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A biblioteca de Alexandre O ’Neill: a poesia brasileira

Alexandre O’Neill traça ainda, em sua obra, uma espécie de recorte da poesia brasileira moderna, de Bandeira a Cabral, retomando a geração modernista da década anterior à sua estreia como poeta. Em Uma biografia literária, Maria Antónia Oliveira (2007) refere- se à descoberta da poesia brasileira por parte de O’Neill, como mencionamos na Introdução desta dissertação, através da menção a vários autores, como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e aquele que mais nos interessa destacar, João Cabral de Melo Neto:

O Alexandre gostava muito da literatura brasileira, conhecia-a melhor do que ninguém, talvez, entre os escritores portugueses daquele tempo. Conhecia não só poetas, mas também prosadores como João Guimarães Rosa por quem tinha de devoção (OLIVEIRA, 2007, p. 293).

Na adolescência, o poeta conheceu o universo literário pela vasta biblioteca de seu pai. Em seus poemas, O’Neill apresenta elementos que apontam sua experiência como leitor, revelando as aspirações que norteiam sua escrita poética e sua paixão pela literatura brasileira, aspecto que pode ser concebido como uma espécie de ponte literária entre Portugal e Brasil. Oliveira afirma que o poeta português

dedicou-se igualmente à organização de antologias. O’Neill gostava de dar a conhecer poetas. E dava-se a conhecer através deles. Enquanto ia escrevendo mais um livro de poemas, que alternava com as traduções, preparou a já referida Antologia de Teixeira de Pascoes (conhecimento antigo de Amarante), uma outra de Carl Sanburg e uma terceira de João Cabral de Melo Neto, que muito admirava, para quem escrevera “Saudação a João Cabral de Neto”, no livro Abandono vigiado [...]. O poeta brasileiro respondeu, também em poesia, com “Catar feijão” (OLIVEIRA, 2007, p. 171).

Nesse diálogo poético, o poeta português faz uma espécie de reflexão sobre a poesia prosaica de Cabral, o qual, por sua vez, faz uma analogia ao processo de composição poética, que será analisada posteriormente.

No percurso literário de O’Neill pela poesia brasileira, pode-se perceber em seu projeto literário de renovação da linguagem uma influência clara dos poetas modernos brasileiros mencionados, a qual surge a partir de uma consciência poética provocada pela negatividade e pela inquietação experimentadas frente ao mundo moderno.

Um dos autores que se faz presente na obra do poeta português é Carlos Drummond de Andrade, primeiro poeta que se afirmou após o marco do modernismo no Brasil. Drummond foi homenageado por O’Neill no poema “A um poeta que deixou de comparecer nas antologias”, publicado no Jornal de Letras, em 1982; contudo como “era de seu costume de lírico arrependido, o [veio] a republicar sem a dedicatória original no livro seguinte, Dezanove poemas.” (OLIVEIRA, 2007, p. 289). Este escritor mineiro herdou do movimento modernista a liberdade no fazer poético, e em sua poesia estão presentes o sarcasmo, a ironia e o humor, aliados a uma atitude antilírica.

Há também, em Drummond, uma indagação do sentimento do mundo, que, por vezes, revela o mundo interior do poeta, o seu povo e a sua paisagem, atingindo, em alguns momentos, a verdadeira serenidade e a pureza clássica. Drummond evita o sentimentalismo e

o patético, afirmando que sua poesia é séria. Um sentimento límpido e um acentuado sentido trágico são expressos com discrição e suavidade.

Desse modo, Drummond realça o mistério da palavra, que considera como a essência da poesia. Esse estilo atrai a atenção de O’Neill, que procura elementos da poesia drummondiana para sua própria poesia. Na obra A rosa do povo, por exemplo, o poema “Medo” traz à tona o domínio do medo na sociedade:

Faremos casas de medo, duros tijolos de medo Nossos filhos tão felizes... Fiéis herdeiros do medo eles povoam as cidades Depois da cidade, o mundo depois do mundo, as estrelas

dançando o baile do medo. (ANDRADE, 2011, p. 56-57).

Essa reflexão sobre o medo é retomada por O’Neill em “O poema pouco original do medo”, da obra Abandono vigiado, no qual o poeta português cria um inventário ao enumerar os objetos do medo:

o medo vai ter tudo pernas ambulâncias

e o luxo blindado

de alguns automóveis (O’NEILL, 1982, p. 143).

