• Nenhum resultado encontrado

Contreras (2002), estudioso espanhol, discute em sua obra “A autonomia dos professores”, publicada originalmente em 1997, os múltiplos sentidos que o uso da palavra “autonomia” assume em diversos contextos, aprofundando o significado do termo e seu papel em relação à educação e à sociedade. Neste estudo, o autor aponta a importância da parceria professores/sociedade, unindo esforços em busca da conquista da autonomia de ambos.

Segundo Contreras (2002), falar sobre a autonomia docente demanda conhecimento do tema e ousadia, pois, em um primeiro momento, tem-se a

impressão de que o professor é a parte mais fraca nas relações de poder e que, por isso, não vai ser modificada a situação; por outro lado, falar sobre tal situação pode servir como estímulo para que os professores se organizem nessa direção. Assim, o autor discorre sobre a idéia de autonomia docente, elucidando suas armadilhas e as possibilidades de desfazê-las. Assinala, por exemplo, que uma particularidade importante da autonomia é que, ao se referir à maneira de ser e estar, de agir e pensar de professores, tanto pessoal quanto profissionalmente, ela nos remete, necessariamente, ao entendimento de que pensar em autonomia é pensar em posicionamentos e ações de ordem política. Segundo o autor, ao falarmos da autonomia do professor, estamos falando também de sua relação com a sociedade e, por conseguinte, do papel da mesma com respeito à educação.

Além disso, as discussões sobre a autonomia remetem ao profissionalismo no ensino. E Contreras (2002) analisa o debate sobre a proletarização do professor e as diferentes maneiras de compreender o que significa ser profissional e as ambigüidades e contradições escondidas na construção da profissionalidade.

Segundo o autor, o trabalho docente vem sofrendo subtrações progressivas de qualidades, que conduziram os professores à perda de controle e sentido sobre o próprio trabalho, ou seja, à perda de autonomia.

Aproximando-se do trabalho da classe operária, os docentes acabaram se rendendo às condições de trabalho e tarefas que geraram a perda das qualidades que faziam deles profissionais e a deterioração das condições de trabalho.

Os fatores que levaram a esse processo foram a progressiva racionalização, que tornou os professores dependentes de decisões e medidas elaboradas por especialistas e administradores, e a tecnologização do ensino que significou, precisamente, esse processo de separação das fases de concepção e de execução do trabalho docente, delegando-se aos docentes a função de meros aplicadores de programas e pacotes curriculares24.

Segundo Contreras (2002), esses fatores refletem o espírito de racionalização tecnológica do ensino, na qual o docente vê sua função reduzida ao cumprimento de prescrições externamente determinadas, perdendo de vista o conjunto e o controle sobre sua tarefa. Essas novas mudanças e o processo de desqualificação dos professores, de certa forma, fizeram com que os docentes buscassem a requalificação profissional, na medida em que tiveram de desenvolver novas habilidades e aprendizagens de novas técnicas, e, conseqüentemente, novas especializações.

Mas, mesmo com a busca incansável de qualificação profissional, o docente encontra-se pressionado a desenvolver tarefas exaustivas dentro de um quadro de controle e burocratização do Estado, que o impede de refletir e de se organizar com os pares em busca da profissionalidade.

Segundo Contreras (2002),

[....] a forma em que o Estado desenvolve seus processos de racionalização está em relação direta com o aumento das formas burocráticas de controle sobre o trabalhador e suas tarefas. [...] Ao aumentar os controles e a burocratização, ao não ser um trabalho autogovernado, mas planejado externamente, o ensino resulta ser cada vez mais um trabalho completamente regulamentado e cheio de tarefas (RIZVI,1989). Isto provoca diversos efeitos nos professores. De um lado, favorece a rotinização do trabalho, já que impede o exercício reflexivo empurrado pela pressão do tempo. De

outro, facilita o isolamento dos colegas, privados do tempo para encontros em que se discutem e se trocam experiências profissionais, fomentando-se dessa forma o individualismo (TORRES, 1991, p. 199). A intensificação coloca-se assim em relação com o processo de desqualificação intelectual, de degradação das habilidades e competências profissionais dos docentes, reduzindo seu trabalho à diária sobrevivência de dar conta de todas as tarefas que deverão realizar. (CONTRERAS, 2002, p. 37)

Esse “processo de engessamento do sistema” levou os professores à degradação do trabalho, privando-o de suas capacidades intelectuais e de suas possibilidades de discussões coletivas, e fez com que os professores fossem perdendo habilidades e conhecimentos acumulados.

