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A cabeça bifronte do mito

No documento lucianaornelasmartinsassis (páginas 73-76)

3. Iracema: arquétipo da brasilidade híbrida

3.1. A cabeça bifronte do mito

A fortuna crítica de Iracema sempre vincula a obra à vida de seu escritor: suas ideias, sua personalidade, suas ambições e embates políticos.

José de Alencar foi um homem polêmico. Filho de um revolucionário anti- imperialista, ele respirou desde cedo os ares da política. Logo após se formar em Direito, passou a exercer a magistratura e, ao mesmo tempo, trabalhar como jornalista. Durante algum tempo, não se interessou por cargos políticos, mas sempre acompanhou e se colocou criticamente diante das questões sociais e políticas do país, expressando suas opiniões no Diário Mercantil, no qual atuava como cronista e folhetinista.

Era um crítico declarado e ardente de Pedro II e começou a receber notoriedade nacional ao fazer severas críticas ao poema Confederação dos Tamoios, obra encomendada pelo imperador ao escritor Gonçalves de Magalhães, com o intuito de ser uma “epopeia do povo brasileiro”. Alencar alegava que a obra não representava o “espírito brasileiro”, sendo, antes, um projeto que se prestava a atrair o apoio dos intelectuais a Dom Pedro II, que buscava legitimar sua autoridade e manter a coroa. Alencar manifestava suas críticas através de cartas que publicava sob o pseudônimo de Evaristo: “As cartas de Evaristo”, como ficaram conhecidas.

Rodrigues, afirma que:

A incursão na crítica se deu no debate polêmico sobre a “Confederação dos Tamoios”, que foi seu primeiro contato com o processo civilizacional da Corte; primeiro momento de tensão política de Alencar; e essa experiência deu-lhe o sinal para perceber que o que ele queria não se assemelhava ao que via na proposição da Corte, o que ocorria não por conta da incompetência de Gonçalves de

Magalhães, mas dos interesses que envolviam o projeto e dos valores que estavam em jogo. Diríamos que foi durante a experiência dessa primeira polêmica pública que aconteceu a conexão entre o escritor e o político. A partir daí, seus romances tornaram-se um modo de conhecer a realidade (RODRIGUES, 2001, p. 92).

A partir de então, além de escritor, Alencar abraçou a vida política e conquistou altos cargos no parlamento. Colocava-se, publicamente, como cristão fervoroso e também como escravagista. Suas ideias geraram, e ainda geram, muitas polêmicas. Desde que começou a escrever romances que se propunham a relatar a realidade brasileira, estes receberam críticas das mais entusiastas às mais devastadoras. Muitos o celebraram como um grande nacionalista; como o escritor que melhor retratou o Brasil do século XIX. Outros afirmaram que ele foi um político que virou escritor com o objetivo de tornar seus romances um veículo de comunicação para suas ideias, as quais coadunavam com o projeto colonizador.

Machado de Assis foi um dos únicos escritores contemporâneos a Alencar que se manifestou sobre Iracema. Teceu os mais altos elogios à obra, como se vê em artigo publicado, originalmente, na “Semana Literária”, seção do Diário do Rio de Janeiro, 23/01/1866:

Tal é o livro do Sr. José de Alencar, fruto do estudo, e da meditação, escrito com sentimento e consciência. Quem o ler uma vez, voltará muitas mais a ele, para ouvir em linguagem animada e sentida, a história melancólica da virgem dos lábios de mel. Há de viver este livro, que tem em si as forças que resistem ao tempo, e dão plena fiança do futuro. É também um modelo para o cultivo da poesia americana, que, mercê de Deus há de avigorar-se com obras de tão superior quilate. Que o autor de Iracema não esmoreça, mesmo a despeito da indiferença pública; o seu nome literário escreve-se hoje com letras cintilantes (ASSIS, 1936, p. 174).

Já no século XX, Haroldo de Campos, utilizando-se dos cronotipos bakhtinianos, reconheceu em Iracema uma síntese de diferentes gêneros literários, dos quais destaca a fábula de raiz folclórica, o mito de origem e a narrativa simbólica de aventuras, com momentos idílico pastorais. Segundo ele, em Iracema, Alencar teria se utilizado de liberdade e de invenção, para fundar a língua literária nacional, criando uma linguagem edênica tupinizada (CAMPOS, 1973). Sua visão se opõe à pretensão de fidelidade filológica, sobre a qual debateram muitos estudiosos desde o século XIX.

