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1.3 DE DISCIPLINA AUTÔNOMA A CAMPO DISCIPLINAR

1.3.1 A autonomia e a natureza complexa da disciplina

Autonomia, interdisciplinaridade e complexidade do objeto são temas introdutórios da abordagem teórica do capítulo 2, adiante, que refletirá sobre as Ciências da Religião inseridas em dinâmica interdisciplinar.

Autonomia institucional e autonomia disciplinar são intercorrências indissociáveis, embora os elementos constituintes de cada uma sejam de natureza diversa. A autonomia disciplinar implica questões atinentes à identidade e constituição da disciplina; isso remete de imediato aos debates em torno da sua “variedade de nomenclaturas”, as quais dependem “das constituintes da denominação” empregada, quais sejam, Ciência da Religião, Ciências da Religião, Ciência das Religiões ou Ciências das Religiões. Camurça diz que se trata de uma “discussão acerca da definição de seu método, se “ciência” ou “ciências”, e de seu objeto, se “religião” ou “religiões” (USARSKI, 2007, p.9-10).

Entretanto, essa diversidade, na opinião de Usarski, não atinge a “estrutura interna da matéria”, havendo unanimidade sobre seu caráter “pluralista”, no sentido de uma “abordagem “polimetodológica”” (USARSKI, 2007, p.9-10, grifos no original). E acrescenta uma observação fundamental a respeito da constituição da disciplina enquanto campo disciplinar e de suas relações interdisciplinares:

Tal pluralidade interna não é um sintoma de falta de reflexão metateórica sobre a disciplina ou de desinteresse por sua autonomia institucional, mas uma conseqüência da complexidade, ou seja, da multidimensionalidade do seu objeto. (p.10, redação original)

O assunto da complexidade do objeto é abordado por Filoramo e Prandi (1999, p.17-22, grifos no original) sob o título de autonomia relativa, em que apresentam uma teorização que termina por esclarecer a aparente dicotomia entre disciplina autônoma e campo disciplinar, entre objeto especializado e objeto interdisciplinar. Os autores defendem que toda religião é integrada por elementos históricos e elementos não históricos; ou seja, de um lado, os elementos sujeitos a mudança contínua, de ritos, crenças, formas sociais religiosas, tiradas do contexto histórico; de outro, as estruturas e comportamentos que persistem e que são “a posse de uma legislação normativa interna, de formas de funcionamento, de auto-regulação, de resposta e de recuperação”, sendo estes últimos os elementos-tipo que todas as religiões apresentam em suas respectivas estruturas de sistematização filosófica e dogmática.

Disso advém o confronto entre princípios de autodireção, provindos do ambiente interno da religião, e os “princípios de heterodireção que o ambiente externo lhe impõe”. Este, segundo os autores, é o problema da autonomia relativa da religião, que remete a um “entrelaçamento, historicamente dado, entre determinadas “individualidades” religiosas com sua particular lógica e estrutura e determinados contextos histórico-sociais”. Nisto “reside o específico do fato religioso”. As religiões, portanto, “não são explicáveis somente em função de variáveis independentes, externas ao mundo das religiões”. Daí, é preciso trabalhar “com um conceito de religião capaz de levar em conta tanto os seus aspectos funcionais quanto os específicos” (FILORAMO e PRANDI, 1999, p.17).

Há, portanto, elementos da essência do fato religioso, integrados por “problemas existenciais que giram em torno da relação entre o homem e os seres que recorrentemente ele crê e vê como fundamento e garantia de sua existência” (FILORAMO e PRANDI, 1999, p.18). Por outro lado, há elementos históricos que integram o fato religioso, e que fazem a interface entre a essência o fato religioso e os fatores pertinentes ao contexto sócio-geográfico-histórico-cultural em que o fato religioso encontra-se inserido. Fala-se, aqui, de objeto especializado, em seu núcleo, e de objeto de interesse interdisciplinar, bem como do potencial contributivo-tributário da disciplina em suas relações interdisciplinares.

Essa interface avulta na vasta extensão da área de pesquisa da disciplina. Diz Usarski que o “caráter “emancipado” das Ciências da Religião” se revela não só em sua “independência institucional”, mas também, “entre muitos outros aspectos, na vasta extensão da área de pesquisa [...]”, que ele, reportando-se a Joachim Wach, organiza em duas linhas complementares:

[...] há autores que destacam, de maneira universalista, as constituintes e estruturas comuns da religião como essência do real mundo religioso em suas manifestações múltiplas; enquanto outros enfatizam a importância de um levantamento empírico e histórico em favor de uma reconstrução [...] de cada tradição religiosa em sua singularidade (USARSKI, 2006, p. 17, grifo no original)

A complementariedade, como se verifica, é outra forma de abordar a questão dos dois focos de pesquisa, quais sejam, dos elementos essenciais e dos não essenciais do fato religioso. Ademais, a ênfase no campo de pesquisa e seus focos conduz à dinâmica metodológica, como se depreende do comentário de Filoramo e Prandi (1999, p.20), segundo quem:

[...] o estudo científico da religião avançou à medida que se demonstrou capaz de assumir novas perspectivas metodológicas, pois cada novo método, quando eficaz, contribui para se captar um outro aspecto de uma realidade humana histórica extremamente variada e multifacetada e que [...] se revela resistente a ser capturada de uma vez por todas numa única rede metodológica.

De fato, “nunca como hoje a religião foi objeto de tantos estudos, por parte das mais variadas [...] disciplinas”, pois os “diferentes campos disciplinares” podem “ser reciprocamente fecundos”. E aqui aponta o desenvolvimento da disciplina rumo à formação da mesma como campo disciplinar, que ocorre em meio ao “processo de setorização e multiplicação [...] por que passam as outras ciências humanas [...], cada vez mais articuladas e ramificadas”, e da “emergência de novos métodos de pesquisa aplicados à religião” (FILORAMO e PRANDI, 1999, p.5).

Inclusive, “do ponto de vista internacional a situação” da disciplina “tem sido muito complexa”, pois “desenvolveu traços específicos de acordo com as condições acadêmicas nacionais”. A disciplina “precisa ser concebida como ponto de intersecção de várias subdisciplinas e matérias auxiliares” (USARSKI, 2006, p.15). Essa foi a exigência herdada do período do Iluminismo e da ramificação das Ciências Humanas, ou seja, “de uma ciência da religião capaz de reunificar as contribuições que essas diferentes disciplinas” oferecem, “a partir de seu observatório particular, para o conhecimento científico das religiões” (FILORAMO E PRANDI, 1999, p.7).