Ao renunciar à sua autonomia como docente, o professor aceita a perda do controle sobre seu trabalho e a supervisão externa sobre o mesmo, tornando-se um executor de programas, dependente de decisões externas, perdendo sua identidade profissional.

Visando encontrar saídas para esse quadro de proletarização docente, Contreras (2002) defende a idéia de profissionalidade, assinalando que esse processo refere-se às qualidades da prática profissional dos professores, em função do que requer o trabalho educativo. Para o autor, falar de profissionalidade significa não só descrever o desempenho do trabalho de ensinar, mas também expressar valores e pretensões que se deseja alcançar e desenvolver nessa profissão:

A reivindicação não se reduz a um desejo de maior status. Também se reivindica maior e melhor formação, capacidade para enfrentar novas situações, preocupação por aspectos educativos que não podem ser descritos em normas, integridade pessoal, responsabilidade naquilo que faz, sensibilidade diante de situações delicadas, compromisso com a comunidade etc. Essas exigências oferecem um caráter muito especial ao sentido de qualificação ou autonomia para os docentes. Não se trata apenas de certas condições

humanamente dignas em uma ocupação. É praticamente impossível realizar todas essas funções, que publicamente são reconhecidas como necessárias para o bom desempenho do trabalho educativo, se não se dispõe da capacidade de decidir de modo responsável a adequação entre o propósito educativo e a realidade concreta na qual ele tenta se realizar. A educação requer responsabilidade e não se pode ser responsável se não se é capaz de decidir, seja por impedimentos legais ou por falta de capacidades intelectuais e morais. Autonomia, responsabilidade, capacitação são características tradicionalmente associadas a valores profissionais que deveriam ser indiscutíveis na profissão docente. E a profissionalização pode ser, nessa perspectiva, uma forma de defender não só os direitos dos professores, mas da educação. (CONTRERAS, 2002, p.72-73)

Assim, buscando compreender o significado da construção profissional e das ambigüidades e contradições escondidas na aspiração da profissionalidade, o autor apresenta os três modelos tradicionais desse processo: o professor como técnico, o ensino como uma profissão de caráter reflexivo e o papel do professor como intelectual crítico.

Na perspectiva do professor como especialista técnico, a autonomia é tida como status, em que o docente permite a intervenção externa em suas atividades. Portanto, permanece a dependência de diretrizes técnicas. Essa autonomia é ilusória, pois faz com que os docentes não consigam se posicionar com respostas criativas diante da incerteza.

Na perspectiva do professor como profissional reflexivo, a autonomia é compreendida como responsabilidade moral individual, privilegiando a capacidade para resolver criativamente as situações-problema da prática educativa.

Na perspectiva do professor como intelectual crítico, a autonomia é descrita como emancipação, percebida como libertação profissional e social, envolvendo a superação das distorções ideológicas e a consciência crítica.

Esse é um processo coletivo, em busca de uma vontade comum, com vistas à transformação social do ensino.

Frente a essas questões, o autor explicita o significado de autonomia em sentido amplo, alertando sobre a importância de se equilibrarem necessidades e condições no exercício do trabalho docente. Ou seja, Contreras (2002) ressalta ser fundamental considerar não só as condições pessoais do professor, como também as condições estruturais e políticas em que a escola e a sociedade interagem, e como esses fatores influenciam a construção da autonomia profissional docente.

