relevantes, ele não cumpre, em absoluto, o seu papel, exatamente como ocorre nas hipóteses em análise, pois não se sabe qual o bem jurídico ameaçado pela desobediência de uma ordem (mal dada e mal dirigida) emanada por funcionário público.

A questão se minimiza significativamente quando a solicitação de informações passa pela análise e pelo crivo judicial acerca da sua efetividade e conveniência na persecução penal. O Juiz, ao decidir um pedido de informações proveniente de uma entidade investigadora, deverá motivar sua decisão com base não apenas no ordenamento jurídico penal ou processual, mas sobretudo constitucional. O fato de não estarem os dados financeiros ou bancários dos indivíduos abarcados expressamente no rol de garantias constitucionais não significa que a abrangência destes direitos não os alcance. O texto constitucional traz expressamente a proteção da intimidade e o sigilo de dados como garantias fundamentais, e sua flexibilização há que se dar quando do choque com outros direitos e garantias da mesma hierarquia.

Exemplo clássico da relativização destas garantias é o dever de informação das instituições financeiras de atividades suspeitas de lavagem de dinheiro ao Banco Central. Tal providência foi originada de tratados internacionais onde o Brasil é signatário e hoje exerce papel de destaque na regulação do sistema econômico internacional. Cabe a ressalva de que, neste caso, não está se falando da proteção

ao indivíduo usuário do sistema, mas, sim, visando o bom funcionamento do sistema financeiro como um todo, a fim de evitar novos choques e colapsos na economia global, que tantas consequências nefastas causaram a população, especialmente a partir do século XIX.

É latente a confusão adotada por certos atores sociais quando fazem brado acerca da aplicação do princípio da eficiência, erigido à categoria constitucional no

caput artigo 37 da Constituição como um dos nortes a ser perseguido pela

administração pública, com o da eficácia – que não necessariamente são sinônimos.263 A persecução penal, a fim de apurar crimes de característica específica como os aqui tratados, deve ter como base a eficácia nos meios de persecução, através da técnica e da inteligência, ao invés da eficiência baseada apenas em um vetor temporal. A eficiência aqui não está diretamente ligada com a rapidez. Invariavelmente, um dos pontos primeiros a sofrer os efeitos dessa flexibilização é o direito ao sigilo e à intimidade dos investigados.

Neste quadro, é comum o clamor pela flexibilização dos limites à investigação estatal. O Processo Penal deve visar, antes de tudo, um resultado final constitucionalmente adequado, pois de nada valerá um procedimento investigativo baseado em ilegalidades cujas provas colhidas de nada servirão para seu desiderato, pois eivadas de nulidades.

Esse movimento acaba por gerar um enfraquecimento do Direito Penal como meio de controle e regulação da sociedade pelo Estado. Uma vez que não apenas a própria noção de Estado, mas também de seus elementos constituintes – território, sobretudo –,264 se encontra em crise, a resposta prática dada aos meios de

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MORAES conceitua o princípio da eficiência como sendo “aquele que impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e garantir uma maior rentabilidade social.” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 310). DI PIETRO complementa a conceituação explanando que “a eficiência é princípio que se soma aos demais princípios impostos à Administração, não podendo sobrepor-se a nenhum deles, especialmente ao da legalidade, sob pena de sérios riscos à segurança jurídica e ao próprio Estado de Direito.” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas. 2007, p. 76).

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“Os riscos na era da globalização transcendem no tempo e no espaço. Um desastre ecológico, a poluição, as guerras, trazem consequências não só para hoje, e não só para determinado país. São problemáticas a serem resolvidas por toda a humanidade. Estes novos riscos provocam maior temor devido a sua imprevisibilidade. Não se sabe a sua dimensão e o alcance dos seus efeitos.” (FERNANDES, op. cit., p. 61).

repressão265 estatal pelos reprimidos, e vice-versa, é cada vez mais simbólica. De um lado, há um Estado impossibilitado de apresentar uma resposta repressiva eficaz à nova delituosidade,266 com falta de operadores e estrutura qualificados para esse enfrentamento. De outro, uma massa popular que, ao sentir esta inoperância, acaba por perder a confiança no Estado em dar uma resposta efetiva e direta aos delitos em geral, e não apenas aos novos crimes. É notável a diferença de velocidade notada entre as relações a serem controladas com a efetiva resposta estatal, seja no âmbito legislativo, seja no âmbito executório.

