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A catequização era a aplicação nas novas terras de um principio da lei da Graça vindo, supostamente, direto da boca do Cristo Ite et evangelizate omnes gentes, ide e evangelizai todos os povos, como consta no evangelho de São Marcos. Assim, como assinala Eduardo de Almeida Navarro:

A ilação necessária desse princípio era a da plena capacidade de todo homem de receber a doutrina cristã e a da premente necessidade da pregação da palavra revelada. Com efeito, não poderia haver uma humanidade paralela na América desconhecedora da primeira grande verdade do cristianismo, a saber, a do verbo encarnado. Não admitir isso seria relativizar o texto bíblico, que aceita uma só criação por Deus. Seria como aceitar que o cristianismo é uma religião com determinismo histórico e não detentora de uma verdade universal. (NAVARRO, 2008, p. 243)

Apesar dessa ilação, “até o século XVI as missões de evangelização ocupavam um lugar manifestamente inferior na vida católica europeia. Falava-se muito da conversão de judeus, mas os demais povos eram pagãos” (NAVARRO, 2008, p.245). O século XVI, portanto, é o momento da reativação das missões de evangelização como

61 foco da atividade eclesial, pois “com os grandes descobrimentos, a Igreja converteu-se, de fato, em Igreja missionária universal, como já indicava o vocábulo grego Katholikê” ( NAVARRO, 2008, p.241).

Era essa conversão do devir histórico cristão ocidental europeu em uma máxima universal que o Concílio de Trento atestava ao assegurar aos índios a Luz da Graça Inata. Tal conversão não seria possível sem a produção jurídica da alma dos índios como entidade mediadora entre o natural e o positivo. O universal, portanto, era a lei natural da Graça, que unia a humanidade inteira pela mesma revelação, a da encarnação de Deus na figura do Cristo. Assim, a evangelização não era um meio de alcançar o universal, mas de legitimar a lei positiva como lei universal: uma vez que os cristãos aceitassem o valor da lei positiva, e, no caso particular das Américas, tais cristãos eram substancialmente os índios, então essas leis teriam validade universal por serem compatíveis com a lei da Graça.

Nesse sentido, os índios foram os primeiros cristãos universais produzidos juridicamente, mas em contrapartida, foram os primeiros súditos a serem apropriados pelos estados absolutistas não como membros de uma mesma nação, nascidos em um mesmo território, mas como não pertencentes à nação nenhuma, além da comunidade de fieis. Não sendo espanhóis, nem portugueses, os índios não passavam de cristãos em potencial a quem foi concedido a tarefa de serem nada mais e nada menos do que os portadores da universalidade da Igreja como instituição transnacional, acima, portanto, de todas as nações.

Em sentido análogo, antes mesmo do Concílio, as línguas vernáculas, que se propagaram sob a égide do absolutismo, foram todas subordinadas aos direitos

62 universais do latim. Enquanto medida de outras línguas, o latim passou a operar como padrão universal das línguas em uso. O que resultou, após o Concílio, nas inúmeras gramáticas de línguas indígenas surgidas no século XVI, todas baseadas nos princípios da gramática latina.

Assim, o documento do Frei Beneditino Gaspar de Carvajal foi redigido entre dois acontecimentos jurídicos de suma importância para a manutenção do poder da Igreja na Europa e no Novo Mundo: a transformação do latim de língua da autoridade em língua da intervenção catequética e a transformação dos índios de súditos pagadores de impostos em primeiros cristãos universais do período absolutista.

Dessa maneira, a relação de Carvajal estava suspensa entre o devir histórico europeu ocidental e a transformação jurídica desse em devir histórico universal a partir da admissão dos índios como parte da humanidade. Essa transformação só fora possível pela subordinação legal do corpo dos índios a uma alma cristã a ser guiada pelo poder eclesial e pela subordinação tanto da língua dos conquistadores quanto dos conquistados a uma língua litúrgica operada pela Igreja.

Nessas operações as línguas em uso e os corpos dos índios foram articulados à suposta distância entre a luz da Graça e a sua expressão. Nessa distância estava posto o próprio sentido das palavras e dos corpos, ou seja, o sentido da ação dos homens e da expressão dessas ações em palavras. Desse modo, era na tentativa de supressão dessa distância que estava baseado tanto o poder da Igreja quanto a eficácia da lei.

Dessa forma, a lei passou a ser um modo retroativo de apropriação da história, ou seja, uma vez que a lei expressava a justiça dos atos de conquista e esses atos só ocorriam em acordo com a lei após serem ratificados como justos pela Igreja, então era

63 somente a posteriori que a lei poderia inserir esses atos no ordenamento jurídico que, de maneira paradoxal, previamente os legitimava.

Todos os casos estudados até aqui foram produtos desse dispositivo: a alma dos índios, por exemplo, foi ratificada quase um século depois dos descobrimentos, mas passou a valer de maneira retroativa. Assim como a ratificação do latim como língua universal, que, apesar de ter ocorrido quase meio séculos depois da primeira gramática da língua castelhana baseada na gramática latina, passou a fundamentá-la juridicamente.

Outro caso exemplar dessa relação foi a mudança no estatuto jurídico da instituição do padroado, que, como veremos, estava em consonância com as demais transformações ratificadas no Concílio.