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A biopolítica em Sade

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4. CORPO E TRANSGRESSÃO

4.4 A biopolítica em Sade

Cerca de 20 anos antes de Foucault, Hannah Arendt já havia teorizado sobre o processo de transferência da vida biológica para a cena política. Contudo, apesar de convergentes, ambos os estudos não abarcaram as relações entre o modelo jurídico-institucional e a biopolítica – é a partir daí que Agamben desenvolve seu pensamento, tendo em vista que “as duas análises não podem ser separadas e que a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário – ainda que encoberto – do poder soberano” (AGAMBEN, 2010, p. 14).

A proposta de Agamben é, assim, analisar o entrecruzamento do poder soberano e da vida nua na formação do cenário biopolítico atual, que terá como modelo o campo de concentração. Para isso, Agamben retoma dois termos de uso dos gregos antigos para definir aquilo que entendemos por “vida”: zoé, a vida comum, vivência, e bíos, a vida qualificada, a forma própria de viver de um indivíduo.

Agamben considera uma relação entre o poder soberano e essa vida desqualificada, a zoé. Sendo o soberano aquele que está dentro e

fora do ordenamento jurídico, o detentor do “poder legal de suspender a validade da lei” (ibid., p. 22), é ele quem decide sobre o estado de

exceção, no qual “trata-se, na verdade, não tanto de controlar ou

neutralizar o excesso, quanto, antes de tudo, de criar e definir o próprio espaço no qual a ordem jurídico-política pode ter valor” (ibid., p. 25), onde é “impossível distinguir a transgressão da lei e a sua execução, de modo que o que está de acordo com a norma e o que a viola coincidem, nele, sem resíduos” (p. 62).

Por estar dentro e fora do ordenamento jurídico, o soberano se situa em posição oposta à vida natural, à zoé sem bíos. Agamben recorre ao paradigma histórico da biopolítica, uma figura emblemática do direito romano arcaico, o homo sacer, aquele indivíduo situado na dupla exceção dos âmbitos do religioso e do profano: ele pertence a Deus na forma de insacrificabilidade e é incluído na comunidade na forma da matabilidade, é “uma pessoa é simplesmente posta para fora da jurisdição humana sem ultrapassar para a divina” (ibid., p. 83). A relação desta figura com o soberano se dá assim em limites extremos do ordenamento:

(...) soberano e homo sacer apresentam duas figuras simétricas, que têm a mesma estrutura e são correlatas, no sentido de que soberano é aquele em relação ao qual todos os homens são potencialmente homines sacri e homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberanos (ibid., p. 86).

A especificidade da estrutura do sacratio (e, por consequência, do

homo sacer) se dá na conjunção entre a impunidade da matança e a

exclusão do sacrifício. Agamben vê esta simetria entre a exceção soberana e o sacratio como uma relação de política originária, gerada a partir da introdução do direito de vida e morte sob a fórmula vitae

necisque potestas, o incondicional poder do pater sobre os filhos

homens, como se os cidadãos varões devessem pagar sua participação política com a sujeição à morte. “Não se poderia dizer de modo mais claro que o fundamento primeiro do poder político é uma vida absolutamente matável, que se politiza através de sua própria matabilidade” (ibid., p. 89).

Para o autor, o primeiro registro da vida nua como novo sujeito político está já na base da democracia moderna, a lei do Habeas corpus, de 1679, onde o corpo tem papel central, porque “a democracia

responde ao seu desejo obrigando a lei a tomar sob seus cuidados este corpo” (ibid., p. 121). Assim como na metáfora do Leviatã, de Hobbes, o “corpo” é formado por todos os corpos, e “são os corpos absolutamente matáveis os súditos que formam o novo corpo político do Ocidente” (ibid., p. 122).

