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1. OBRA DO HOMEM, CRIAÇÃO DA HISTÓRIA

1.5 PARIS: capital “mundial” do século XIX

1.5.3 A catedral e o profeta

No mesmo contexto das transformações urbanísticas, no âmbito político, surge uma direita que assume o poder nos mais importantes países da Europa, após 1848. De perfil conservador, autoritário e popular, esta elite política considerava necessário um controle direto do Estado sobre a sociedade.5 Na Alemanha o “Chanceler de Ferro”, Otton Von Bismark; na Inglaterra Benjamin Disraeli e; na França, Napoleão III, representantes da conjuntura do poder que se forjara pelas Revoluções Burguesas (MENEZES, 2004).

Durante o Segundo Império, sob a égide de Napoleão III, Paris iniciou um processo de remodelação urbana que iria transformar radicalmente sua configuração espacial, paisagem e costumes. Os princípios norteadores dessa remodelação urbana, além de se estabelecerem como modelo urbanístico local de forte impacto, iriam influenciar ações de semelhante intento em diversas cidades do mundo, numa escala jamais imaginada e com a total ausência de fronteiras culturais.

[...] Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história / Depressa muda mais que um coração infiel); / Paris muda! Mas nada em minha nostalgia / Mudou! Novos palácios, andaimes, lajeados, / Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria. / E essas lembranças pesam mais do que rochedos [...].6

Neste período histórico, se Paris era considerada a catedral da modernidade, Georges-Eugène Haussmann (1809–1891), foi o seu profeta. Mais conhecido como Barão de Haussmann – natural de Paris, funcionário público por profissão, administrador francês nomeado prefeito por Napoleão III – foi um dos principais responsáveis pelo remodelamento da cidade entre os

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Uma série de Revoluções na Europa Central e Ocidental eclodiram em função de regimes governamentais autocráticos, de crises econômicas, de falta de representação política das classes médias e do nacionalismo, ficaram conhecidas como revoluções de 1848. Abalaram as monarquias da Europa onde tinham fracassado as tentativas de reformas políticas e econômicas. Também chamada de Primavera dos Povos, este conjunto de revoluções, de caráter liberal, democrático e nacionalista, foi iniciado por membros da burguesia e da nobreza que exigiam governos constitucionais, e por trabalhadores e camponeses que se rebelaram contra os excessos e a difusão das práticas capitalistas.

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Versos 7–8 e 30–33, do poema “O cisne”, de Charles Baudelaire, presente no livro As Flores do Mal. Tradução de Ivan Junqueira. (BALDELAIRE, 1985:327-328).

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anos de 1853 e 1870, com a colaboração de uma equipe de arquitetos e engenheiros imprimiram marcas indeléveis na história cultural do urbano.

[...] o Barão E. Haussmann, homem afinado com os ideais neo-imperiais do Segundo Império, já se encontrava à frente dos trabalhos da reforma urbana de Paris. Sua concepção e execução deveriam colocar o saber de engenheiros, arquitetos, desenhistas, topógrafos, sanitaristas, paisagistas, dentre outros, a serviço da higiene pública, do comércio, das obras de infra-estrutura (rede esgoto, iluminação a gás, meios de transportes modernos), bem como da idealização de áreas de lazer, jardins e bairros destinados aos setores abastados. Caberia, ainda, à equipe de Haussmann estruturar o novo arranjo espacial de forma a preservar os monumentos da França Imperial. A combinação de tais requisitos visava materializar uma versão atualizada da utopia urbana renascentista, ou seja, da cidade geométrica de forte apelo cenográfico (BORGES, 2005:01).

As reformas urbanísticas propostas pelo Barão de Haussmann modificaram profunda e rapidamente o mapa urbano da cidade de Paris que era acompanhada, senão com desconfiança, com intensa perplexidade pelos citadinos.

Tudo se passa como se as mudanças estruturais da sociedade se refletissem no espaço urbano, que deve agora se distanciar das cidades vetustas do Antigo Regime, com suas ruas estreitas e tortuosas. Um novo modelo de modernidade urbanística se impõe, privilegiando as grandes vias, a circulação dos transportes e dos homens (ORTIZ, 1991:21).

Não somente Paris, mas várias cidades da Europa, na segunda metade do século XIX e no limiar do século XX, passaram por um profundo remodelamento de seu espaço. Porém, será na França, especificamente em Paris, que o urbanismo desempenhará um determinante papel neste novo ciclo de reformas. Estas experiências são tributárias dos “grands travaux” de Paris, impulsionados por Napoleão III, logo após sua ascensão ao poder. Pela primeira vez um conjunto de determinações técnicas e administrativas era formulado e colocado em prática coerente, em um tempo bastante curto (MENEZES, 2004).