A incompatibilidade entre o Direito Penal clássico e a nova delituosidade acaba por gerar uma resposta praticamente nula do Estado na regulamentação e controle destas novas relações.267 Para isso, as respostas estatais a esta vasta gama de delitos passam a ser paliativas – penas alternativas, transação penal e terceirização da função penal –, absolutamente fora do propósito do caráter repressivo original do Direito Penal.

Tal prática acarreta consequências bem latentes. Primeiramente, não é absurdo se dizer que este expansionismo, esta tentativa de utilizar tipos penais como forma de simplificar a produção da prova no processo penal não tem gerado

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“A noção de repressão [...] é mais pérfida; em todo caso, tive mais dificuldade em me livrar dela na medida em que parece se adaptar bem a uma série de fenômenos que dizem respeito aos efeitos do poder. (...) Ora, me parece que a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de produtor no poder. Quando se define os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio ser esta uma noção negativa, estreita e esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considera-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem como função reprimir.” (FOUCAULT, op. cit. 2009, p. 7-8).

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“Da mesma forma que o mundo se tornou global, o crime também passou a ser de preocupação internacional. Hoje é comum a existência de criminalidade organizada em sociedades cujo único intuito é infringir as leis. Alguns exemplos disso são os crimes econômicos, de colarinho branco e crimes de poder.” (FERNANDES, op. cit., p. 36).

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Gomes e Bianchini listam uma série de características da chamada modernidade penal que estão se acentuando ou deteriorando na era da globalização, são elas a deliberada política de criminalização, ao invés de descriminalização; as frequentes e parciais alterações pelo legislador da Parte Especial ou a edição de leis penais especiais; o aumento dos marcos penais dos delitos clássicos; a proteção institucional (ou funcional) dos bens jurídicos; a ampla utilização da técnica dos delitos de perigo abstrato; o menosprezo patente ao princípio da lesividade ou ofensividade; erosão do conteúdo da norma de conduta; uso do direito penal como instrumento de política de segurança; transformação funcionalista de clássicas diferenciações dogmáticas; a responsabilidade penal de pessoas jurídicas; endurecimento da fase executiva da pena; privatização ou terceirização da justiça;e alterações no processo penal em nome da efetividade (GOMES, Luiz Flávio & BIANCHINI, Alice. O Direito Penal na era da globalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 25-33).

os efeitos esperados e, longe disso, em nada colabora para a elucidação dos casos em que utilizada. Por fim, conforme se verifica nos processos examinados no próximo capítulo, o único caso em que se reconheceu a possibilidade de apuração direta pelo Ministério Público, sem autorização judicial, envolvia verba de caráter público em conta corrente de titularidade de ente público. Mesmo assim, tal prática só foi permitida após um intenso exercício de flexibilização e relativização de garantias constitucionalmente elencadas.

3 ANÁLISE DE CASOS PRÁTICOS

Este estudo, ao avaliar casos judiciais práticos, concentra-se nos limites do poder de requisição de informações pelo Ministério Público em crimes econômicos sem autorização judicial. Por essa razão, a pesquisa analisa e discute as garantias constitucionais, infraconstitucionais e o entendimento jurisprudencial.

Ambos os casos retratados passam ao largo do exame da legislação atual de regência, qual seja, a Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, tendo sido, inclusive, a segunda decisão analisada proferida anteriormente a vigência da referida legislação.

A pesquisa busca explorar entendimentos jurisprudenciais, aspectos inovadores sobre a desnecessidade de autorização judicial para quebra de sigilo bancário envolvendo recursos públicos com base nos textos legais examinados no presente estudo.

A escolha das presentes decisões se deu em razão da necessidade geral e permanente de avaliação dos resultados da aplicação das normas e do entendimento jurisprudencial aos casos concretos, a fim de saber se, de tais aplicações, é possível extrair um juízo sobre a efetividade da norma.

3.1 EXAME DAS DECISÕES – REPRESENTAÇÃO CRIMINAL – PROCESSO 2006.71.17.002657-2 – VARA FEDERAL DE ERECHIM - RS – RECURSO EM SENTIDO ESTRITO 2006.71.17.002657-2 – OITAVA TURMA – TRIBUNAL REGIONAL DA QUARTA REGIÃO – MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL X PAULO KETTNER E OUTROS