Desta forma, as declarações de direitos humanos têm função efetiva no estabelecimento da política atual. É a partir da ideia de

nascimento, do indivíduo que nasce, e, de sua pertença à nação, que a

vida natural assume o local por excelência da decisão soberana. Assim, “a cidadania não identifica agora simplesmente uma genérica sujeição à autoridade real ou a um determinado sistema de leis (...) ela nomeia o novo estatuto da vida, como origem e fundamento da soberania” (ibid, p. 126), e os movimentos fascistas e nazistas são vistos por Agamben como puramente uma redefinição nessa relação entre homem e cidadão. Ele considera, aliás, o estado nazista como o “primeiro Estado radicalmente biopolítico” (ibid., p. 138), e o campo de concentração como “a estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente” (ibid., p. 166, grifo do autor).

4.4.1 Valor e desvalor da vida

(...) vida e morte não são propriamente conceitos científicos, mas conceitos políticos que, enquanto tais, adquirem um significado preciso somente através de uma decisão. (...) são fronteiras móveis porque são fronteiras biopolíticas (ibid., p. 160). As práticas biopolíticas mencionadas por Agamben são essencialmente aquelas em que o valor e o desvalor da vida são postos em evidência; essas práticas contribuem para a leitura da biopolítica em Sade.

Tomo por premissa uma definição de Agamben: “na biopolítica moderna, soberano é aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal” (ibid., p. 138). Logo, o soberano, aquele que decide sobre o estado de exceção, determina em que ponto a vida não é mais politicamente relevante e pode ser excluída sem homicídio ou sacrifício. Agamben apresenta uma série de eventos para corroborar sua afirmação, como o Euthanasie-Programm nazista14, e situações em

14 Nessa passagem há uma ironia possivelmente não percebida por Agamben. Karl Brand e

que emergem elementos de indiscernibilidade do biopoder, como o suicídio e o crescente número de refugiados.

“Toda sociedade fixa este limite, toda sociedade – mesmo a mais moderna – decide quais sejam os seus ‘homens sacros’” (ibid., p. 135). A sociedade romanceada (e até almejada por Sade, como prevê o panfleto) também. Há um explícito esquema de valorização e desvalorização da vida: certamente os libertinos, aqueles que cedem à sua naturalidade, atribuem valor à própria vida. Eis o paradoxo: em Sade, o homem natural (que admite sua natureza) é também soberano.

Os meninos e meninas dos haréns de Silling e Saló são vidas nuas no sentido agambeniano: foram despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente à vivência. Tal como o campo, Silling e Saló são os mais absolutos espaços biopolíticos, “no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação” (ibid., p. 166). Agamben vê a materialização do estado de exceção como essência do campo – toda vez que é criada tal estrutura, há a presença de um espaço biopolítico, um estado de exceção onde vida nua e norma entram em um limiar de indistinção. Em Silling e Saló, dá-se a simetria do soberano e do homo sacer: são, respectivamente, os senhores “fora da lei”, que criam as regras seguidas por todos, e os “sem direito a lei”, dos quais todas as ações, desde as necessidades fisiológicas, são geridas por esta norma.

A integração entre medicina e política, “uma das características essenciais da biopolítica moderna” (ibid., p. 139), consumada pelo Reich nazista principalmente nas pesquisas como VP (Versuchepersonen, cobaias humanas), também são apresentadas por Sade. Ainda em Silling, já nas meras descrições das últimas jornadas, trechos que o autor não pôde concluir, são vários os relatos de deformações do corpo humano, como o mocinho de 16 a 17 anos tornado eunuco e enrabado no 27° dia. Em Os infortúnios da virtude, é Justine quem confronta as tentativas de Rodin de pesquisar os efeitos da dor sobre os nervos de uma menina de 12 anos.

Há, em Sade, constante valorização e desvalorização da vida, uma decisão sobre o direito à vida e à morte, como as opiniões sobre a pena de morte deixam claro. É, como descreve Agamben, em Sade que se dá pela primeira vez a “organização normal e coletiva (e, portanto, eliminação de indesejáveis, como portadores de deficiências ou de paralisia progressiva), foram condenados à morte em Nuremberg por praticarem crimes contra a humanidade. Ou seja: uma pena genuinamente biopolítica para quem fez uso de uma estratégia biopolítica, como se as vidas de Brand e Brack não fossem mais “dignas de serem vividas” tais como as dos “idiotas incuráveis” do Euthanasie-Programm.

política) da vida humana baseada unicamente sobre a vida nua” (ibid., p. 131).

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