Antes dele, Augusto Meyer já compartilhava da opinião de criatividade e fantasia em Iracema. Segundo ele, a crítica regia a obra como um boi de carga diante de uma

borboleta: “Em nosso incurável robervalismo, queremos por força que o voo de Ariel sirva ao menos para demonstrar alguma coisa” (MEYER apud FRANCHETTI, 2010, p. 256). Meyer utilizou o termo robervalismo para expressar a insensibilidade da crítica diante de Iracema. Esse termo faz alusão a um episódio onde o famoso matemático e físico francês do século XVII, Gilles Personne de Roberval, após assistir a bela peça Polyeuct (1643), de Corneille, teria perguntado: “E o que isso prova?” (FRANCHETTI, 2010, p. 16). Continuando suas considerações, Meyer acrescenta:

Eu, por mim, confesso humildemente, que não vejo indígenas na obra de Alencar, nem personagens históricas; nem romances históricos. Vejo uma poderosa imaginação que transfigura tudo, a tudo atribui um sentido fabuloso e não sabe criar senão dentro de um clima de intemperança fantasista. Poeta do romance, fantasiava tudo. Se teve a intenção de criar nosso romance histórico, ficou só na intenção e não lograria fazê-lo, pois era demasiado genial para poder adaptar o seu fogoso temperamento a um gênero tão medíocre, que pede paciência aturada na imitação servil da crônica histórica, relativa imaginação criadora e minudências pitorescas (MEYER apud FRANCHETTI, 2010, p. 256).

A leitura mais recorrente que encontramos sobre a obra é a de que ela alegoriza o encontro entre o colonizador europeu e o índio através da história de amor vivida por Martim e Iracema.

Afrânio Peixoto foi o primeiro a chamar a atenção para o anagrama da palavra América contido no nome da heroína. Ele celebra a obra como o “poema épico, definidor de nossas origens, histórica, étnica e sociologicamente” (PEIXOTO, 1931, p. 163).

Já Alfredo Bosi reconhece nos romances indianistas de Alencar um complexo sacrificial, onde se vê a doação voluntária da vida do índio em favor do branco. Segundo ele “(...) o risco do sofrimento e morte é aceito pelo selvagem sem qualquer hesitação, como se sua atitude devota para com o branco representasse o cumprimento dum destino, que Alencar apresenta em termos heroicos e idílicos” (BOSI, 1992). Dessa forma, Alencar teria construído em Iracema, e também em O Guarani, uma história que compactuava com a visão conformista e legitimadora da colonização e, para não ter que se haver com o problema da (in) fidelidade aos fatos históricos, marcados pela violência, teria transformado o romance em mito, pois:

O mito é uma instância mediadora , uma cabeça bifronte. Na face que olha para a história, o mito reflete contradições reais, mas de modo a

convertê-las e resolvê-las em figuras que perfaçam, em si, a coincidentia oppositorum. Assim, o mito alencariano reúne, sob a imagem comum do herói, o colonizador tido como generoso feudatário, e o colonizado visto, ao mesmo tempo, como súdito fiel e bom selvagem. Na outra face, que contempla a invenção, traz o mito signos produzidos conforme uma semântica analógica, sendo um processo figural, uma expressão romanesca, uma imagem poética. Na medida em que alcança essa qualidade propriamente estética, o mito resiste a integrar-se nesta ou naquela ideologia (BOSI, 1992, p. 180). A partir da leitura de Bosi, muitos outros estudos surgiram vinculando o indianismo alencariano a uma cumplicidade com o processo colonizador, e a tendência da crítica literária hoje é debruçar-se sobre essa linha de raciocínio, como se pode ler na apresentação que Franchetti faz a Iracema:

(...) É preciso neste momento dizer ainda alguma coisa sobre uma questão que ronda, como um fantasma persistente, a crítica moderna do romance: a imagem da colonização que se pode deduzir da ficção de Alencar (...). Quero dizer: não é necessário nenhuma expertise nem nenhuma esperteza para descobrir a orientação política do discurso de Alencar, nem a sua reconstrução idealizada do processo colonizador. Não há aí nenhum fantasma, mas corpo concreto e palpável, pois tudo está dado e é claramente apresentado, seja no texto do romance, seja nas polêmicas em que o autor se envolveu, seja na atuação como homem público e político (FRANCHETTI, 2010, p. 82-83).

Entretanto, ao se colocar como um intérprete dessas obras, o próprio Bosi declara o recorte teórico que escolheu ao estudar o indianismo de Alencar: “o olhar do intérprete continua a perseguir o ponto de visto do narrador: é nele que a cultura de um determinado contexto tateia ou logra seu estado de cristalização” (BOSI, 1992, p. 180). Ele escolheu, como objeto de estudo, a face do mito que olha para a história. Nós procuraremos, nas próximas páginas, estudar a face do mito que olha para a invenção, analisando o trajeto heroico do guerreiro cristão e da índia tabajara em Iracema e, então, procuraremos relacionar esses olhares, o histórico e o poético, na tentativa de compreendermos de que forma essa obra registra o inconsciente cultural brasileiro de sua época.

No documento lucianaornelasmartinsassis (páginas 73-76)