É o quadro que colheram os pintores impressionistas como Monet e Pissarro em suas visitas dos boulevards parisienses do alto, cheios de gente. É um ambiente ainda diferenciado, onde as formas singulares podem ser colhidas somente perdendo sua individualidade, misturando-se em um tecido compacto de aparências mutáveis e precárias; mas isso constitui o ponto de partida do qual irá surgir o conceito de ambiente urbano aberto e contínuo, oposto ao antigo e fechado (BENEVELO, 1998:110).

Georges-Eugène Haussmann, amparado politicamente pelo Imperador Luis Napoleão e sob orientação dos princípios fundadores da urbanística moderna – higienização, embelezamento e racionalização do espaço urbano –, transformou a capital francesa de configuração medieval, na mais moderna das metrópoles européias do século XIX. Paris, com um apelo

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simbólico tão intenso, se tornaria o objeto de desejo mais cobiçado das demais cidades do mundo na longa duração.

[...] Haussmann fixa uma imagem e consolida um mito: Paris, metrópole do século. Sua prática de intervenção urbana foi, ao mesmo tempo, continuidade e renovação, que deixou marcas visíveis no traçado urbano, cristalizando uma imagem visual de metrópole (PESAVENTO, 2002:98).

Como já dissemos anteriormente, o processo de remodelação urbana da capital francesa envolveu uma série de vertentes conjugadas resultaram em modelo que conseguiu capturar a essência de uma época e se fazer universal. O simbolismo embriagador, produto do turbilhão de variáveis, expressa a perda de conexões com o passado como observou Haussmann ao rejeitar o primeiro projeto proposto para remodelar o espaço urbano de Paris, apresentado pelo engenheiro auxiliar que ainda ancorava seus valores em ideais de épocas passadas.

O projeto posto em prática adotou um partido urbanístico que não permitia referências à tradição e à memória da comunidade, mas visceralmente ligado ao impacto deslumbrante que a técnica moderna era capaz de produzir no indivíduo. Essa experiência conseguiu, através do poder das técnicas modernas, destruir e recriar a própria cidade. A sociedade foi submetida à sensação única e intransferível de deslumbramento que a monumentalidade e os demais atributos da cidade-espetáculo poderiam proporcionar ao indivíduo moderno.

Esta afetação que a cidade moderna causa à esfera individual talvez seja uma dimensão essencial à compreensão da universalidade do modelo haussmanniano. Elemento que referencia o método científico, as teorias econômicas ou as análises urbanísticas, tudo ainda em formação, mas já tratadas pela literatura da época, sendo Baudelaire o mais elevado expoente e o seu Flâner7 o personagem que mais incorporou os deleites e as agruras da metrópole moderna.

Metrópole surgida da capacidade de resposta que tiveram as técnicas construtivas naquele momento. Cidade concebida para expressar tanto os paradigmas do progresso, como para criar uma paisagem que impressionasse por sua força e beleza.

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O Flâneur é um ser que vaga pelas ruas apenas a contemplar a vida, encanta-se com ela, mas não a vive, pelo menos na produtividade do fazer definido pelo mundo capitalista. Ser flâneur é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da população. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas (RIO, 1997:51).

58 As calçadas de Haussmann, como os próprios bulevares, eram extravagantemente amplas, juncadas de bancos e luxuosamente arborizadas. Ilhas para pedestres foram instaladas para tornar mais fácil a travessia, separar o tráfego local do tráfego de longa distância e abrir vias alternativas para as caminhadas. Grandes e majestosas perspectivas foram desenhadas, com monumentos erigidos no extremo dos bulevares, de modo que cada passeio conduzisse a um clímax dramático. Todas essas características ajudaram a transformar Paris em um espetáculo particularmente sedutor, uma festa para os olhos e para os sentidos (BERMAN, 1986:147).

De cidade medieval à metrópole moderna, a reformulação de Paris nos diz muito mais do que mudanças estético-construtivas. Mais do que propor a reformulação da materialidade urbana, o processo de sua reconstrução traduziu, literalmente, o ideário da modernidade burguesa que colocou a cidade e seu espaço urbano no rol de sua cadeia produtiva. Personificada, Paris ganha “corpo e alma”: um corpo físico construído com equivalência no seu valor de uso e, principalmente, no seu valor de troca; uma alma expressa pelo fetiche, próprio das coisas que se constituem mercadoria.

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