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A análise dos vídeos sobre o espaço da caverna apresenta dois temas: 1 - a transgressão das lógicas escolares (valores, regras); 2 - a (re)criação da caverna

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como espaço educativo e de relações intrageracionais, as quais fortalecem a participação e os movimentos de resistências da turma do 6° ano, no que refere às ações da direção. A “caverna” está localizada no pátio, aos fundos da biblioteca e do museu, próxima ao campo de futebol. É constituída naturalmente por árvores e galhos entrelaçados, por isso denominada pelas crianças de “caverna”. No interior da “caverna” há pequenos troncos de árvores, representando bancos e alguns objetos como garrafas, postes plásticos, talheres, pequenos galhos e latas.

Na sequência, apresento trechos da transcrição do vídeo intitulado “Espaços de sociabilidade na escola: caverna, horta e praça”.

Ao chegar ao pátio, Lucas inicia a produção do vídeo e pergunta: “Agora tá gravando?” Eu explico que sim, que todos podem falar sobre o que estão visualizando para os futuros expectadores. Dienifer, Andrine e Felipe se dirigem para caverna. Lucas argumenta: “Essa é a nossa caverna, que um dia a diretora mandou cortar por causa das cobras!” Os meninos e as meninas observam a caverna em volta, outros entram e sobem nas árvores. Lucas continua filmando o movimento da turma ao redor da caverna. Matheus se aproxima e explica: “Aqui é o nosso forte, antigamente a gente brincava com os pequenos!” (Cena NA 02, linha 18-22). Lucas também comenta sobre a “caverna”: “A gente colocou uma armadilha para ninguém entrar na nossa caverna”. Alana se manifesta no diálogo e diz: “A gente tinha uns arames”! (Cena NA 02, linha 24-25). Em outra situação, Lucas retoma a questão do corte dos galhos que compunham a caverna e diz: “Aí a diretora mandou cortar por causa das cobras”. Alana argumenta: “Ela disse que era por causa das brigas”. Jader também salienta a justificativa da direção em cortar os galhos da caverna e diz: “das aranhas, dos bichos” (Cena NA 02, linha 30-31).

Este conjunto de falas permite pensar na recriação de um espaço natural, do qual a turma se apropriou e nele construiu processos de socialização entre pares, compartilhando experiências e vivências. A “caverna”, assim, parece constituir-se como espaço de socialização, de refúgio e de transgressão das regras e condutas

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definidas pela escola. É com esse entendimento que compartilho dos estudos de Manuel Jacinto Sarmento (2005), quando ele menciona sobre a potencialidade das relações intrageracionais, as quais garantem interações, processos criativos e cruzamento de culturas entre os grupos. Por isso, considero que, além dos movimentos de socialização, as relações intrageracionais estão presentes, fortalecendo a resistência das meninas e meninos do 6° ano frente às relações de poder instituídas pelo contexto educativo, no caso, as orientações feitas pela diretora da escola.

Outra questão que podemos pensar sobre esse conjunto de falas decorre da proteção de seus educandos. Essa questão é realçada quando, por motivos de desentendimentos ou de ataques de possíveis animais, a caverna torna-se um espaço ilegítimo à exploração por parte das crianças. Entendo que a escola organiza seus espaços educativos e mobiliza ações pertinentes ao processo de desenvolvimento cognitivo, social e cultural de seus educandos. Cabe lembrar que as análises buscam compreender como ocorrem a reorganização e a reinvenção dos espaços externos à sala de aula; por isso, o texto não se aproxima de entendimentos que tragam diagnósticos dos conflitos entre educandos e professoras ou que demarquem soluções para os desafios observados no contexto escolar. De todo modo, entendo ser necessário e importante para adensar a reflexão fazer algumas perguntas que, necessariamente, nem todas serão por mim respondidas: A escola, ou melhor, a direção, poderia oferecer outra solução que não fosse o corte das árvores e a extinção da caverna?

É oportuno salientar que o princípio da proteção manifestado pela direção da escola evidencia uma concepção através da qual as crianças são vistas como incapazes e incompetentes, mostrando uma compreensão de que estas, as crianças, estão em processos de formação e, por isso, necessitam ser guiadas e disciplinadas para o mundo adulto, conforme as suas orientações. Cabe lembrar que enquanto seres humanos todos nós estamos em processo de formação. A negatividade posta como condição de imaturidade, de dependência ou de necessidade de inculcação de regras e valores do mundo adulto remete à visão moderna da criança, o que implica na produção de relações assimétricas de poder com os adultos, contrapondo a resistência desse grupo de se apropriar e recriar espaços educativos como a caverna. Por isso, quando a direção da escola decide extinguir o espaço da caverna, não só está movida por uma concepção romantizada

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sobre as meninas e os meninos do 6° ano, como também institui que há espaços educativos demarcados, como as salas de aula, o campo de futebol, próprios para as crianças estarem e ficarem. Como a caverna seria apenas um espaço de brincadeiras, o qual é cenário de desentendimentos e de possíveis acidentes com animais da região, é vista pela direção da escola como um espaço pouco legítimo para a aprendizagem e a socialização entre as crianças.