Dessa forma, a inquietação frente aos problemas do mundo moderno se mostra comum à poética desses autores. Outro autor que podemos encontrar na obra oneilliana é Murilo Mendes, poeta que visa à liberdade criadora e ao domínio experimentador do lirismo, sendo consciente do momento histórico e artístico de sua poética. Em seu percurso literário, Murilo Mendes trilha mais de um caminho, mantendo, entretanto, a sua unidade poética: até a década de 1950, a poesia muriliana tende para o surrealismo, envolvendo um clima onírico e alucinatório. Mendes reflete também sobre o fazer poético e o trabalho do poeta, buscando, no cotidiano, as imagens do universo e da modernidade para compor o seu poema. A poesia muriliana provoca o leitor a pensar sobre o mundo, tendo como desejo essencial a liberdade. Por essa via, tem-se uma aproximação com O’Neill, que também pensa a composição da poesia como meio de libertação da palavra, seja pelas influências surrealistas, seja pelas imagens desconcertantes. Assim, a poética oneilliana mostra as inquietações do poeta em

relação ao mundo, apresentando-se como uma proposta de liberdade, como um desafio à sociedade caótica que a abriga.

No poema “Ofício humano”, publicado por Murilo Mendes em Poesia liberdade, o eu lírico faz alusão ao trabalho do poeta:

O poeta abre seu arquivo – o mundo – e vai retirando dele alegria e sofrimento

[...] É preciso desdobrar a poesia em planos múltiplos (MENDES, 2001, p. 43)

Revela-se, assim, que o resultado não é um poema perfeito, indicando-se que o ato de escrever é intenso. No mesmo sentido, a reflexão poética também é tema de O’Neill no poema “Em todo o acaso”, inserido em No reino da Dinamarca:

Remancha, poeta Remancha e desmancha O teu belo plano

de escrever p’la certa (O’NEILL, 1982, p. 94).

Esses versos demonstram que o trabalho do poeta é vagaroso, bem como evidenciam a necessidade de reelaboração do fazer poético.

Entretanto, foi com Vinicius de Moraes que o poeta português estabeleceu uma relação de amizade pessoal, bem como um diálogo poético explícito. O poeta brasileiro faz menção ao português no poema “Lisboa tem terremoto”, referindo-se ao encontro com O’Neill em Portugal. Em 1969, O’Neill recebeu o poeta brasileiro em Lisboa e organizou uma antologia da poesia de Vinícius de Moraes. Dessa amizade entre os poetas surgiu a reunião de poemas por O’Neill intitulada O poeta apresenta o poeta, que após algumas edições teve seu título alterado, após 25 de abril de 1974, para O operário em construção.

Na morte do autor brasileiro, O’Neill escreveu uma divertida crônica para homenageá-lo, intitulada “Vinicius nunca mais!”, e publicada em 1981 no Jornal de Letras. É desta crônica o trecho que se segue:

Ora a poesia do Vinicius diverte-me. Ele tem um notável irrespeito por tudo e todos. Ele dá a impressão dum homem que teve respeito só uma vez, só até aprender que nada nem ninguém merece essa hipocrisia a que as pessoas chamam de respeito, essa espécie de esmórfia de reflexão grave que os mundanos da literatura e arredores põem na bandeira da cara (OLIVEIRA, 2007, p. 210).

Essas informações permitam que se perceba a admiração de O’Neill pelo poeta brasileiro, bem como a sua resistência à crítica literária através de uma visão bem-humorada. Em outro excerto, nota-se no autor português o jogo de ironias, ao não se considerar como o brasileiro em relação aos seus leitores:

Imagino que, no fim da vida, ele conseguiu o que eu, mero aprendiz, aspiro: ser detestado por todos os sectores, ser considerado um ordinarão pela cabelereira da minha mulher e um idiota reacionário pelo médico do meu filho e saber, não obstante tudo isso, que há uma mulher de meia-idade que extrai prazer onanístico da leitura escondida dos meus versos... (OLIVEIRA, 2007, p. 211).

É assim que O’Neill trata a poesia, com jogos de palavras e brincadeiras poéticas. O poeta não se vê como um grande escritor da literatura portuguesa. Busca um constante rebaixamento de sua poesia, e nesse sentido é interessante retomar as palavras do poeta português sobre sua própria poesia:

Às vezes penso que a poesia que fiz foi inútil – e tiro, até, um certo orgulho disso. A inutilidade da poesia, tanto como a sua utilidade, está demonstrada. Depende, em boa medida, de uma categoria de pessoas a que eu posso chamar os adeptos. E aqui recordo um verso de André Breton:

Eu não sou pelos adeptos

Eu, modestamente, também não sou pelos adeptos...

Tentei aproximar a poesia – a minha – da linguagem falada, do linguajar quotidiano. Por decisão literata? Nada disso. Apenas como reação à pomposidade de muita poesia que em Portugal se fazia e que voltou hoje a fazer-se, para desprazer de alguns (OLIVEIRA, 2007, p. 293).

Outro autor em que se realiza esse processo é João Cabral de Melo Neto, cuja poesia é retomada por O’Neill para pensar o poético pela via do humor, como discorreremos na próxima seção.

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