Durante toda a sua discussão sobre a autonomia dos professores, Contreras (2002) enfatiza que haverá sempre um movimento em sentido contrário às forças hegemônicas, por meio do qual os professores lutam para conquistar sua autonomia, em nome do componente ético de seu trabalho, de sua responsabilidade e de seu compromisso social. Finalmente, o autor afirma que será alcançada, de fato, a autonomia profissional à medida que se consolidar a autonomia social:

A autonomia profissional significa, por último, um processo dinâmico de definição e constituição pessoal de quem somos como profissionais, e a consciência e realidade de que esta definição e constituição não pode ser realizada senão no seio da própria realidade profissional, que é o encontro com outras pessoas, seja em nosso compromisso de influir em seu processo de formação pessoal, seja na necessidade de definir ou contrastar com outras pessoas e outros setores o que essa formação deva ser.

Definir a autonomia não é, portanto, colocar-se de acordo sobre qual o terreno particular dos docentes e qual o de outros setores sociais. [...] acredito que é por meio da compreensão das diferentes formas em que se relacionam e se influenciam os espaços e competências profissionais e sociais, que devemos pensar na constituição de uma identidade profissional. (CONTRERAS, 2002, p. 214-215)

Segundo Contreras (2002) são três as dimensões da profissionalidade docente:

1. a obrigação moral;

2. o compromisso com a comunidade; 3. a competência profissional.

Em relação à obrigação moral, o autor ressalta que o docente deve ter o poder de decisão da prática que realiza e de compromisso com seus alunos, buscando ter um papel de transformador da realidade que enfrenta e de consciência e desenvolvimento sobre o sentido do que é desejável educativamente. Essa consciência moral sobre seu trabalho está, intimamente, ligada à autonomia como valor profissional. Nesse sentido, somente através de sua autonomia de valores educativos e de sua forma de realizá-los na prática é que o docente poderá entender a obrigação moral.

Quanto ao compromisso com a comunidade, Contreras (2002) aponta que o processo educativo não se reduz apenas às salas, mas que tem uma clara dimensão social e política. Nesse sentido, a profissionalidade pode significar uma análise e uma forma de intervir nos problemas sociopolíticos, cabendo ao professor a responsabilidade de desenvolver nos alunos a consciência crítica da realidade, por meio de práticas que tenham um claro significado político contra as desigualdades e injustiças sociais.

Para esse autor, a obrigação moral dos professores e o compromisso com a comunidade requerem uma competência profissional coerente com ambos. Neste caso, há que se dar importância aos domínios técnicos e às habilidades do professor, porém, a conseqüência que deriva das duas dimensões anteriores da profissionalidade docente é que a competência

profissional transcende o sentido puramente técnico do recurso didático. É preciso discutir, dentro das competências profissionais, princípios e consciência do sentido e das conseqüências das práticas pedagógicas, com um compromisso com o significado e as repercussões sociais do ensino.

De acordo com Contreras (2002),

[...] a competência profissional se refere não apenas ao capital de conhecimento disponível, mas também aos recursos intelectuais de que se dispõe com objetivo de tornar possível a ampliação e desenvolvimento desse conhecimento profissional, sua flexibilidade e profundidade. A análise e a reflexão sobre a prática profissional que se realiza constitui um valor e um elemento básico para a profissionalidade dos professores (CONTRERAS, 2002, 83-84)

Finalmente, resta acrescentar que as contribuições de Contreras (2002), neste trabalho, permitem repensar o papel do profissional docente, reconhecendo sua capacidade de ação reflexiva e de elaboração de conhecimento profissional em relação ao conteúdo de sua profissão, bem como a autonomia que desenvolve sobre os contextos que condicionam sua prática e que vão além da sala de aula. Nesse sentido, é possível afirmar que os professores podem desenvolver sua competência profissional, entendida mais como uma competência intelectual, do que como habilidades e técnicas somente, visando à emancipação e ao envolvimento nas questões e movimentos sociais que circundam a prática pedagógica.

2.3 A CULTURA DOCENTE E A CULTURA ESCOLAR NA VISÃO DE PÉREZ

Documentos relacionados