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4.2 A BUSCA DA FELICIDADE E SUA INTERSEÇÃO NO SISTEMA JURÍDICO:

4.2.3 A busca da felicidade no ordenamento jurídico brasileiro

Como salientado por Saul Leal (2013, p. 219; 223): "A consulta aos registros históricos inerentes ao processo de independência do Brasil mostra que a felicidade foi elemento central de todos os debates [...]". Acrescenta que, durante o ano de 1822, a felicidade foi tema de referência e, em 21 de maio, quando o príncipe noticiou ao pai a convocação das Cortes Brasileiras, afirmou: "Sem Cortes, o Brasil não pode ser feliz".

José Bonifácio, ao abrir a Assembleia Constituinte, na defesa do Imperador, sobre o qual exercia extrema influência, pediu uma Constituição capaz de conceder "aquela liberdade que fez a felicidade do Estado e não a liberdade que dura momentos e que é sempre causa e fim de terríveis desordens". Partindo desse pressuposto, o imperador, D. Pedro, defendeu a felicidade como premissa de seus discursos libertadores. (SAUL LEAL, 2017, p. 223).

Saul Leal (2013, p. 158) chama a atenção para o fato de que o Brasil fez sua aliança com a felicidade enquanto objetivo primeiro do Estado praticamente no mesmo período em que fizera os Estados Unidos e a França. "Todos esses movimentos emancipacionistas marchavam unidos na busca pela concretização desse ideal maior".

Logo, a felicidade fez parte da gênese do constitucionalismo brasileiro, desde o seu processo de independência.

No ordenamento jurídico pátrio atual não há previsão expressa da busca da felicidade. No entanto, tanto o Senado da República como a Câmara dos Deputados já discutiram propostas de emenda constitucional, de iniciativa do Senador Cristovam Buarque e da Deputada Manuela D’Ávila, a fim de inserir o direito à busca da felicidade no rol art. 6º da

Constituição Federal, como direito social e objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, respectivamente.

Em suas justificativas às propostas n. 19/2010 (Senado Federal) e n. 513/2010 (Câmara Federal), os respectivos parlamentares propositores utilizaram como mesma fundamentação o seguinte:

Na Declaração de direitos da Virgínia (EUA, 1776), outorgava-se aos homens o direito de buscar e conquistar a felicidade; na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789) há a primeira noção coletiva de felicidade, determinando-se que as reivindicações dos indivíduos sempre se voltarão à felicidade geral. Hoje, o preâmbulo da Carta Francesa de 1958 consagra a adesão do povo francês aos Direitos Humanos consagrados na Declaração de 1789, dentre os quais se inclui toda a evidência, à felicidade geral ali preconizada.

Nas duas propostas houve a menção à busca da felicidade individual como pressuposto do objetivo maior da felicidade coletiva. Ocorre que, em que pese terem sido aprovadas pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), ambas foram arquivadas pelo término da legislatura, em dezembro de 201446.

Importante salientar que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm fundamentado suas decisões na busca da felicidade e a reconhecem, inclusive, como direito fundamental.

Segundo o voto proferido pelo relator Ministro Celso de Mello, no Recurso Extraordinário n. 477.554/MG, que trata sobre união civil de pessoas do mesmo sexo:

O afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: a valorização desse novo paradigma como núcleo conformador do conceito de família - o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito e expressão de uma idéia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana - alguns precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte Americana sobre o direito fundamental à busca da felicidade (…)

O ministro Carlos Velloso assim se pronunciou no Agravo de Instrumento de n. 548.146/AM:

(…) uma das razões mais relevantes para a existência do direito está na realização do que foi acentuado na Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, de 1776, o direito do homem de buscar a felicidade. Noutras palavras, o direito não existe como forma de tornar amarga a vida dos seus destinatários, senão de fazê-la feliz.

Da mesma forma, o voto do Ministro Celso de Mello que, ao julgar a questão das pesquisas com células-tronco embrionárias, na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade de n. 3510, assim se posicionou:

Permitirá a esses milhões de brasileiros, que hoje sofrem e que hoje se acham postos à margem da vida, o exercício concreto de um direito básico e inalienável que é o direito à busca da felicidade e também o direito de viver com dignidade, direito de que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado.

Em julgamento do Recurso Especial n. 1157273/RN, onde foi relatora a Ministra Nancy Andrighi, houve o seguinte pronunciamento:

Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade, que integra o conceito de lealdade, para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da

felicidade (…) Ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da

felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade. - Emprestar aos novos arranjos familiares, de uma forma linear, os efeitos jurídicos inerentes à

união estável, implicaria julgar contra o que dispõe a lei.

Tratam-se de decisões de grande repercussão, onde a busca da felicidade é considerada princípio implícito fundamental, referenciado mundialmente e norteador da dignidade humana.

Para Saul Leal (2017, p. 322), trata-se de um "direito amplo à felicidade", na medida em que, de forma expressa, a jurisdição constitucional, através das decisões Supremo Tribunal Federal, tem protegido a felicidade coletiva e, dessa forma, consubstanciado está o direito à felicidade, afinal "algo vazio não poderia ser o alvo de uma decisão judicial". Diante das possibilidades fáticas e jurídicas, há que se buscar um máximo grau de felicidade ao fazer ou deixar de fazer algo que se queira.

Nesses termos, não há que se falar em necessidade de positivação para que a busca da felicidade exerça a sua força normativa. O Supremo Tribunal Federal assim tem demonstrado. Em que pese a palavra felicidade não constar de forma expressa no texto da Constituição Brasileira de 198847, tem-se que a expressão bem-estar aparece de forma

47 Art. 23, parágrafo único, CF/88. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

Art. 182, CF/88. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

reiterada, sobretudo no preâmbulo, no qual consta que ao Estado Democrático cabe assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.

Saul Leal (2017, p. 270) defende que a expressão bem-estar "é a maneira neutra que a dogmática constitucional contemporânea optou para tratar um prisma da felicidade". Ainda que tenha sido adotada como forma de assegurar o "estado do bem-estar social", nada impede que, hoje, não possa servir de "porta de entrada para a teoria da felicidade".

Essa linha de pensamento é consolidada pela seguinte afirmação:

O que defendemos, portanto, é que a Constituição Federal de 1988 ampara o direito à felicidade explicitamente, quando trata do bem-estar e, implicitamente, quando possibilita que ele ingresse no ordenamento jurídico brasileiro aliado a outros dispositivos constitucionais, como o direito à liberdade (direito à busca da felicidade) ou o direito à saúde (direito prestacional à felicidade). (SAUL LEAL, 2017, p. 271).

Aliado a esse entendimento está o art. 5º, §2º, da Constituição brasileira de 1988, onde está previsto que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Ou seja, como signatário de documentos internacionais, o Brasil aderiu, de forma expressa, à busca da felicidade.

Por fim, uma premissa defendida por Saul Leal (2017, p. 269) é a de que a Constituição não se basta em seu texto, já que esta traz consigo, embutido na sua redação, princípios relacionados, os quais não se encontram de forma expressa, mas estão inseridos em seu conteúdo, integrando ao conceito de Constituição e, inclusive, servindo como parâmetro para aferição da constitucionalidade de uma lei ou ato normativo. São denominados de princípios constitucionais implícitos.

Art. 186, IV, CF/88. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: IV - eploração que favoreça o bem- estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Art. 193, CF/88. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

Art. 219, CF/88. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do país, nos termos da lei federal.

Art. 230, CF/88. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

Art. 231, §1º, CF/88. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

4.3 EFETIVAÇÃO DA BUSCA DA FELICIDADE PELA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS: