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3 IMAGENS DA NATUREZA

3.1 A carnaúba e a Fisionomia natural dos sertões

Após passar por diversos lugares no norte do Brasil, em meados de 1812, o viajante de origem inglesa, Henry Koster (1793-1827), no trajeto entre Cajuais e Aracati, foi impactado de imediato pelo aspecto da vegetação local. Uma paisagem monopolizada pelos carnaubais, entremeada por pequenos charcos de água e raros arbustos. Em seu diário de viagem, Travels in Brazil (1815 e 1816), Koster descreve como o carnaubal lhe imprimia uma sensação melancólica.

No dia seguinte chegamos ao Aracati, distante sete léguas do lugar onde tínhamos dormido, mais ou menos às cinco horas da tarde. Grande Parte da viagem nesse dia ocorrera entre charcos d`água salgada e várzeas cobertas de carnaubais. Os altos troncos, despidos de ramos, coroados no topo pelas palmas, como os coqueiros, fazendo rumor ao menor sopro de vento, a cor e a aridez do terreno onde nenhuma relva apontava e raramente alguns arbustos davam uma impressão melancólica a esses planos.210

A descrição do viajante assume a perspectiva de “plano”, o qual se aproxima da feitura de um quadro da paisagem oitocentista. Não era a mesma carnaúba dos tratados botânicos. Mais

adiante, ele a insere na terminologia naturalista: “Carnaúba ou Carnaíba, Corypha Cerifera,

Arrud. Cent. Plant. Pern. Essa palmeira é uma das plantas mais úteis dos sertões.”. O inglês

descreve os diversos usos aos quais os sertanejos atribuíam à planta. A carnaúba não estava isolada dos outros vegetais, nem dissecada em suas diferentes partes e caracteres morfológicos, como no saber enciclopédico de matriz ilustrada, ao contrário, ela estava integrada à totalidade, compondo o ambiente natural. E o mais interessante, a carnaúba foi descrita em termos de impressões dos sentidos: altura, forma, rumores, ruídos e cores. Desse

210 KOSTER, HENRY. Viagens ao Nordeste do Brasil. SP, RJ, Recife, Porto Alegre: Companhia Editora

modo, o saber acerca da carnaúba, em Henry Koster, transitava entre os campos do rigor botânico e da dimensão sensível, da relação do homem com o mundo natural.

Não há dúvidas do papel das viagens na construção do conhecimento europeu acerca da fauna e flora dos territórios longínquos, assim como da natureza em escala planetária, desde o século XVIII e adentrando na centúria seguinte. Tal empreitada desafiava muitos botânicos de gabinete, os quais não ousavam se aventurar para além dos limites de suas bibliotecas. Dessa forma, as descrições e representações imagéticas das espécies de plantas e animais primavam pela exatidão dos caracteres morfológicos e das paisagens de cada quadro natural. A exemplo dos estudos de Henry Koster, nos quais o realismo não se contrapunha ao testemunho dos sentidos. Pelo contrário, as sensações impostas pela natureza ao sujeito que a observava eram relevantes para a apreensão das dinâmicas e harmonias constitutivas da totalidade da paisagem. Essas, por sua vez, eram percebidas a partir das emoções ou sensações do sujeito que entrava em contato com a natureza. Em todo o século XIX, esta foi uma premissa vigente nas raízes de concepção romântica da ciência do cosmos humboldtiana.

Friedrich Wilhelm Heinrich Alexander von Humboldt (1769-1859) realizou diversas viagens de estudo científico/naturalista, cujo objeto de análise foram a fauna e a flora da América (1799-1804), que resultou na monumental publicação, em 30 volumes, da enciclopédica de Quadros da Natureza (Ansichten der Nature Tableaux de la Nature), iniciada no ano de 1808 e concluída no decorrer de 25 anos na Alemanha e França. A monumentalidade da obra em sua descrição ambiciosa de inúmeros quadros de paisagens do planeta tem reflexos na concepção de ciência defendida pelo naturalista.

Segundo Lucia Ricotta (2000), “o decisivo na ciência de Humboldt é a intersecção

estabelecida entre dois modelos científicos: o modelo da descrição e o da especulação.” 211 O

que implica ver o modelo humboldtiano como cruzamento entre concepções racionalistas e estéticas nos moldes da filosofia kantiana e da Naturphilosophie, de Schelling, assim como do romantismo alemão.

Já para Andrea Wulf (2016), Humboldt, ao entrar em contato com as discussões kantianas, em Jena, contribuiu para a formulação de sua ideia de uma ciência romântica da natureza a partir de um mergulho introspectivo no universo subjetivo. Assim sendo, a única maneira de realizar esse aprofundamento no íntimo seria por meio da arte e da poesia.

De acordo com os românticos, a única forma de compreender a natureza era através de um mergulho interior, um movimento de introspecção. Humboldt entregou-se

211 RICOTTA, Lucia. A paisagem em Alexander von Humboldt: o modo descritivo dos quadros da natureza.

completamente às teorias de Kant e mais tarde teria um busto do filósofo em seu gabinete de trabalho, referindo-se a ele como grande pensador. Meio século depois, ele ainda diria que o mundo exterior existia somente na medida em que o percebêssemos “dentro de nós mesmos”. Uma vez que era moldado dentro da mente, moldava também a nossa compreensão da natureza. O mundo exterior, as ideias e os sentimentos “amalgamavam-se uns aos outros”, Humboldt escreveria. 212

A investigação de Humboldt sobre a física do mundo buscava encontrar mais do que descrições pormenorizadas de plantas, animais ou acidentes topográficos. Segundo Wulf, o que interessava na representação (escrita ou pictórica) da natureza era captar a paisagem ou a fisionomia natural, ou seja, uma “composição híbrida que mistura o apego da técnica

descritiva ao panorama visualizado e o conhecimento prévio das leis naturais.” 213 Na

perspectiva de Ricotta, isso foi decisivo para a construção da noção de espacialidade em Humboldt.

Em Cosmos, Humboldt revela que seu interesse como viajante-naturalista recaía na investigação das conexões mais profundas e íntimas, as quais integravam e constituíam o Cosmo, ou seja, buscava-se encontrar a conexão primordial que unia as particularidades dos diferentes domínios do mundo físico, das paisagens e dos quadros da natureza representados pelos trabalhos científicos.

Si se considera elestudio de los fenómenos físicos, no en sus relaciones conlas necessidades materiales de la vida, sino ensu influencia general sobre losprogresosintelectuales de lahumanidad, es el mas elevado é importante resultado de esta investigación, elconocimiento de laconexión que existe entre lasfuerzas de lanaturaleza, y elsentimiento íntimo de su mutua dependencia. La intuición de estas relaciones es la que engrandece lospuntos de vista, y ennoblecenuestrosgoces.214

A ciência natural começou a entender que seu objeto de estudo eram as fisionomias das paisagens, isto é, o que havia de típico ou particular em cada região botânica, buscando, dessa maneira, compreender a forma como o mundo natural afetava o sujeito cognoscente, além disso, tentava-se definir o caráter de cada espacialidade conformada na relação natureza e cultura. Para Lorelai Kury (2008), esse método de análise e descrição encontrava abrigo num entendimento mais abrangente das ciências das fisionomias de Franz Joseph Gall (1758- 1828) e Cesare Lombroso (1835-1909), no século XIX, as quais visavam estabelecer correspondências entre as regularidades morfológicas e os comportamentos humano. Na esteira dessa perspectiva, a anatomia comparada de Georges Cuvier (1769-1832) visava estabelecer correlações entre as formas (especialmente no estudo de fósseis), as funções e os

212 WULF, Andrea. A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt. SP: Planeta,

2016, p. 62.

213 Idem, p. 101.

214 HUMBOLDT, Alexander von. Cosmos: Ensayo de uma Descripcion Fisica del Mundo. Bélgica: Eduardo

órgãos dos animais e as tipologias humanas propostas por viajantes como Rugendas, Debret e Martius.

Nas Américas, a síntese humboldtiana foi apropriada de modo a valorizar as especificidades naturais locais, vistas como características identitárias nacionais. A suposta essência de um povo é, desse modo, naturalizada. [...] No caso de Humboldt, a descrição das fisionomias particulares permitiria, em aparente paradoxo, integrar os fenômenos particulares do Cosmos. [...] A representação dos costumes das populações e das paisagens locais compõem um tipo de conhecimento que diz também respeito a aspectos imateriais da realidade, que podem apenas ser sentido. Cabe à ciência e às artes tentar transmitir um saber que adquiriram por meio da experiência sensorial.215

A descrição sobre a carnaúba, a partir dos viajantes que operavam com a descrição desses cenários-tipos, intentou dar conta da paisagem como uma totalidade, diluindo a carnaúba na cultura material dos habitantes do Brasil. O olhar analítico dos viajantes que passaram pelo Ceará estava enquadrado dentro de uma compreensão total da realidade, a qual inseria a paisagem observada nas condições de possibilidade das relações sociais.

Um dos primeiros a representar a carnaúba na perspectiva de uma fisionomia, como parte integrante da paisagem local, foi o francês Ferdinand Denis, o qual esteve no Brasil

entre 1816-1831. Na obra Brésil (1836), o autor sublinha que a carnaúba é “uma das árvores

da vida” 216, devido a sua utilidade no cotidiano doméstico. Denis também faz um desenho em que a carnaúba compõe a paisagem típica composta pela presença humana. [figura 01].

Até os viajantes que não tivessem formação científica, como é o caso do pastor

protestante Daniel Kidder que considera, em sua obra Reminiscências de viagens (1845)217, a

carnaúba em termos da definição do caráter indolente do povo brasileiro.

Prolifera nesta província, em grande abundancia, a carnaubeira (coriphera cerifera). Essa palmeira, cuja beleza rivaliza com a dos coqueiros de Itamaracá, nada lhes fica a dever em utilidade. Ao sertanejo ela fornece alimento, roupa e abrigo. [...] As grandes riquezas naturais da região, devem ser alinhados entre os motivos de seu insignificante desenvolvimento. A ordem imperiosa da necessidade – ‘trabalho’ ou ‘morte’ – jamais perturba o repouso quotidiano do brasileiro, bocejando ao embalo da rede nas horas de sol a pino. A grande massa do povo vive ao ‘Deus dará’. Suas necessidades são poucas e simples: conformam-se, em geral, à produção espontânea da natureza.218

215 KURY, Lorelai. As artes da imitação nas viagens científicas do século XIX. In: Marta de Almeida e

Rezende Vergara. Ciência, história e historiografia (org.) RJ: MAST, 2008, p. 330.

216 DENIS, Jean Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Fréres Editeurs, 1837, p. 276. 217 Nessa obra o autor qual, na relata a sua permanência nas províncias do Norte.

218 KIDDER, Daniel. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do norte do Brasil:

Figura 1: Paisagem natural com rio e carnaubais, Ferdinand Denis, 1837.

Fonte: LIMA, Adriana Ribeiro. Trabalhadores da carnaúba: paisagens e modos de vida dos

camponeses em Russas-Ceará na primeira metade do século XX. Dissertação de mestrado. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2007, p. 32.

Daniel Kidder define o brasileiro a partir do seu olhar como religioso. De acordo com William Sérgio (2011), ao analisar a experiência dos viajantes protestantes no Brasil do século XIX, enxerga no discurso que estereotipava os habitantes do norte do império como indolente, cheio de vícios e violento o parâmetro civilizatório da filosofia iluminista, o qual

valorizava o trabalho sistemático sobre os recursos naturais. Tal pressuposto, por sua vez,

estava imbricado as “influencias e concepções românticas”. 219

Nesse sentido, ao redimensionar a carnaúba numa totalidade que envolve a paisagem e a moralidade em um único quadro, o pastor opera com a concepção romântica da ciência humboldtiana, caracterizando, dessa maneira, o carnaubal como uma fisionomia natural dos sertões do norte do Brasil. Essa representação fisionômica da carnaúba/natureza passou a compor os referenciais dos homens de letras do século XIX, os quais descreviam a natureza e a carnaúba. Eles continuaram a pensar nos usos da carnaúba pelas populações, e também começaram a criticar as técnicas de exploração da palmeira (corte do tronco da árvore para extração de um tipo de goma para alimento em tempos de seca para pessoas e animais, construção de cercas, currais de gado e madeiramento de casas; queimada de carnaubais para preparar-se terreno para plantação de gêneros agrícolas) como “imprevidentes” e “rotineiras”.

A relação estabelecida entre a ciência, a escrita e a imagem na construção das representações científicas sobre a carnaúba é o tema central deste capítulo. Nele, analisamos o quanto a dimensão artística em diálogo aproximativo e/ou tensivo com o rigor botânico constitui faces de um mesmo regime de verdade e visualidade da cultura científica oitocentista.

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