Essa lógica de proteção desconsidera a possibilidade de se reconhecer a caverna como um espaço educativo e de trânsito intracultural entre meninos e meninas do 6° ano e, destas, também com as crianças pequenas. Igualmente é negada a potencialidade desses grupos de gerenciarem seus espaços de sociabilidade, de produzirem e recriarem outros espaços educativos, além dos organizados pela escola. Com isso, a situação de tensão e de relações assimétricas entre a turma do 6° ano e a direção da escola exprime a lógica excludente e pouco respeitosa, que marca os processos educativos em que ouvir e incorporar as culturas infantis ao contexto das práticas escolares ainda não são ações rotineiras. Por outro lado, mostra a caverna como um espaço de resistência das crianças e, por isso, favorece alguma escuta ao que dizem e pensam os grupos geracionais na escola.

Tratar dos tempos e dos espaços institucionalizados organizados pelos adultos, em contraponto à apropriação ao que é natural e pertencente ao pátio da escola, como a caverna, permite dizer que os meninos e as meninas vivenciam os tempos e os espaços contemporâneos, os quais são mobilizados e gerenciados pelos adultos e ressignificados pelas crianças, o que se define por “entre-lugar” (BHABHA, 1998). Entendo que nesse movimento de ressignificar tempos e espaços institucionais proporcionam-se situações de resistência às normas, às regras e às condutas que devem seguidas, sendo a “caverna” cenário dessa tensão e da transgressão ao que é pensado pelos adultos como espaço de aprendizagem e de socialização entre pares. Assim, nessa perspectiva, a caverna é um espaço educativo.

Entendo que ao usar o substantivo “forte” para se referir à caverna, ideias como refúgio, abrigo e resistência ganham força e, talvez por isso, o menino esteja mencionando que a “caverna”, além de proporcionar a construção de brincadeiras organizadas no seu interior, também se torna um espaço simbólico em que há produção das culturas infantis, recriação de seus cotidianos, vivências e práticas de

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acolhimento entre pares. Percebo ainda que a “caverna” representa o espaço comum e seguro a todos para a construção das relações intrageracionais e dos processos de socialização que tensionam o diálogo, as relações de poder e de resistência vividos pelos meninos e meninas dessa escola. Considero que o poder nesta cena ora está com a turma do 6° ano, seja quando realizam as brincadeiras, a representação do real e a reinterpretação da cultura da escola; ora está com os adultos, que argumentam em torno do princípio da proteção e extinguem a possibilidade da interação e do diálogo sobre a potência educativa da “caverna” para os processos de aprendizagem e de socialização.

Portanto, no contexto dessa reflexão, a “caverna” representa um espaço reorganizado pela turma do 6° ano, a qual proporciona a tensão entre a produção de culturas infantis e as culturas escolares, especificamente dos adultos professores. Assim, pode a “caverna” ser um espaço de desacomodação da prática educativa presente apenas em espaços demarcados pela cultura escolar? Compreendo que essa questão pode ser pensada com base nos dados, pois a turma do 6° ano mobiliza outras formas de estar e ser na escola, os meninos e as meninas se apropriam da caverna e, como espaço educativo, ela se torna um lugar potente para os processos de socialização e de tensionamento das próprias relações com os adultos. Por outro lado, a escola, em especial a direção, considera a caverna como espaço inapropriado devido às questões de segurança e dos desentendimentos que ali ocorrem entre os grupos, o que também mostra a potencialidade da caverna como um espaço educativo para brincar e para brigar.

Entendo que apesar da ausência do diálogo entre as professoras e a turma do 6° ano sobre as possibilidades de aprendizagem, de criação e de interação entre os pares, a caverna mostrou-se como espaço de resistências das culturas infantis vividas nessa escola e como potente espaço para as práticas educativas e a participação ativa da turma do 6° ano com seus pares e com outras crianças da escola. Dessa forma, a caverna garante que movimentos de participação sejam realizados além de opiniões instrumentais a serem dadas por esses atores aos adultos da escola. A participação, conforme Manuel Jacinto Sarmento (2005) permite a comunicação entre os saberes advindos das rotinas culturais dos educandos e dos conhecimentos escolares, redefinindo o papel da escola e transformando a prática educativa. Com esse entendimento de transcender a lógica monocultural da escola, compartilho dos escritos desse autor especialmente quando

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ressalta que a participação tem significados múltiplos porque é “simultaneamente um dispositivo pedagógico, uma necessidade simbólica e um processo político” (SARMENTO, 2005, p. 34). Ressalto nessa análise sobre a caverna a dimensão simbólica da participação, a qual permite que a turma do 6° ano e seus pares recorram às suas bagagens culturais, proporcionando a comunicação mútua entre os saberes e a transformação do espaço escolar em espaço dialógico, pois variadas linguagens e formas de expressão e comunicação são experimentadas.

Compreendo que a caverna, como espaço recriado pela turma, também se constitui como um lugar em que modos de expressão são produzidos pelos meninos e pelas meninas para que estes possam verbalizar sua resistência às normas e às regras da escola, comunicar suas vivências cotidianas através das brincadeiras e assim tencionar um possível diálogo sobre a produção de culturas e conhecimentos em outros espaços, para além daqueles que a escola e as professoras organizam para a prática educativa. Logo, podemos pensar que, ao se apropriar da “caverna”, as crianças buscam demarcar uma participação de forma ativa e propositiva como “condição organizacional da interculturalidade” (SARMENTO, 2005, p. 35). Assim, a interculturalidade é vista para além da presença de múltiplas culturas, como as escolares e das meninas e dos meninos do 6° ano, mas sim como princípio dialógico que favorece o enfrentamento de ideias sobre outras formas de pensar e de organizar os espaços e as práticas educativas na escola.